out
13
2016

Os quatro problemas da PEC do teto

RESUMO

A chamada “PEC do Teto” é positiva, mas traz uma série de problemas que precisarão ser discutidos com urgência. O presente artigo relata quatro destes problemas, propõe modificações na proposta original do governo e aponta instrumentos complementares para que o programa de ajuste fiscal se concretize com sucesso. Diante da recessão vivida pelo país – a maior da história – as soluções precisam ser construídas com muito diálogo e clareza a respeito dos objetivos. Restaurar o espírito da responsabilidade fiscal, estimular a austeridade fiscal permanente, aumentar a transparência nas ações do Estado e restabelecer as condições de sustentabilidade da dívida pública devem ser os propósitos centrais neste momento.

Os quatro problemas discutidos no presente artigo são:
a) a incompatibilidade de um teto geral para o crescimento do gasto com as vinculações e indexações presentes, hoje, nas leis e na Constituição;
b) a fixação de exceções à aplicação do teto (gastos com capitalização, créditos extraordinários, gastos com eleições e um grupo de transferências);
c) o desbalanceamento da PEC: inócua no curto prazo e muito rígida no longo prazo; e
d) a questão do prazo de vigência da regra.

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É boa a intenção do governo contida na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 241/2016, mais conhecida como “PEC do Teto”. O objetivo é criar uma regra que estimule a austeridade fiscal permanente e, assim, restabeleça o equilíbrio das contas públicas. Aliás, este é o espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A regra proposta pelo governo obrigará a que as despesas primárias cresçam, no máximo, pela inflação do ano anterior. Por exemplo, em 2017, o gasto primário (sem despesas de juros sobre a dívida pública) teria de avançar apenas 7,2% (projeção para o IPCA de 2016). O texto proposto pela equipe econômica, no entanto, tem várias brechas que precisam ser fechadas.

primeiro problema da PEC está na fixação de um limite geral sem as devidas complementações. Em estudo publicado na Revista Conjuntura Econômica em parceria com o José Roberto Afonso, mostramos que há pelo menos 14 rubricas do gasto federal primário sujeitas a alguma regra de vinculação ou indexação. O governo não explicou, até agora, como compatibilizará essas amarras legais e constitucionais ao limite geral proposto. Reproduzo a seguir a tabela publicada no estudo citado.

Despesas federais sujeitas a alguma regra de vinculação ou indexação, exceto gastos com pessoal e transferências a estados e municípios

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Fonte: Afonso & Salto (2016). Revista Conjuntura Econômica.

 

segundo problema está no parágrafo 6º do artigo 102 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, conforme proposto no artigo 1º da PEC do Teto. Esse dispositivo permite que um conjunto de despesas primárias seja excluído do teto global. Em outras palavras, elas poderão crescer acima da inflação do ano anterior.

A não ser as transferências constitucionais para os governos subnacionais, cuja exclusão é adequada, as outras exceções são preocupantes. Por exemplo, os gastos com as eleições, as outras transferências de recursos e os créditos extraordinários ficarão fora do limite. Eventuais gastos de capitalização igualmente não entrarão na conta.

Vamos nos deter um pouco neste segundo ponto. O governo enviou seu Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para o Congresso no último dia 31. Nele, apresentou um gasto total para 2017 igual a R$ 1,316 trilhão. Essa despesa primária, se confirmada, representará um aumento nominal de 6,1% em relação a 2016. Curiosamente, uma taxa inferior ao IPCA projetado pelo próprio governo para o ano corrente, isto é, a taxa que deveria ser o limite máximo permitido – o teto da PEC.

O fato não foi comentado na apresentação do ministro Henrique Meirelles, mas foi alvo do tópico de “perguntas e respostas” criado pelo ministério em sua página na internet. Ocorre que, dadas as exceções acima descritas, a base de 2016 tem de ser expurgada para que então se aplique o percentual de 7,2% e, finalmente, obtenha-se a despesa máxima de 2017. Em seguida, o valor obtido é acrescido das previsões para as rubricas livres do teto, o que resulta no gasto primário total.

Há, no entanto, um equívoco nessa metodologia. Os chamados créditos extraordinários não têm uma dotação prevista no orçamento. Por essa razão, para 2017, não há como saber de antemão qual será o montante gasto com essa finalidade. Sabemos, porém, que em 2016 já foram gastos quase R$ 10 bilhões até agosto. Neste caso, podemos afirmar com segurança que a despesa fixada pelo governo no PLOA com base na PEC do Teto está subestimada, já que não leva em conta uma previsão de crédito extraordinário.

Assim, seria interessante apresentar os dados de 2016 e 2017 sem considerar os valores desses créditos, nos dois anos, o que deixaria justa a comparação. O que fica estranho é apresentar o dado de 2016 turbinado pelos créditos e o de 2017 livre dessas despesas. É evidente que a taxa de variação ficaria, mesmo, abaixo de 7,2%. No caso, em 6,1%.

Há ainda um problema maior e anterior: por que deixar de fora uma despesa tão importante? Pela Constituição (art. 167, parágrafo 3º), esses créditos deveriam ser abertos apenas em caso de calamidade, guerra, etc. Mas, na prática, não é o que acontece. Essa brecha criará um incentivo à má utilização do instrumento de crédito extraordinário, já que todas as demandas por gastos adicionais, ao longo do ano, recairão sobre esse canal.

terceiro problema da PEC – o mais grave e difícil de ser resolvido – é o fato de a regra proposta estar desbalanceada. Na hipótese de sua aplicação ter sucesso, isto é, de os gastos passarem a crescer nominalmente pela inflação do ano anterior medida pelo IPCA, os resultados a curto e a longo prazo estariam distantes do desejável. Nos anos iniciais, a regra seria inócua e, nos anos finais, rígida.

É preciso ter em mente que a obtenção de resultados primários positivos só faz sentido quando parte de uma estratégia para estabilizar a relação dívida/PIB. O que todo país precisa é ter boas condições de continuar financiando suas políticas públicas nos níveis desejados pela população. Por isso, a importância de ter capacidade de tomar crédito em volume e condições financeiras favoráveis ao país.

Se a regra for uma espécie de piloto automático, esse objetivo final ficará em segundo plano. Por exemplo, poderá chegar um momento em que a geração de esforços primários superará – e muito – o nível necessário para estabilizar a dívida como proporção do PIB. Por essa razão, é possível afirmar, desde logo, que uma regra geral sem detalhamento e medidas complementares não funcionará.

A regra de sustentabilidade da dívida leva em conta os juros reais, o crescimento econômico real, o patamar de endividamento e o resultado primário. A variação da dívida, isto é, o seu aumento, estabilidade ou queda em relação ao PIB, depende dessas variáveis. Para um crescimento econômico médio de 2,0%, com juros reais a 4,5% e dívida em torno de 85% do PIB (hoje estamos com 70% do PIB), o primário necessário para estabilizar a relação dívida/PIB seria de 2,1% do PIB.

Dado esse cálculo de referência, vamos observar o que ocorreria em dois cenários com premissas distintas: no primeiro (I), aplicaremos a regra da PEC do Teto sem modificações; e no segundo (II), aplicaremos a regra com modificações.

Nos dois cenários, considero as seguintes premissas: o PIB real crescerá em média 2,6% ao ano entre 2017 e 2035, partindo de uma queda real de 3,5% em 2016. Em ambos cenários, em 2016, a despesa cresce perto de 1% em termos reais. A partir de 2017, as premissas se alteram.

No cenário I, as despesas crescem pela inflação passada. Já no cenário II, os gastos têm dois padrões de crescimento em dois períodos distintos. Entre 2017 e 2025, o gasto cresce pelo centro da meta de inflação (4,5%) e, entre 2026 e 2035, o gasto cresce pela meta de inflação mais o PIB previsto para o ano pela pesquisa Focus, conforme divulgada pelo Banco Central. Os resultados são plotados no gráfico.

Cenários para o resultado primário do governo federal (% do PIB)
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Elaboração própria

 

Como se vê, o cenário I produziria déficits mais profundos no início do período de vigência da PEC do Teto, o que se explica pela inflação mais elevada neste período, base para a evolução do gasto. Basta ver, por exemplo – como alertou Marcos Lisboa em recente artigo para a Folha de S. Paulo -, que a aplicação da PEC para o ano que vem levará a uma alta real do gasto primário, já que a inflação estará perto de 5,0% e, em 2016, ela encerrará em 7,2%. Para ter claro: enquanto a inflação está caindo o governo terá garantido um crescimento real do gasto público.

Ainda no cenário I, a convergência para um resultado primário positivo ocorreria apenas a partir de 2024. Por outro lado, o resultado primário passaria a crescer monotonicamente atingindo 6,3% do PIB em 2035. Não é razoável imaginar um cenário como este. Não é um resultado social ou econômico desejável, uma vez que imporia um grau de austeridade muito superior ao necessário para estabilizar a relação dívida/PIB. Como os deputados e senadores anteciparão, certamente, esses resultados, a PEC poderá ser prejudicada caso não seja bem calibrada.

No cenário II, fazemos essa tentativa de modificar a PEC. Resultado principal: os déficits primários seriam menores nos anos iniciais e a convergência ao resultado primário positivo já aconteceria entre 2021 e 2022. Além disso, o esforço fiscal aumentaria até um nível perto de 3% do PIB, estabilizando-se em torno desse patamar. Trata-se de algo mais sensato e politicamente mais inteligente, já que o nível necessário para estabilizar a dívida/PIB estaria superado , mas o esforço imposto à sociedade não seria impeditivo, como no caso do cenário I.

O cenário II parece bem mais razoável, mas ainda cabe uma pergunta, que é essencial: a como produzir um esforço mais forte, nos anos iniciais da regra, conforme previsto no cenário II?

A saída está na adoção de medidas emergenciais em paralelo à tramitação da PEC do Teto. Por exemplo, a aprovação do Projeto de Lei do Senado nº 204/2016, de autoria do então senador José Serra, que renderia à União R$ 55 bilhões no horizonte de um a dois anos. Além disso, promover a revisão de todos os contratos de compras de bens e serviços pela administração pública, o que poderia, via combate ao sobrepreço, gerar economia anual de R$ 12 bilhões. Outra ação importante é interromper todos os reajustes e contratações no serviço público por um período indeterminado. Finalmente, seria importante rever uma parte das desonerações concedidas nos últimos anos, com economia estimada em R$ 30 bilhões/ano.

Como medida mais estrutural para sustentar a PEC do Teto ao longo de um período de vinte anos, a fixação de um limite explícito para o gasto com pessoal é essencial. Sem isso, o custo do ajuste recairá sobre dois conjuntos de gastos: investimentos e gastos sociais (incluindo saúde e educação). Minha proposta é que o gasto cresça a 3% ao ano, em termos nominais, até 2019. A partir de 2020, ele crescerá a um ponto abaixo da meta de inflação (3,5%) e, a partir de 2026, poderá crescer a 4,5%. Sem colocar o dedo nessa ferida, a PEC não servirá para absolutamente nada.

Se essa regra auxiliar para o gasto com pessoal for aplicada e respeitada, os demais gastos, incluindo saúde e educação, ficarão estáveis, em termos reais, entre 2017 e 2025. A partir de 2026, a taxa crescimento dessas despesas começará a acelerar, iniciando em 2,5% ao ano e terminando 2035 em algo como 4,0% de taxa de aumento real. No cenário I, os demais gastos não teriam ganho real até o final do período de vinte anos.

Um quarto problema está na dimensão do período de vigência da regra do teto. Politicamente, é difícil tomar decisões que mantenham Ulisses longe do tentador canto das sereias por um período tão longo de tempo. A possibilidade de revisão da regra, no meio do prazo, é uma boa ideia, mas uma alternativa não desprezível seria reduzir o prazo para dez anos.

Quando discutimos o terceiro problema, ficou claro que as modificações propostas vão ajudar a atenuar os efeitos fiscais excessivamente austeros produzidos pela PEC pura. Mesmo assim, antevejo que será importante colocar a discussão do prazo na mesa desde já.

São estes os quatro pontos que apresento para discussão. Há outros, não menos importantes, como a questão da adoção do critério de caixa, e não de competência orçamentária, para apuração do cumprimento do teto. Adotar o critério de pagamento reforça as práticas de postergação de despesas e contratação de restos a pagar, sem mencionar as famigeradas pedaladas fiscais. O ideal seria fixar como critério básico o empenho, e não o pagamento. Afinal, o empenho já revela o compromisso de gastar, que é o que importa do ponto de vista fiscal.

Finalmente, melhor detalhar a PEC preservando sua essência do que deixá-la aberta a uma miríade de propostas de mudanças que já estão surgindo no Parlamento. Quanto antes o governo entender que empurrar na goela do Congresso uma proposta genérica e não detalhada é uma estratégia ruim para aprovar a PEC, melhor será para o país.

A prioridade zero, na política econômica, é colocar as contas do governo em ordem e, para isso, será preciso uma maior sofisticação nas propostas e na estratégia adotada na política fiscal.

 

Este texto foi originalmente publicado  na página do Instituto Teotônio Vilela, em 12 de setembro de 2016. Disponível em: http://itv.org.br/pensando-o-brasil/economia/os-quatro-problemas-da-pec-do-teto

 

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Sobre o Autor:

Felipe Salto

Felipe Salto é assessor parlamentar no gabinete do senador José Aníbal e autor do livro "Finanças Públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade" (Editora Record, 2016)

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6 Comentários Comentar

  • Caro Felipe, parabéns pelo levantamento minucioso e preciso sobre o tema. A minha pergunta é: você, juntamente com o Sen. José Aníbal, proporão estas modificações na proposta original do governo assim que a matéria chegar ao senado?

  • Vejo a PEC com uma certa desconfiança, apesar de ver como necessário controlar a trajetória das despesas primárias. Em particular, parece-me draconiana a queda da despesa federal per capita na área de saúde. O mesmo temor vale para outras áreas como programas de transferência de renda, como o bolsa família. Apesar de a PEC não impor a queda, o risco de queda como consequência da PEC é real.

    Sobre reforma da previdência: se for verdade, como alguns economistas já apontaram, que só depois de vários anos é que a despesa previdenciária pararia de crescer 4 pontos percentuais a mais que o PIB, as demais despesas teriam que ter queda real de mais ou menos 4% para respeitar o teto. Como educação e saúde possuem o piso protegido pela PEC, as despesas restantes teriam que ser praticamente extintas, ou então o governo iria sofrer as sanções da PEC ano após ano, num cenário de paralisia.

    Outro ponto: não vi até agora, nos cenários considerados nas simulações dos economistas, a possibilidade de termos juros menores. Ora, se a PEC visa possibilitar crescimEnto econômico e uma SELIC neutra menor, o que aconteceria se o Brasil começasse, daquI a 6 anos, a crescer 3% a.a. com uma taxa de juros real de 2%? Esse seria o cenário “vai que dá certo?” da PEC. obviamente não fiz as contas, mas minha intuição é que estaríamos gerando um superávit primário colossal e totalmente sem necessidade. Não poderiámos melhorar infraestrutura nem serviços públicos – todo o aumento da arrecadação seria canalizado para a redução da dívida, o que não faz muito sentido.

  • As críticas são inúmeras sobre os efeitos da PEC 241, o que nos deixa a todos com muitas desconfianças… é necessário que os esclarecimentos cheguem em linguagem mais direta à população. Ao que parece, tem boa parte das opiniões de que as medidas – PEC 241 – são necessárias, naturalmente, mas pergunta-se: será que esse remédio não é tão amargo que possa exterminar o doente (sociedade)?

  • A PEC é um mal necessário.Não se colocou que a mesma pode favorecer outras reformas que estão travadas há anos, como a tributária, por exemplo.E um segundo ponto, do mesmo jeito que estão aprovando-a agora, não pode-se aprovar outra num governo futuro e derrubar tudo que está aí? Concordo com “estas falhas” descritas, mas, temo em ceder alguma coisa e acabarmos jogando a água da banheira com bebê e tudo mais.A rigidez sinalizará ou se traduzirá em confiança, que sabemos, será fundamental para a retomada de um ciclo econômico virtuoso.

  • Não vejo nenhuma análise sobre o que representa a dívida pública com relação às despesas do governo. Não vejo nenhuma medida draconiana ser proposta contra o pagamento dessa dívida, mais parece tabu, nenhum economista se detém em analisá-la detalhadamente, sobre o que representa ao país pagar juros que são capitalizados(juros sobre juros). A corda só rompe do lado mais fraco.

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