nov
17
2014

Como fazer um ajuste fiscal no Governo Federal?

O Governo Federal está com grande desequilíbrio em suas contas. De janeiro a setembro de 2014 o setor público (União, Estados e Municípios) acumulou um déficit primário de R$ 15,3 bilhões, quando a meta fiscal para o ano era de superávit  de R$ 99 bilhões. Temos, portanto, uma brecha de R$ 114,3 bilhões (aproximadamente 2% do PIB) entre a intenção e a realidade. O déficit nominal (aquele que inclui as despesas com juros) já chegou a 4,9% do PIB, mais que o dobro dos 2,43% do PIB observados a menos de dois anos, em janeiro de 2013. A dívida bruta do governo geral, que era de 56,7% do PIB em dezembro de 2013,  pulou para 61,7% do PIB em setembro de 2014 (5 pontos percentuais do PIB em menos de um ano!)1.

O desequilíbrio fiscal deve ser considerado o problema número um a ser enfrentado pelo Governo. O objetivo do presente texto é apresentar as linhas gerais do ajuste de que necessita o país.

Deve-se observar, desde já, que não necessariamente o ajuste aqui proposto representará sacrifício à parcela mais pobre da sociedade. É equivocada a associação entre racionalização de gastos públicos e perdas para os mais pobres. Na verdade, como se verá adiante, boa parte do ajuste diz respeito a gastos públicos que beneficiam os segmentos mais ricos da sociedade. Há espaço para um ajuste que não agrave a nossa elevada desigualdade de renda ou que piore os indicadores de pobreza.

A deterioração da qualidade de vida dos pobres e miseráveis ocorrerá, isto sim, se não for feito qualquer ajuste. A alta inflação e o crescimento econômico próximo a zero já estão mostrando seus efeitos sobre essa parcela da sociedade: o número de pessoas extremamente pobres parou de cair e já mostra inflexão positiva (eram 10,08 milhões em 2012 e passaram a 10,45 milhões em 2013). O mesmo está ocorrendo com a desigualdade de renda, que interrompeu sua trajetória de queda e está estacionado em nível ainda alto (índice de Gini de distribuição da renda domiciliar per capital em torno de 0,53 desde 2011)2.

Antes de listar as propostas de um ajuste fiscal, é preciso compreender por que ele tem importância vital para a retomada do crescimento e o controle da inflação. São vários os canais pelos quais o desequilíbrio das contas públicas prejudica a economia:

  • Não havendo ajuste fiscal, as agências de avaliação de risco retirarão do país a classificação de “grau de investimento”. Este “selo de qualidade” indica que é desprezível o risco de o governo não pagar sua dívida. Se o Brasil perder este certificado de qualidade, grandes investidores mundiais (entre eles os fundos de pensão) ficarão proibidos, por seus estatutos, de investir no país, o que representará forte queda da entrada de investimentos externos. Isso não só terá impacto negativo no crescimento, mas também no nosso balanço de pagamentos. Atualmente temos déficit de 3,72% do PIB em transações correntes (negociações de bens e serviços com o exterior), que é coberto por entrada de capitais via investimentos e financiamentos da ordem de 4,65% do PIB. Escasseando a entrada de capitais, sofreremos rápida redução de nossas reservas e o real se desvalorizará frente ao dólar. A desvalorização cambial aumentará a inflação. Com menos reservas no Banco Central, será mais arriscado para investidores estrangeiros investir no país, pois pode haver falta de dólares na hora em que eles desejarem levar seus capitais de volta ao país de origem. Em suma: aumenta a inflação, cai o nível de investimento e diminui o ritmo de crescimento econômico.3
  • O desequilíbrio fiscal também exerce pressão sobre a inflação por meio de outro mecanismo: o aumento da demanda agregada. Com o governo gastando acima do que arrecada, ele coloca na economia mais dinheiro (via gastos) do que retira (via tributos). Com isso, além do efeito direto do consumo do governo, há aumento do consumo das famílias (aqueles que recebem do governo – funcionários públicos, fornecedores, beneficiários de programas sociais, etc – terão mais dinheiro no bolso para consumir). Ocorre que a economia brasileira enfrenta diversas barreiras para aumentar a oferta de bens para atender essa maior demanda: baixo investimento (devido a incertezas, como será explicado a seguir), deficiências de infraestrutura, baixa poupança para financiar investimentos, entre outras. Com maior demanda e oferta restrita, o resultado é o aumento dos preços.
  • Os agentes econômicos desconfiam fortemente da capacidade do governo para controlar suas contas, não só em função dos maus resultados recentes, mas também pelo esforço feito pela atual administração para esconder a situação através de expedientes de contabilidade criativa (sobre contabilidade criativa ver neste site o texto O que é contabilidade criativa?). Por isso, a perpetuação e agravamento do desequilíbrio fiscal representará desestímulo ao investimento, levando a baixo crescimento da economia nos próximos anos;
  • As despesas do governo com juros tendem a aumentar agravando ainda mais o déficit público, pois o Banco Central tende a combater a maior inflação por meio do aumento dos juros. Além disso, o aumento da dívida pública (decorrente dos déficits sucessivos) aumenta a base sobre a qual os juros devidos são calculados. O setor público já gasta a elevada quantia de 5,5% do PIB com juros todos os anos, e essa conta tende a aumentar.4
  • Em um contexto de desajuste fiscal torna-se impossível aprovar uma reforma tributária que reduza o impacto negativo do atual sistema sobre a eficiência e a produtividade da economia. Qualquer reforma que racionalize o sistema tributário implicará perda de receita, o que não é fácil de suportar em momento de crise fiscal. Em consequência se perpetua o bloqueio que o sistema tributário ineficiente exerce sobre o crescimento econômico;
  • A deterioração nos indicadores de inflação, crescimento, balanço de pagamentos e rating de crédito realimentarão o desequilíbrio fiscal pois, com a economia crescendo menos, o governo arrecada menos. Cria-se uma espiral de más notícias que só será rompida com a mudança do regime fiscal.

Não se pode, portanto, brincar com desequilíbrio fiscal no nível em que ele se encontra. É preciso lançar medidas de reequilíbrio das contas públicas. Acredito que um programa de ajuste deveria se apoiar em três pilares, que devem ser apresentados em conjunto (como um pacote) e postos em prática simultaneamente:

  • Recuperação da credibilidade do governo na gestão fiscal;
  • Ajuste de curto prazo;
  • Ajuste de médio e longo prazo.

RECUPERAÇÃO DA CREDIBILIDADE

Esta dimensão do programa de ajuste consistiria em acabar com a contabilidade criativa e dar transparência à real situação financeira do setor público. Algumas das medidas listadas a seguir agravariam os dados oficiais no curto prazo, simplesmente porque há déficit escondido nas contas públicas. Mas uma política fiscal crível deve resistir à tentação de produzir estatísticas que não reflitam a real situação fiscal, sob pena de não conquistar o apoio dos agentes econômicos. O simples fato de se anunciar o fim de procedimentos nocivos ao equilíbrio fiscal – e atuar de acordo! – ainda que não represente melhora nas contas no curto prazo, já cria expectativa positiva em relação ao futuro.

As principais medidas nessa área seriam:

  1. Suspensão dos empréstimos do Tesouro ao BNDES e redução gradualmente da carteira de empréstimos desse Banco. Caso sejam necessários aportes residuais para cumprir contratos em andamento, eles devem ser registrados como despesa primária do Tesouro, sendo contabilizados como inversão financeira no Banco. Essas operações geram elevado custo de juros para o Tesouro (da ordem de R$ 30 bilhões ao ano) e não têm sido eficaz em atingir seu principal objetivo, que seria o estímulo ao investimento privado.
  2. Fixação, por lei, do montante máximo de dividendos que as empresas públicas podem pagar ao Tesouro a cada ano. Tal medida visa impedir que o Tesouro, ansioso por fechar suas contas, force as empresas a pagar dividendos excessivos, que levem à descapitalização das empresas e à necessidade de, no futuro, o próprio Tesouro ter que fazer aporte de capital para recuperá-las. Os dados mostram evidente aumento de pagamentos de dividendos ao Tesouro: entre 2000 e 2008 tais pagamentos foram equivalentes a 0,26% do PIB ao ano, e entre 2009 e 2014 eles saltaram para 0,55% do PIB.5
  3. Acerto de contas do Tesouro com as empresas, fundos e bancos públicos que, na condição de agentes pagadores de programas do governo, detêm créditos junto ao Tesouro em função de atrasos de pagamentos. Essas chamadas “pedaladas” orçamentárias precisam ser explicitadas e ter um cronograma claro de redução ao longo do tempo. Somente com o FGTS, o Tesouro Nacional tem dívida de R$ 17,7 bilhões6, havendo ainda passivos junto à Caixa Econômica, Banco do Brasil e BNDES, cujos números não são claramente divulgados.
  4. Interrupção do lançamento de sucessivos programas de parcelamento de débitos fiscais. Esses programas, conhecidos como REFIS, têm por objetivo facilitar o pagamento de débitos dos contribuintes inadimplentes, gerando uma entrada extra no caixa. Ocorre que a sua repetição, ano após ano, induz o contribuinte a não pagar regulamente suas obrigações, esperando pelo parcelamento em condições facilitadas. Há evidente desmoralização do fisco e queda na arrecadação regular de tributos. Entre os anos 2000 e 2013 foram abertos nada menos que sete programas de parcelamento e refinanciamento de débitos. Os sinais de esgotamento desse mecanismo já são claros. Em 2014 a arrecadação esperada por meio do refinanciamento era de R$ 13 bilhões, mas teve que ser minorada e agora está entre R$ 7 e R$ 9 bilhòes.7
  5. Suspensão de todas as operações entre o Tesouro e empresas públicas ou de economia mista cuja finalidade seja a antecipação da entrada de recursos no Tesouro, como por exemplo, a venda de direitos de royalties de Itaipu para o BNDES ou a venda de direito de exploração de petróleo diretamente à Petrobras, sem a realização de leilão aberto a outras empresas.
  6. Contabilização em separado das receitas de concessão e venda de ativos públicos, apresentando-se o resultado primário com e sem essas receitas não recorrentes. O resultado primário nos últimos anos tem ficado cada vez mais dependente de receitas não-recorrentes, ou seja, receitas que não pertencem ao fluxo regular de arrecadação de tributos, tais como vendas de ativos ou recebimento de dividendos em valores acima do que se observa no mercado; o que indica fragilidade das contas públicas. É preciso mostrar, separadamente, o superávit/déficit advindo dos fluxos regulares de despesas e receitas e aqueles decorrentes de eventos extraordinários. Em 2013, por exemplo, de um superávit primário de 1,9% do PIB, nada menos que 0,9% do PIB resultaram de receitas não recorrentes.8
  7. Definição de um cronograma multianual de redução dos “restos a pagar”, que são despesas orçamentárias feitas no ano “t” cujo pagamento é adiado para o ano “t+1”. Tais adiamentos têm criado uma bola de neve. Em 2004 os restos a pagar (inscritos menos os cancelados) no Orçamento Geral da União equivaliam a 0,7% do PIB. Em 2014 já alcançava 3,4% do PIB.
  8. Apresentação ao Congresso Nacional de proposta orçamentária com base em projeções realistas (de crescimento econômico, inflação, etc.), evitando-se a superestimação das receitas e enfatizando-se o difícil quadro fiscal de curto prazo (a recente propostas apresentada ao Congresso de se ampliar a maquiagem do déficit, por meio de desconto de investimentos e desonerações tributárias é condenável e vai na direção contrária do que está sendo aqui proposto). Em especial é preciso evitar o já “manjado” jogo de cena, feito ao longo dos últimos anos, em que se aprova um orçamento com receitas e despesas irrealistas e, em seguida, faz-se um contingenciamento (sempre com o número mágico de R$ 50 bilhões) que, na verdade, representa cortar despesas que não seriam realizadas, pois não haveria receitas para financiá-las.

AJUSTE DE CURTO PRAZO

As medidas de curto prazo são aquelas voltadas a produzir aumento de receita e redução de despesa com reflexo imediato nas contas governamentais:

  1. Reverter a chamada “desoneração da folha de pagamento”, não só porque ela gera significativa perda de arrecadação (R$ 20 bilhões ou aproximadamente 0,4% do PIB)9 como também cria problemas relativos à eficiência da economia (a esse respeito ver, neste site, o texto “O que é desoneração da folha de pagamento e quais são seus possíveis efeitos?”).
  2. Reverter a redução de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) concedida a vários produtos, pois ela representa perda de arrecadação (no mínimo R$ 7 bilhões por ano) e estímulo ao consumo em um momento de inflação em alta.
  3. Enfrentar a grande pressão por aumento de gastos de pessoal, que vem sobretudo do Poder Judiciário, sob a forma de: criação de adicional de tempo de serviço não sujeito ao teto remuneratório constitucional (PEC 63/2013 – custo de até R$ 10 bilhões ao ano para a União e R$ 14 bilhões para os estados10); introdução de auxílio moradia para juízes e procuradores (demanda já aprovada no STF e que deve ser enfrentada na esfera judicial – custo estimado em R$ 1,5 bilhão por ano11); forte aumento do teto remuneratório proposto pelo STF (de R$ 29,4 mil para R$ 35,9 mil – acréscimo de 22%, que levaria a aumento de despesa de R$ 1,4 bilhão em 201512). Esses aumentos rapidamente repercutem na remuneração do restante do funcionalismo, desencadeado reajustes em cascata e demandas por realinhamento de remuneração entre carreiras, o que pode aumentar ainda mais o custo estimado da medida. São nocivos não apenas pelo desarranjo fiscal que provocam, mas também por serem fator de concentração de renda, visto que os servidores públicos (em especial os do Judiciário) estão no topo da pirâmide de renda.
  4. Também no STF está tramitando causa relativa ao chamado direito de “desaposentadoria” que, de forma resumida, pode ser descrito como a elevação dos benefícios recebidos pelas pessoas que se aposentaram, mas continuaram no mercado de trabalho. Se aprovada tal possibilidade, haverá um custo de, no mínimo, R$ 70 bilhões com possibilidade de se multiplicar ao longo dos anos (sobre esse ponto ver neste site O que é desaposentadoria e qual o seu impacto? e Por que o julgamento do STF sobre desaposentadoria é importante?)
  5. Suspender a determinação governamental e os estímulos regulatórios voltados a expandir o crédito ao consumo, ofertado pelos bancos públicos. A forte expansão desse crédito em passado recente (o saldo das operações com pessoas físicas passou de 13% do PIB em 2007 para 26% do PIB em 2014)13, associada ao baixo ritmo de crescimento da economia, tende a aumentar o potencial de inadimplência da carteira de crédito dos bancos públicos. Isso representará perda patrimonial e futura necessidade de aporte de recursos do Tesouro àquelas instituições. Foi anunciado recentemente, por exemplo, uma transferência de créditos “podres”da Caixa Econômica para a Empresa Gestora de Ativos (Engea), da ordem de R$ 5 bilhões. A Engea é uma espécie de agência para lidar com créditos de instituições públicas de difícil cobrança 14.
  6. Reverter a política recentemente adotada pelo Tesouro Nacional de facilitar a tomada de empréstimos por estados e municípios. Esses governos subnacionais têm seus limites de endividamento controlados pelo Tesouro, em conformidade com regras estipuladas pelo Senado. Se as regras forem cumpridas à risca, os estados e municípios têm que obter superávit primário para pagar seus débitos vincendos. Quando se abre aos estados e municípios a possibilidade de tomar novos empréstimos, deixa de ser necessário fazer superávit para pagar suas dívidas. Basta fazer dívida nova para pagar dívidas antigas. O resultado foi a queda do superávit fiscal de estados e municípios, que deteriora a situação fiscal agregada do setor público. O superávit primário de estados e municípios caiu de 1,15% do PIB em 2008 para 0,34% do PIB em 2013.

AJUSTE DE LONGO PRAZO

  1. Não há dúvida de que o ajuste de longo prazo mais importante é a retomada da reforma da previdência. Esse é o maior item de despesa do orçamento (consumindo quase 40% de toda a receita primária do Tesouro, com gastos anuais de R$ 350 bilhões ou 7,3% do PIB em 201315). É também a categoria de despesa que tem maior potencial de crescimento, seja devido às regras benevolentes de concessão de benefícios, seja pelo rápido envelhecimento da população, que afetará não só o lado do gasto, mas também o lado da receita, pela diminuição da parcela da população participante no mercado de trabalho e contribuinte para a previdência. As pessoas com mais de 65 anos de idade eram 7% da população em 2012 e serão 22% em 205016. Por isso, faz-se necessário, pelo menos: instituir idade mínima para aposentadoria no Regime Geral de Previdência Social (RGPS), aumentar o tempo de contribuição necessária para que se pleiteie aposentadoria por idade, rever o instituto das aposentadorias especiais, rever o tempo reduzido de aposentadoria para mulheres, reduzir a benevolência dos benefícios associados à pensão por morte.
  2. A segunda prioridade também é a previdência! Isso porque tramitam no Congresso mais de uma centena de projetos que aumentam benefícios, concedem novas aposentadorias especiais, propõem a institucionalização da desaposentadoria e/ou reduzem exigências para gozo de benefícios existentes. Olhando-se isoladamente cada um desses projetos, eles parecem inofensivos em termos fiscais. Muitos se baseiam em argumentos meritórios. Porém, quando analisados em conjunto, têm potencial explosivo sobre os custos da previdência. A cada ano alguns desses projetos são aprovados e sancionados, cavando um pouco mais o poço do déficit previdenciário (sobre esse ponto será futuramente publicado texto específico neste site). É preciso instituir um mecanismo de avaliação do impacto fiscal desses projetos, e dar a eles atenção redobrada durante sua tramitação no Congresso.
  3. Logo após à previdência, o segundo maior item de despesa é a folha de pessoal do Governo Federal (R$ 221 bilhões ou 4,6% do PIB)17. Como já afirmado acima, esta tende a crescer em função da pressão do Judiciário por aumento de remuneração. Além disso, a política de pessoal do setor público brasileiro é ineficiente e dispendiosa, pagando remunerações elevadas e contratando acima da necessidade, além de garantir estabilidade no emprego de forma generalizada. Um ponto fundamental a ser mudado na política de pessoal diz respeito aos direitos e deveres dos servidores em relação à greve. Atualmente há um desequilíbrio: os servidores podem fazer greve, mas não há instrumentos para punir greves abusivas, não há corte de remuneração dos dias parados nem a possibilidade de demissão. Isso estimula a realização de greves e coloca o poder público contra a parede, resultando em remunerações elevadas e perda de qualidade dos serviços públicos em função de sucessivos movimentos paredistas. A aprovação de uma lei de greve que equilibrasse direitos e deveres contribuiria tanto para conter o peso fiscal da folha de pagamento, quanto para recuperar a qualidade dos serviços prestados.
  4. Ainda em relação ao serviço público, é preciso rever regras de contratação, remuneração e promoção visando criar incentivos para o bom desempenho, assim como conter a contratação em excesso (propostas nesse sentido estão no texto O que fazer para melhorar a eficiência dos servidores públicos e reduzir as despesas de pessoal do governo?). De especial interesse seria a adoção de modelos alternativos de prestação de serviços públicos, como a atuação de organizações sociais mediante contrato de gestão na área de saúde, ou a adoção (mediante avaliação de seus efeitos) de políticas de voucher escolar e terceirização de gestão das escolas públicas.
  5. As políticas de assistência social (Bolsa Família, Abono Salarial, Seguro Desemprego, Benefício de Prestação Continuada – BPC, aposentadorias rurais) têm apresentado peso crescente na despesa pública (elas consumiam 6,2% da receita primária em 2004, pulando para 10,3% em 2013 – em reais foram R$ 182 bilhões ou 3,7% do PIB). Embora algumas dessas políticas representem importante contribuição à redução da pobreza e da desigualdade, outras não são tão eficazes e devem ser descontinuadas. É preciso focar os benefícios nos mais pobres, para ter o máximo de resultado ao menor custo possível. Essa foi a chave do sucesso do Bolsa Família, um programa barato e eficaz. Sob essa ótica, o Abono Salarial é um candidato a ser extinto, o que representaria economia de R$ 19 bilhões em 201518. O seguro desemprego tem sido objeto de fraudes, e precisa passar por mudanças nas suas regras e mecanismos de fiscalização. O valor do salário mínimo, que rege o reajuste do BPC e o piso das aposentadorias, deveria passar a ser corrigido pela inflação adicionada de um índice de produtividade (ou, para facilitar, a taxa de crescimento do PIB per capita). Isso garantiria a manutenção do poder de compra dos benefícios (agregado a um ganho real) em ritmo compatível com o crescimento da economia e da capacidade fiscal. A regra atual de elevação do salário mínimo é mais benevolente, porém sacrifica as contas públicas e tira dos pobres, via inflação, o que lhes dá por meio do reajuste dos benefícios.
  6. Na área de educação é preciso tomar a decisão de focar a ação do setor público na pré-escola e no ensino básico, revendo-se a prioridade até hoje conferida ao ensino superior, em especial à injustificável gratuidade do ensino superior para estudantes de famílias que podem pagar pelo serviço.
  7. É essencial que se instaure no Estado brasileiro mecanismos de avaliação das inúmeras políticas públicas em execução. Os programas são criados e perpetuam-se sem que se avalie se eles geram mais benefícios do que custos. Algumas perguntas básicas devem ser respondidas sobre cada programa público: a quem beneficiam? Qual o custo per capita? Há programas alternativos que beneficiariam mais gente ao mesmo custo? Há necessidade de intervenção do governo ou o problema que se quer resolver pode ser solucionado pelo livre funcionamento de mercado (ou seja, há falhas de mercado envolvidas?)? Qual o impacto sobre a distribuição de renda e redução da pobreza? Quais os efeitos colaterais positivos e negativos que os programas geram para a sociedade?
  8. A criação de uma instituição fiscal independente (ver sobre isso, neste site, no texto “O que são instituições fiscais independentes?”) ou a criação de programas de avaliação de impacto no âmbito do Poder Executivo (já há iniciativa nesse sentido no âmbito da Secretaria de Assuntos Estratégicos) ajudaria a colocar luz sobre programas públicos ineficientes, que devem ser descontinuados ou reformados, bem como indicar quais são as experiências bem-sucedidas que devem ser replicadas e ampliadas.
  9. Reavaliação do modelo de investimento público. O famoso PAC é um programa baseado na ideia de “quanto mais investimentos melhor”. Ele reuniu e embrulhou em um só pacote diversos projetos que existiam e estavam a espera de financiamento, sem uma avaliação da qualidade e oportunidade desses projetos. E, sobretudo, sem se fazer uma escala de prioridades. Ocorre que o país não tem recursos fiscais nem capacidade gerencial para tocar um grande número de projetos ao mesmo tempo. Acabam ocorrendo casos de projetos mal executados ou inadequados (desconsiderando-se outras opções mais baratas e eficientes), obras interrompidas por falta de recursos, estouro de orçamento em função de mau planejamento. Nesse sentido, seria necessário criar uma agência (ou dar atribuição a um órgão já existente) que centralizasse o planejamento dos investimentos públicos, buscando a sinergia entre diferentes projetos, e definindo com clareza quais seriam objeto de concessão, parceria público-privada ou investimento público direto.
  10. Ainda sobre os investimentos em infraestrutura, é preciso mudar a política adotada naqueles destinados ao modelo de concessão. Não se pode usar a concessão como uma forma de trazer o investidor privado para trabalhar pelo governo, submetendo-o a uma remuneração inferior ao seu custo de capital. Ou seja, medidas populistas, voltadas a reprimir o preço das tarifas pagas pelos usuários, acabam levando a baixa qualidade dos serviços ou relações espúrias entre prestador de serviço e governo, que passam a buscar meios de remuneração menos transparentes (via subsídios extraorçamentários, subsídios cruzados, etc.). O custo para o contribuinte e as distorções de preços relativos e perda de eficiência da economia acabam sendo maiores que a economia no preço do serviço. Em segundo lugar, não se pode usar os programas de concessão tendo por objetivo principal maximizar a receita fiscal obtida nos leilões. Isso porque para maximizar tal receita, o poder público acaba tendo que permitir que o concessionário preste um serviço de pior qualidade (e tenha menor custo e maior lucro), em troca de um pagamento inicial mais polpudo. O ganho fiscal de curto prazo acaba gerando perda de qualidade, e portanto de produtividade, no longo prazo.

CONCLUSÕES

Os pontos aqui esboçados, se adotados em conjunto, dariam aos agentes econômicos uma perspectiva de equilíbrio, eficiência e transparência das contas públicas no longo prazo. Isso atuaria no sentido de conter a inflação e o déficit no balanço de pagamentos. Estimularia os investimentos, permitiria a redução da taxa de juros de equilíbrio e resultaria em maior crescimento econômico.

Resta, como desafio, argumentar que este não seria um “pacote de arrocho” com consequências negativas aos mais pobres.

Uma breve revisão das principais medidas propostas permite constatar que muitas delas, na verdade, desconcentram a renda. É o caso das políticas que visam restringir as altas remunerações do Poder Judiciário, e praticar uma política salarial no setor público mais próxima do que se paga no setor privado. Conter a expansão do efetivo de servidores públicos também atuará no sentido da redistribuição. Parte significativa do funcionalismo está entre os 5% mais ricos do país.

A adoção de políticas voltadas a estimular os servidores públicos a serem mais eficientes, bem como os modelos alternativos de prestação de serviços de saúde e educação, resultaria em melhores serviços prestados aos mais pobres, que são os maiores usuários desses serviços, visto que os mais ricos há muito migraram para os serviços privados.

Igual efeito terá a reforma da previdência, pois em sua conformação atual, o sistema de benefícios é apropriado majoritariamente pela classe média, em detrimento dos mais pobres. Os projetos de mudanças avulsas no sistema previdenciário (na direção contrária à do ajuste das contas), que aos poucos vão sendo aprovados no Congresso, também são, muitas vezes, direcionados a grupos de pressão de classe média, tendo um custo equivalente ao necessário para tirar um grande contingente de famílias da miséria.

A focalização das políticas sociais também seria um instrumento de fazer mais e melhor em favor dos mais pobres, eliminando-se os “vazamentos” de benefícios que hoje vão para a classe média.

Também no caso dos investimentos em infraestrutura é possível buscar um enfoque pró-pobre. Um adequado planejamento e hierarquização de prioridades levaria ao aumento de investimentos em áreas como saneamento básico, remoção de habitações de áreas de risco para conjuntos habitacionais populares e melhorias nos investimentos e gestão do transporte público. São evidentes os benefícios aos mais pobres e à classe média.

A adoção de monitoramento e avaliação de programas públicos de forma sistemática deixaria claro para a sociedade os programas que, embora aparentem gerar muitos benefícios, têm custos elevados. Se submetidas a avaliações desse tipo, iniciativas do chamado Sistema S, que consomem em torno de R$ 15 bilhões por ano, provavelmente se mostrariam caras e ineficientes. O uso dos recursos do imposto sindical e dos programas de treinamento financiados pelo Ministério do Trabalho também ficaria mais claro, podendo-se aferir até que ponto são os trabalhadores ou uma elite sindical que se beneficia dos recursos.

A contenção no ritmo de crescimento do salário mínimo não pode ser vista como uma medida de “arrocho” contra os pobres. Afinal, em algum momento do tempo o salário mínimo terá que parar de subir acima dos demais salários. Do contrário, no longo prazo ele se tornará um “salário máximo”. Os ganhos em termos de redução da pobreza e da desigualdade, decorrentes do reajuste do salário mínimo acima da inflação tendem a ser cada vez menores. Primeiro, porque passarão a pressionar a inflação e retirar renda dos mais pobres.Segundo, porque esse salário passará a ser cada vez mais pesado para as empresas, desestimulando a contratação de trabalhadores pobres menos qualificados (com produtividade abaixo da remuneração mínima). Ademais, a medida proposta não é de redução do valor real do salário mínimo, e sim de moderação na sua taxa de crescimento real.

Por fim, mas não menos importante, o fim dos bilionários subsídios concedidos pelo Tesouro a grandes empresas, por meio de financiamentos do BNDES e o fim dos subsídios implícitos nas desonerações de IPI e folha de pagamentos deixarão de carrear bilhões de reais para o topo da pirâmide de renda.

____________________

1 Fonte dos dados: Banco Central do Brasil, Nota para a Imprensa, out 2014.
2 Fonte de dados: www.ipeadata.gov.br
3 Fonte dos dados: Banco Central do Brasil. Nota para a Imprensa, out. 2014.
4 Fonte dos dados: Banco Central do Brasil. Nota para a Imprensa, out. 2014.
5 Fonte dos dados: Secretaria do Tesouro Nacional. Resultado do Tesouro – Série histórica.
6 Valor Econômico, 17/11/2014.
7 http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,arrecadacao-do-refis-frustra-governo-e-deixa-meta-fiscal-mais-distante-imp-,1555788
8 Fontes: Banco Central do Brasil e Banco Itaú (2013). “Contas públicas: dimensionando o impacto das operações não recorrentes”.
9 Fonte: Receita Federal do Brasil – Desonerações instituídas.
10 Fonte: Valor Econômico, 2/6/14.
11 Fonte: O Globo 7/10/14.
12 Fonte: Folha de S. Paulo 5/11/14.
13 Fonte: www.ipeadata.gov.br
14 Fonte: http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Acao/noticia/2014/11/caixa-repassa-r-5-bilhoes-em-creditos-podres.html
15 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional. Resultado do Tesouro Nacional
16 Estimativas de Marcelo Caetano, com base em dados do IBGE.
17 Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional. Resultado do Tesouro Nacional
18 Fonte: Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias 2015.

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Sobre o Autor:

Marcos Mendes

Doutor em economia. Consultor Legislativo do Senado. Foi Chefe da Assessoria Especial do Ministro da Fazenda (2016-18). Autor de “Por que o Brasil cresce pouco?”.

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9 Comentários Comentar

  • Caro Marcos Mendes, Muito bom seu artigo com esta agenda propositiva de soluções. Já li seu livro “Porque o Brasil cresce pouco” e gostei muito. Parabéns pelo trabalho e por favor continue, Alexandre

  • Quero parabenizar o autor pela clareza na exposição do assunto, bem objetivo e transparente.
    Luiz Novi

  • Muito bom, Marcos.
    Fui àquele seu evento na UnB, divulguei o blog e continuarei divulgando.

    É bom ver uma agenda propositiva de soluções.
    Infelizmente não vejo nem governo, nem oposição batendo nessa tecla.

    A oposição só sabe criticar, mas não propõe pois tem medo da “impopularidade”.

    Claro que é impopular, por exemplo, acabar com a atual super-indexação do salário mínimo. Mas como mudar a opinião pública se esquivando do debate?

    Serei um pouco mais ousado em minha pergunta:

    Para mitigar o custo fiscal de curto-prazo de muitas dessas reformas, o que acha do governo se utilizar de privatizações? Não pergunto do ponto de vista real, pois duvido que o PT privatizaria alguma empresa. Mas do ponto de vista ideal, privatizar uma Petrobras, ou uma Eletrobras, duas empresas que tem muito potencial, mas que tem sido atravancadas pela má administração e corrupção por parte de seu controlador (o governo).

    O que acha de um plano que misturasse Reformas + Privatizações para mitigar os custos de curto-prazo, lembrando um pouco os anos 90?

    • Obrigado Maurício. Creio que há grande espaço para privatizações na modalidade de concessão, pois essa modalidade já passou pelo crivo ideológico do partido do governo e pode dar grande contribuição na melhoria da infraestrutura. Quanto a venda de ativos, em especial empresas símbolo, acho difícil. Ademais, falar em venda da Petrobras em momento de crise como esse, sem que se tenha uma precificação adequada do presal, seria muito arriscado. O melhor é reduzir a participação do governo a 50%+1 e adotar uma política de transparência e governança adequada.

  • Faltou a fala da corrupção em todos os segmentos.Hoje só será aplicado este medicamento porque a corrupção está a níveis avassaladores. Politicos e estatais(diga-se o judiciario tambem) aumentam seus salarios de forma direta e não querem perder nada, O resto da sociedade que se dane com esse aperto, que deveria ter sido feito a muito tempo, e sendo realizado agora vai impactar socialmente na vida privada a curto prazo e o ralo lá de cima continua aberto.

  • Prezado professor Marcos,

    Em estilo simples, com clareza conceitual e conteúdo estatístico, trata-se do melhor artigo que li sobre assunto.

    Congratulações, muito obrigado.
    Pedro

  • […] da MP, o problema das pensões já havia sido apresentado nesse blog, bem como a necessidade de  sua inclusão em um ajuste fiscal neste […]

  • Prezado professor Marcos,
    Parabéns pelo artigo, comp estudande de engenharia e ainda leigo no campo da economia consegui acompanhar com clareza seu pensamento. Gostaria de perguntar somente, quais os motivos pelo qual a presidente Dilma e o ministro Joaquim Levy não adotaram até agora tais medidas?
    Orbrigado pela atenção

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