nov
3
2015

O negacionismo do déficit da previdência

Segundo o dicionário, “negacionismo” é a ação de negar uma realidade que pode ser verificada empiricamente, mas que constitui uma verdade incômoda.  Não é novidade que a Previdência é um dos principais itens por trás do grave desequilíbrio fiscal e que continuará a agravá-lo à medida que o envelhecimento da população se acentuar. Desnudado pela queda de receitas, o déficit deve subir 70% neste ano e mais 40% em 2016, chegando a incríveis R$ 120 bilhões, ou 2,7% do PIB. Essa proporção seria 3 vezes maior do que os 0,9% do não tão distante ano de 2013. Apesar da situação dramática e da necessidade de enfrentá-la, reformas esbarram em um argumento tão popular quanto inacreditável: o de que não existe déficit. Entender o argumento da chamada “falácia do déficit” e aprender a rebatê-lo se faz essencial neste momento.

Propagada por advogados previdenciários, sindicalistas e políticos, essa antiga tese foi  a principal conclusão da 1ª audiência realizada em 2 de setembro  no Congresso para instruir a MP 676, que cria a fórmula 85/95 móvel. As diversas e inventivas razões dos “negacionistas” têm um fio condutor comum: a contabilidade do INSS deveria incluir outras receitas e excluir certas despesas. É no argumento do “mito do déficit” que a contabilidade criativa encontra a Previdência.

Do lado do gasto, defende-se que as aposentadorias rurais (R$ 54 bilhões até julho) sejam excluídas da conta do INSS, e pagas de outra forma pelo governo. A justificativa da exclusão é que esse aposentado não contribui diretamente para o sistema, mas recebe dele. Tirar o rural do INSS reduz a despesa sem piorar a receita: não haveria mais déficit.  Trata-se de ideia análoga a de sugerir, para um plano de saúde em dificuldade, que não se leve em conta os pacientes com câncer. O INSS constitui um seguro social, e o sinistro― como o câncer do plano de saúde ou uma batida em um seguro de carro ― tem que ser plenamente contabilizado.

A mágica – e falta de lógica – de sumir com um segurado que dê mais despesa e menos receita do que a média poderia ser aplicada a outros grupos, evidenciando a fragilidade do argumento. A mulher contribui por menos tempo do que o homem, mas vive mais. O gaúcho tem expectativa de vida maior que a média, e lá há mais aposentados e menos contribuintes. O INSS talvez não tivesse déficit se mulheres ou os estados do Sul fossem tirados da conta, mas isso obviamente não faz sentido. Como outros pontos dos negacionistas, tirar os rurais do INSS é como trocar moedas dos bolsos de uma mesma calça (neste caso, o Tesouro).

Já pelo lado da receita, levanta-se que tributos da Seguridade, Cofins e CSLL, deveriam ser completamente vinculados e considerados como receitas do INSS. Não se explica que outras despesas devem parar de ser financiadas por esses impostos. Tiraríamos dinheiro da saúde (que também é parte da Seguridade)? Do investimento? O olho gordo nesses tributos parece também ignorar que foi justamente a desvinculação que permitiu o crescimento dessas contribuições. Sem a DRU, Cofins e CSLL não teriam o valor que têm hoje.

Cabe lembrar que esses impostos são usados hoje para cobrir o rombo do INSS. Um pouco mais de reflexão revela que com a aceitação deste tipo de argumento jamais haverá déficit, bastando contabilizar como receita do INSS o dinheiro dos impostos usados para cobrir seu rombo. Em 2016, talvez seja a nova CPMF.

Outro argumento que alimenta a “falácia da falácia” do déficit previdenciário é a existência da dívida ativa do INSS: com esse dinheiro que deixa de ser arrecadado, o déficit não existiria, dizem alguns. Porém, mesmo que conseguisse recuperar o que nenhum banco consegue (toda a dívida de seus credores), o INSS pagaria todos os benefícios de 2015 só até setembro.  Estes cerca de R$ 300 bilhões são insuficientes porque há na alegação uma confusão elementar que não distingue um estoque (a dívida ativa) de um fluxo (o pagamento de benefícios).

Infelizmente, ainda que fizessem sentido, nenhum dos elementos que servem para negar o déficit poderia fazer frente ao seu aumento perante o processo de envelhecimento da população. Cofins e CSLL são impostos, rígidos, incapazes de acompanhar a transição demográfica, veloz. Não se trata de uma questão contábil, mas de um contingente cada vez maior de inativos a ser financiado por um contingente cada vez menor de trabalhadores em atividade. O problema precisa ser encarado, e sem contabilidade criativa, como foi no resto do mundo ― nos Estados Unidos, o país mais rico do planeta, já se fala em idade mínima de 70 anos nas eleições primárias presidenciais dos republicanos.

Para o matemático e financista Nassim Taleb, o maior risco que as pessoas correm hoje é viver demais “inesperadamente”, sem se prepararem financeiramente para isso. Se o Brasil fosse uma pessoa, a afirmação se aplicaria perfeitamente.  Precisamos reconhecer que, apesar do descontentamento dos atuais aposentados, nossa Previdência é das mais generosas do mundo. Segundo o Global AgeWatch Index de 2015, espécie de IDH da população idosa, somos o 13º no mundo em segurança da renda, muito embora sejamos apenas o 56º no ranking total e estejamos apenas depois da 70ª posição na comparação do PIB per capita da população como um todo.

O déficit existe, e só vai piorar à medida que a proporção de idosos na população triplicar nas próximas décadas.  Hoje, segundo o IBGE, já há mais famílias brasileiras com cachorros do que com crianças, que sustentariam a Previdência no futuro. Só que cachorros não recolhem contribuição previdenciária.  De fato, a negação do déficit tem uma única lógica: em um país que ainda tem relativamente muitos jovens e poucos idosos, seria mais do que natural que realmente não houvesse déficit. Essa não é mais a nossa realidade.

O negacionismo do déficit está na ponta da língua dos que, em dissonância cognitiva, precisam justificar a concessão de mais benefícios, seja na Justiça ou na política. Mas “a verdade é o que é, e segue sendo verdade ainda que se pense o revés”, dizia o poeta Antonio Machado. Enquanto no debate político ainda se nega a existência do problema, o Tribunal de Contas da União estima déficit atuarial de incríveis R$ 3 trilhões em 2050. É déficit pra cachorro.

Este artigo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 27/9/2015.

 

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Sobre o Autor:

Pedro Fernando Nery

Doutorando e Mestre em Economia (UnB). Consultor Legislativo do Senado da área de Economia do Trabalho, Renda e Previdência.

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20 Comentários Comentar

  • Boa tarde!

    Como não terei como usufruir de seus bons comentários, gostaria de excluíssem os meus e-mails (o acima e o cesar.izar@gasparimsantos.com.br) do recebimento destes.

    Obrigado pela atenção.

  • Excelente texto, embora haja certa confusão terminológica (contribuições não são impostos!).

    • Leandro,

      Muito obrigado pelo comentário!

      Realmente usamos no texto a acepção “comum” do termo imposto, sem contemplar a distinção do art. 145, como você bem observou.

      Abraço,

      Pedro

  • As críticas do autor procedem quanto aos malabarismos para buscar afirmar que não existe déficit. Contudo, há uma questão anterior a todo o contexto: Porque a previdência deve dar superávit? Não vejo grande dificuldade em afirmar que o custeio da seguridade não pode ser visto como uma mera conta de investimento, em que se mede precisamente a contribuição de cada um para que se determine o que possam retirar.
    Exigem-se contribuições para se ter direito, porém é igualmente aceitável que haja um esforço da coletividade para garantir esses benefícios.
    Não se pode ignorar o preço que se paga por essa escolha, mas igualmente não é razoável que se espere superavit do sistema previdenciário.

    • Quem pagará a aposentadoria dos que atualmente estão na ativa? O problema previdenciário não se verá agora, mas no futuro. É difícil imaginar o buraco sendo cavado sob nossos pés?

    • Obrigado pelo comentário.

      Na verdade, acho que ninguém tem a ilusão de que a Previdência possa ser em algum momento das próximas décadas superavitária. A preocupação, na verdade, é em relação a um déficit descontrolado: até mesmo um equilíbrio parece utópico. Não estamos, então, defendendo superávit ou mesmo que a Previdência não possa ser financiada por outros tributos.

  • Entendo que o gasto com previdência trata-se de SEGURIDADE SOCIAL, logo não é apenas o que incide sobre folha que contribui com isto, deve-se levar em contra a CSLL, por exemplo. Não acredito muito que nossa previdencia é rombo atrás de rombo, é o recurso que acaba sendo desviado.

    • Olha o negacionismo aí rs

      O fato é que você não pode em hipótese alguma se dar ao luxo de aposentar aos 53 anos. É moralmente reprovável e financeiramente inviável.

    • Prezado Rafael,

      Obrigado pelo comentário.

      Aqui há um texto mais detalhado sobre essa questão da contabilidade da Previdência, inclusive sobre essa noção de que seus recursos são desviados: http://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/boletins-legislativos/bol37

      Abs.,,

      Pedro

      • Prezado Pedro!

        Obrigado pelo Boletim, esclareceu praticamente todas minhas dúvidas.

        Acho muito interessante quando fala da diferença entre seguridade e previdência, fortalecer a seguridade, preservando e racionando seus recursos certamente seriam benéficos ao cidadão.

        Abraços.

        • De nada. Obrigado Rafael.

  • Prezado Autor,

    Penso que quando se alega que a aposentadoria rural não deve ser contabilizada, tem-se como argumento o fato de que o referido benefício é, de fato, assistência e não previdência, já que muitos não contribuíram. A previdência, por definição é contributiva.

  • Parabéns pelo excelente artigo, muito esclarecedor.

    • Obrigado Renata.

  • Vi que um dos comentaristas se refere a um outro comentarista nos seguintes termos: “O fato é que você não pode em hipótese alguma se dar ao luxo de aposentar aos 53 anos. É moralmente reprovável e financeiramente inviável.” Se é para colocar a questão em termos morais, colocaria como imoral a aposentadoria dos servidores públicos, que pode ser o caso de muitos dos que andam por aqui. Quanto a questão do déficit em si mesmo, já está em vigor uma nova legislação que irá tornando aos poucos mais difícil a aposentadoria precoce. Além disso, não vi na contabilidade do texto a questão do batalhão de pessoas que trabalham e contribuem pouco para a previdência. Entendo que a questão da previdência é importante. Mas antes de colocarem a solução, o problema deveria estar bem delineado o que segundo minha opinião não está ocorrendo.

    • Ocorre que, desde que foi aprovada a lei 12618, em 2012, e após sua efetiva regulamentação, em 2013, foi instituído o regime de previdência complementar dos servidores públicos federais (Funpresp). Realmente o regime anterior era imoral e financeiramente inviável, por isso a lei foi criada (embora muitos setores tenham feito lobby contra). No entanto, apenas servidores que ingressaram no serviço público após a regulamentação, em 2013, é que estarão no regime novo, sem aposentadoria integral. Dessa forma, a economia que o novo regime irá gerar só será percebida no longo prazo.

      Acho que o governo federal deveria induzir os outros entes federativos (governos estaduais, municípios) a aprovar leis semelhantes o mais rápido possível.

  • Parabéns pelo artigo. Muito esclarecedor.
    A sociedade brasileira precisa conhecer e debater a nossa real situação previdenciária e não se comportar como um “avestruz”.
    Vou divulgar o artigo aos colegas e conhecidos, para que mais pessoas tenham conhecimento dessa realidade e possam contribuir nesse discussão, necessária e cada vez mais urgente.

  • É a primeira vez que me deparo com um blog tão bem escrito quanto o seu. Excelente trabalho que você está fazendo e contribuindo com o nosso país.

  • Parabéns pelo artigo. A Europa do Leste quebrou por causa destas aposentadorias precoces, a Grécia também, será que o Brasil é a exceção a regra? Quando vi o Senador Paim falar que exite superavit na previdência eu pesquisei melhor e mesmo eu não sendo um especialista, já vi que era tudo perfumaria. Quem defende a tese que a previdência é superavitária é sindicalista, alguns políticos, alguns funcionários públicos e algumas pessoas com baixo nível de escolaridade. Infelizmente este artigo fala a verdade, eu queria que o Paim estivesse correto, mas não está.

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