out
24
2016

Por que tributar o consumo?

1. Resumo

A tributação do consumo tem seu lugar no sistema tributário, em importância nada inferior à do Imposto de Renda. A alegada superioridade distributiva do imposto de renda repousa em argumentos frágeis. O Imposto de Consumo permite melhor blindagem contra privilégios que o Imposto de Renda, além de apresentar qualidades econômico-sociais difíceis de encontrar em qualquer outro imposto.

 

2. Introdução

Há quem diga que no Brasil andamos mal ao tributar o consumo e que, para sermos justos, deveríamos tributar mais a renda, aliás como o fazem os países do Norte maravilha. “Diferentemente do que ocorre nas economias desenvolvidas, entretanto, a carga brasileira é concentrada em tributos indiretos e regressivos, não em tributos diretos e progressivos”.

Há quem diga que os impostos sobre o consumo são por definição regressivos (pois os pobres consomem porção maior de sua renda do que os ricos) e que por isso esses impostos deveriam ser reduzidos, aumentando-se reciprocamente os impostos sobre a renda. “Impostos indiretos são reconhecidamente regressivos, porque suaincidência não tem como referência a renda do consumidor, mas apenas o seu consumo”.

Há quem diga que não somente os impostos sobre a renda deveriam ser maiores como deveriam ser mais progressivos, elevando-se as alíquotas para os rendimentos elevados. “Um sistema de tributação sobre a renda mais progressivo atenuaria as desigualdades distributivas”. “Sugere-se uma quarta alíquota, de 35%, igual à alíquota superior da Argentina, e outra de 45%”.

São ideias antigas, persistentes, simples e persuasivas. Mas equivocadas.

 

3. Tributação do Consumo e da Renda

Tributar o consumo não é diferente de tributar a renda. São duas formas de aplicar impostos sobre a mesma realidade. AuferirRenda é adquirir meios, Consumo é a utilização dessa renda. Em cada ano, a Renda (R) corresponde ao Consumo (C) mais a Poupança (P) líquida: R = C + P. Num modelo simples de vida econômica, no primeiro período (Juventude) as pessoas nem obtêm renda nem poupam (R = P = zero) e o Consumo é custeado por pais ou responsáveis. No segundo período (Vida adulta), a Renda excede o Consumo e P é positiva. No terceiro período (Velhice), a Poupança tende a ser negativa já que a Renda é inferior ao Consumo. Considerando o ciclo de vida inteiro e abstraindo de herança, Renda e Consumo se equivalem. Durante a vida, a poupança passa de positiva a negativa, cumprindo seu papel de transferir meios para o futuro.

Que dizer da herança deixada pela pessoa ao falecer? Herança é a diferença positiva entre Renda e Consumo durante a vida. É o consumo post mortem… Quando há herança, o equilíbrio na tributação entre os dois fluxos (Renda e Consumo) se estabelece através de tributação da Sucessão (que tem natureza de Estoque) por imposto separado. A tributação de heranças e doações é complementar à tributação de renda e consumo.1

Concentrar o estudo de progressividade/regressividade na vida adulta – como acontece – oferece uma visão incompleta. Em relação à Renda obtida, na Vida adulta a tributação da Renda é mais pesada que a do Consumo, e na Velhice a tributação do Consumo é mais importante que a da Renda. Considerando toda a extensão da vida, Renda e Consumo são duas faces da mesma moeda.

 

4. Tributando o Consumo, sem Pedir Desculpas

A ojeriza contra a tributação do consumo não se justifica. Primeiro, porque no ciclo de vida como um todo a tributação do Consumo não é nem progressiva nem regressiva: ela é proporcional. Proporcional ao Consumo e, como demonstrado acima, também proporcional à Renda de toda a vida. Segundo, porque a Renda pode ser vista como compensação pela contribuição que a pessoa faz para o produto econômico social (salário que recebe pelo trabalho, lucro que recebe por tomar riscos, aluguel ou royalties que usufrui por oferecer seu imóvel ou bem intangível ao uso por outrem etc.), enquanto que o Consumo corresponde ao que a pessoa retirou desse produto coletivo para seu desfrute pessoal. As bases filosóficas da tributação do Consumo não são menos sólidas que a da tributação da Renda.2 E a tributação da Renda apresenta tantas oportunidades de evasão que a ilusória sensação de justiça que inspira desaparece na prática.3

O Estado moderno precisa tributar tanto a Renda quanto o Consumo. Toda base tributária (renda, consumo, propriedade, transações financeiras etc.) tem suas limitações, riscos de evasão, efeitos econômicos indesejáveis. Tivéssemos apenas um tributo (a quimera do imposto único), aquele que lograsse evadir esse imposto estaria livre de qualquer tributação. E o tributo único teria alíquota(s) tão elevada(s) que tornaria altamente compensadora a busca de isenções. Também tornaria irresistível a sonegação.4 A prática tem demonstrado que Renda e Consumo são as duas grandes colunas da tributação moderna.5

A tributação do Consumo pode ser progressiva–mas isso não seria uma boa ideia. Para tributar o Consumo de forma progressiva, basta deduzir, da Renda declarada anualmente, o montante de Poupança líquida realizada no ano (se a poupança tiver sido negativa, seria adicionada à renda). Depois disso, a tabela de alíquotas progressivas poderia ser aplicada normalmente.6 Este modelo, entretanto, apresenta objeções muito grandes do ponto de vista distributivo a menos que seja acompanhado de tributação elevadíssima sobre a herança como proposto por Stuart Mill. Além disso, o imposto de consumo progressivo seria um pesadelo do ponto de vista operacional: (1) teria que ser cobrado anualmente (imposto progressivo mensal não funcionaria); (2) quando cessasse de auferir Renda, o contribuinte teria que ser tributado sobre a diminuição do valor de seus ativos, o que elevaria a complexidade; e (3) operacionalmente o tributo (sobre renda consumida) seria muito semelhante ao atual imposto de Renda (que tributa a renda adquirida), o que poderia gerar a percepção de dupla tributação.

 

5. Escolhendo Bases Tributárias

A tributação do Consumo pode ser aplicada mais generalizadamente que a da Renda. Hoje, um ministro de tribunal superior pode, contra a mais simples lógica, decretar que certas verbas recebidas por magistrados têm caráter indenizatório, portanto estão livres do Imposto de Renda. Mas não tem poder para ditar que os bens consumidos pelos beneficiários com tais verbas estejam livres da tributação sobre o Consumo. A impessoalidade da tributação do Consumo torna-a mais robusta contra a incessante busca de privilégios para certas categorias econômicas.7

No Brasil, uma grande mudança de bases de Consumo para Renda poderia ser desastrosa para Estados e Municípios. Significaria encolher ICMS e ISS, impostos que são a espinha dorsal das finanças estaduais e municipais, e aumentar a receita do Imposto de Renda, que é apenas compartilhada com as entidades federativas subnacionais. A mudança colocaria em xeque a autonomia fiscal dos Estados, que depende crucialmente da receita do ICMS.

Tributar o Consumo não é tributar a Produção. A base da tributação do Consumo é a Produção consumida acrescida da Importação para consumo. Não pode ela portanto alcançar bens de capital, nem exportações, nem vendas entre unidades produtivas, nem ter caráter cumulativo. A não cumulatividade se garante pelo crédito do imposto pago nas vendas intermediárias (antes da entrega para consumo). A não oneração de bens de capital e exportações para o exterior se materializa pela pronta devolução de créditos acumulados por exportadores.

A tributação da Produção provoca danos à economia: menos produtividade, menos competitividade. A violação dos princípios mencionados no parágrafo anterior, os abusos da chamada “substituição tributária” (em que o imposto é cobrado em caráter final, fora do mecanismo de crédito, na etapa de produção ou importação), a tributação de exportações para outros Estados, a inexistência de crédito recíproco entre o ICMS e o ISS e a concorrência de impostos estaduais e federais sobre a mesma base resultam em perda de transparência, complexidade, insegurança jurídica, custos maiores da produção nacional e efeitos econômicos indesejáveis tais como a integração vertical8 e a perda de competitividade.

 

6. Conclusões

O imposto sobre o Consumo pode ser simples, geral e livre de privilégios. Embora recolhido pelos provedores de bens e serviços, um imposto de Consumo é suportado por indivíduos e famílias. Aplica-se igualmente a todos os setores econômicos, e cada empresa é mera intermediária entre Consumidor e Governo. Não existe “carga tributária setorial” nem existem razões para incentivos fiscais setoriais ou de outra ordem. O imposto pode ser simples de calcular, pagar e controlar tanto pelos agentes econômicos como pelo Fisco.

Para substituir os complexos tributos sobre bens e serviços, o CCiF propõe uma nova estrutura de tributação do Consumo.  A estrutura proposta pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) está baseada nos elevados princípios constitucionais da Simplicidade, Transparência, Neutralidade, Eficiência e Equidade e contempla as qualidades apontadas no parágrafo anterior. Um imposto (ou contribuição) geral sobre o consumo poderia substituir as contribuições PIS, Cofinse parte do IPI. Enquanto um imposto geral sobre o consumo, de receita compartilhada entre estados e municípios, poderia substituir os arcaicos ICMS e ISS.

_____________

1 A análise se torna algo mais complexa quando a pessoa que deixou herança também recebeu herança ou legado da geração anterior ou doação da geração corrente. Assunto para outra nota.

2“… the Equality of Imposition consisteth rather in the Equality of that which is consumed, than of the riches of the persons that consume the same. For what reason is there, that he that laboureth much, and sparing the fruits of his labour, consumeth little, should be more charged than he that, living idly, getteth little and spendeth all he gets; seeing the one hath no more protection from the Common-wealth than the other? But when the impositions are laid upon those things which men consume, every man payeth equally for what he useth; nor is the Common-wealth defrauded by the luxurious waste of private men.” Thomas Hobbes, Leviathan, cap. 30.

3 “It is to be feared, therefore, that the fairness which belongs to the principle of an income tax, cannot be made to attach to it in practice: and that this tax, while apparently the most just of all modes of raising a revenue, is in effect more unjust than many others which are prima facie more objectionable. ”(J.S.Mill, Principles of Political Economy, 1848, V.3.18).

4 Na França, a gabelle sobre o sal era tão onerosa que aqueles apanhados sonegando tinham seus ossos quebrados na roda. Essas punições contribuíram para a Revolução Francesa.

5 O enunciado acima não está a sugerir que não haja espaço para ampliar a tributação da renda. Diz apenas que se for esse o caso, deve ser ampliada a base do Imposto de Renda em seus próprios méritos, não em substituição à tributação do Consumo.

6 Este modelo, discutido por John Stuart Mill (op. cit.) e proposto por Nicholas Kaldor (An Expenditure Tax, 1955), foi aplicado durante certo tempo na Índia, no Paquistão e no Sri Lanka.

7 A Constituição de 1946 assegurava imunidade de Imposto de Renda para jornalistas, professores e magistrados (além do grosso dos subsídios parlamentares).

8 A integração vertical induzida pelo imposto consiste em a empresa produzir,ela mesma, componentes que seria mais econômico comprar de outras empresas.

 

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5 Comentários Comentar

  • É sério que estás argumentando com base no Principles of Political Economy do ano de 1848 e no Leviathan de 1651?

    • Pelo seu raciocínio devemos jogar fora todo o direito romano, filosofia grega, tratados econômicos de 1 século atrás, etc.

  • Também fiquei perplexo com tal argumento. A questão da eficiência e equidade tributária reside justamente em se equalizar o peso da tributação sobre impostos diretos (progressivos) e indiretos (regressivos). Ou não seria isso?

  • Muito interessante esta nova perspectiva, completamente divergente do que se ouve e se lê. E o mais importante: muito bem fundamentada! A questão deixa de ser que é errado tributar o consumo e torna-se estarmos tributando o consumo erradamente. É uma proposta que merece mais estudos, aperfeiçoamento e aplicação.

  • Interessante – e inovadora – a posição do artigo. Entretanto, há dois pontos que saltam aos olhos e, se possível, gostaria da sua explicação.

    O primeiro se refere à relação de tributação renda/consumo na vida adulta e na velhice, na qual a tributação sobre a renda seria mais pesada na vida adulta, ao passo que, na velhice, o peso incidiria sobre o consumo e que, ao fim de tudo, haveria uma equivalência entre as duas tributações. Considerando todas as oscilações da renda de uma pessoa ao longo da vida e comparando com a oscilação do consumo, parece-me não proceder a ideia de que tudo isso se equivaleria no final, uma vez que, apesar de haver uma “diminuição” a renda na velhice, o consumo se manteria com a mesma carga tributária. Em suma, na juventude haveria, na verdade, grande arrecadação via renda e via consumo, enquanto na velhice essa arrecadação seria provida apenas pelo consumo.

    O segundo ponto tem a ver com a impessoalidade do imposto. O discurso da generalidade da tributação pelo imposto, do jeito que se apresenta no artigo (“A impessoalidade da tributação do consumo torna-a mais robusta contra a incessante busca de privilégios para certas categorias econômicas”), parece tomar uma situação deturpada, muito particular, como regra. Veja o outro lado: uma vez que a carga torna-se absoluta (ex: pacote de açúcar – R$ 15,00; 30% imposto), o valor pago é tem repercussão diferente na renda do comprador: R$ 5,00 para o mais humilde é mais “representativo” do que para um cidadão de classe média-alta. Em linhas gerais, a impessoalidade do imposto sobre o consumo parece ter o lado negativo mais forte do que o positivo.

    No mais, parabéns pela iniciativa.

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