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2016

A ineficiência é sempre injusta?

Em meio à reconhecida polarização política, parece haver consenso quanto a um relevante tema: é preciso evitar que as instituições do Estado sejam apropriadas por interesses corporativos. Com justo motivo, personalidades de todos os espectros partidários, integrantes dos três Poderes republicanos, já externaram preocupações nesse sentido, desde o então Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República,  Gilberto Carvalho (2014), passando pelo Senador Cristovam Buarque (2016), até o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes (2016).

O justificado receio possui variados fundamentos. O mais evidente é que, ao tornar o Estado refém das corporações, acaba-se por corromper a representação parlamentar democrática, a tecnocracia executiva e a imparcialidade judicial. Contudo, há outra disfunção causada pelo fenômeno, que tem sido menos alardeada, apesar dos graves impactos econômicos gerados: a “miopia” ocasionada pela condução estatal por interesses segmentados imediatistas pode ser altamente nociva à realização do interesse público primário.

Tal “miopia” turva a perspectiva distante, isto é, de longo prazo; assim, os tomadores de decisões – Chefes do Executivo, parlamentares ou mesmo juízes – acabam se orientando unicamente pelos efeitos de curto prazo. Aliás, mesmo quando inexiste a pressão de grupos setorizados, por vezes as deliberações não maximizam o bem-estar. A esse respeito, a Análise Econômica do Direito tem muito a contribuir, conforme se verá no transcorrer destas linhas.

Quando se utiliza o instrumental da Análise Econômica do Direito para analisar normas jurídicas1, é comum procurar saber se determinada legislação (ou decisão) melhora ou piora a eficiência da sociedade. Afinal, é sabido que as normas criam um conjunto de incentivos aos indivíduos e empresas, com reflexos sobre a eficiência das transações econômicas.

A norma, ao aprimorar a eficiência da sociedade, contribui para o crescimento econômico, seja por via direta ao estimular a atividade econômica, seja por via indireta ao propiciar a redução de desperdícios de recursos públicos, como, por exemplo, quando foca melhor o alvo de um programa social.

No entanto, há que se ter em mente a existência de um possível dilema entre eficiência de curto prazo e de longo prazo quando acontece uma mudança regulatória. É possível que, num primeiro momento, exista uma perda de bem-estar social, mas, quando se considera a eficiência intertemporal e seu reflexo no crescimento econômico, a nova legislação pode ser considerada pertinente.

Cootere Schäfer(2012) discutem essa perspectiva com enfoque na inovação e seu papel no crescimento econômico. Começam com um exemplo em que não existe o dilema citado, como na regulação que combate cartéis. Nesse caso, a lei, que proíbe e penaliza a formação de cartéis, atua positivamente nas duas frentes, promovendo, a um só tempo, crescimento e eficiência, no curto e no longo prazo. Ao propiciar uma concorrência mais acirrada, a lei contribui para uma maior eficiência incentivando a inovação (oligopólios e monopólios tendem a não inovar, pois seus detentores não querem perder a posição privilegiada no mercado). Além disso, o fim dos lucros extraordinários incentivará o consumo, assim propiciando maior crescimento econômico (e menor concentração de renda).

Nesse caso, a mudança implementada por essa lei pode ser representada na Figura 1 por um deslocamento do ponto A para o ponto B, ou seja, acarreta mais eficiência e mais crescimento.

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No entanto, há leis nas quais há um claro trade-off no curto prazo, como as que asseguram a exclusividade na exploração de direitos de propriedade intelectual. Ganha-se de um lado, mas perde-se do outro.

A criação da propriedade intelectual justifica-se por conta de um problema econômico: uma falha de mercado que impede o oferecimento de um nível eficiente de inovação. Para resolver essa falha de mercado, criou-se, dentre outros institutos, a patente, que é um monopólio jurídico temporário para quem criar uma inovação, garantindo ao autor da invenção condição de obter retorno para os recursos investidos no processo de geração da nova tecnologia (Dosi, Marengo e Pasquali, 2007).

Como todo monopólio, a patente traz uma ineficiência embutida. O inventor, por ter poder de mercado, pode colocar o preço para a utilização de seu produto em um valor bem acima do ótimo social. Na prática, isso significa que a inovação será disseminada, mas não tanto quanto poderia ser.

Cooter e Edlin (2010) discutem esse dilema entre eficiência estática e crescimento econômico, provando que a perda de bem-estar no curto prazo pode ser compensada por ganhos nos próximos períodos (Welfare Overtaking Theorem).

No caso das patentes, desenvolvem o seguinte  raciocínio: o custo gerado num primeiro momento (preço mais alto, tanto em razão da ausência de concorrência, como para recuperar o investimento inicial necessário ao desenvolvimento da inovação), com consequente queda no consumo, pode ser compensado no longo prazo com uma maior taxa de crescimento que se sustente (estímulo ao investimento necessário para avanços tecnológicos).Ou seja, no longo prazo a queda de eficiência inicial terá sido compensada. Isso fará com que a nova norma seja eficiente do ponto de vista intertemporal, apesar de, no curto prazo, trazer embutida uma ineficiência.

Outro exemplo elucidativo sobre essa ocorrênciaé encontrado nos debates envolvendo o novo Código de Processo Civil. Esteve presente, no transcorrer de toda a sua elaboração, a preocupação acerca das diversas inovações contempladas no diploma. Decerto, haverá um custo inicial de adaptação (dos operadores do direito em geral), tanto na adequação à nova sistemática, como na interpretação dos comandos mais complexos. Acredita-se, todavia, que o benefício social experimentado no longo prazo superará a perda inicial de bem-estar.

Nesse caso, a perda de eficiência num primeiro momento consegue ser compensada por benefícios de médio e longo prazos a superarem o custo inicial? O fato de o país contar com uma legislação processual mais moderna trará maior crescimento econômico nos períodos seguintes? Em caso positivo, na Figura 1, esse movimento seria representado pela mudança do ponto B para o ponto C.

Outras aplicações do Welfare Overtaking Theorem podem ser encontradas no ordenamento jurídico brasileiro, como em tópicos constantes do direito falimentar. A lógica está presente no afastamento da sucessão nas dívidas tributárias e trabalhistasdo adquirente de filiais no âmbito da falência e da recuperação judicial (art. 60, parágrafo único e art. 141, II, ambos da Lei 11.101/05); do mesmo modo, na previsão da suspensão das execuções em curso contra o devedor quando este tem deferido o processamentodo seu pedido de recuperação judicial (art. 6º da Lei 11.101/05).Nos dois casos, há a imposição de uma ineficiência inicial, pois se dificulta o adimplemento obrigacional, por motivos óbvios. Em contrapartida, no primeiro caso, criam-se condições que facilitam a realização do ativo a preço próximo do real, assim viabilizando o pagamento dos credores e, em alguns casos, a continuidade da empresa; e, no segundo caso, se favorece a coordenação dos interesses dos credores no recebimento integral do crédito e concede-se, à empresa recuperada, um período para a sua reestruturação, com vistas a um retorno futuro. No médio e longo prazo, portanto, as medidas propiciam benefícios aos trabalhadores, credores e Estado, embora contemplem uma ineficiência de curto prazo.

A lição a ser extraída do teorema é que não se deve atentar tanto para ineficiências iniciais decorrentes da legislação, desde que essas ineficiências sejam comprovadamente superadas por aumento na taxa de crescimento econômico que se sustente no decorrer do tempo. Assim, deixar de aprovar determinada norma ou política pública porque há uma perda momentânea, desconsiderando os benefícios futuros, é entravar a realização do interesse público na maior extensão possível.

Há que se frisar, no entanto, que também existem ações governamentais extremamente deletérias fazendo o oposto, pois geram aparente aumento do bem-estar num primeiro momento, mas criam uma ineficiência que se propaga de forma negativa por várias gerações. Normalmente, essas ações nocivas estão relacionadas à incapacidade de o governo recusar o atendimento a pedidosde grupos de interesses ou à necessidade de obter rápido retorno eleitoral. Nesse conjunto, incluem-se atos que promovem o agravamento do déficit fiscal em detrimento de toda a sociedade.

Na literatura econômica, esse assunto é conhecido como Political Budget Cycle (“ciclos políticos orçamentários”, Rogoff, 1990). O autor discute a estratégia do governante que tende a distorcer a política fiscal, cortando tributos, aumentando transferências e promovendo gastos que tenham visibilidade imediata. Tal comportamento do governante, provavelmente, geraria ou agravaria uma situação de déficit fiscal. Segundo esse estudo, o político mais votado é aquele que tende a gerar maior desequilíbrio nas contas públicas, contrariamente ao político preocupado com os recursos do Estado. Isso acontece porque se mostra mais eficiente, sob uma perspectiva de curto prazo, aquele que gera maiores déficits.

A esse respeito, advertiu Fernando Henrique Cardoso (2016):

Essa constatação [da desigualdade] só aumenta a angústia e a responsabilidade dos que dela têm noção. Vivemos no Brasil, à nossa moda, algo disso. Há responsáveis, mas não vem ao caso acusar. Provavelmente alguns deles, se forem intelectualmente honestos, estão se perguntando: por que não vi antes que endividar irresponsavelmente o País, mesmo que a pretexto de aumentar momentaneamente o bem-estar do povo e criar ilusões de crescimento econômico, é algo ruinoso, que as gerações futuras pagarão? Exemplo simples: quando foi derrotada a emenda na Previdência Social de meu governo que definia uma idade mínima para as aposentadorias, não faltou quem gritasse vitória. Alguns dos mesmos que década depois se deram conta de que não se tratava de “neoliberalismo”, mas de projetar no futuro próximo as consequências financeiras de tendências demográficas inelutáveis. Diante do estrago, não adianta chorar: é darmo-nos as mãos e ver se encontramos caminhos.

Sabemos que justiça e eficiência são conceitos distintos, mas, como ensina Timm (2014, p. 28), “a ineficiência é sempre injusta“, especialmente num país com extrema desigualdade social como o Brasil, no qual se deveria evitar com todas as forças o desperdício de recursos públicos.

Com a discussão realizada neste texto, podemos lapidar a advertência de Timm para esclarecer que a ineficiência poderá ser injusta quando o crescimento econômico no médio ou longo prazo não a superar e, para tanto, faz-se necessária a análise do impacto das normas e das políticas públicas numa perspectiva intertemporal, sob o risco de se deixar de tomar medidas positivas caso se considere somente o momento presente ou ainda pior, o risco de se decidir algo que trará malefícios para as gerações futuras. O Welfare Overtaking Theorem expõe um dos mais lesivos efeitos da “captura” do Estado por corporações: condicionar a atuação estatal ao atendimento de interesses imediatista, sem sopesá-los com a eficiência intertemporal e o bem-estar de longo prazo.

 

O presente texto está baseado no paper “O Dilema entre a Eficiência de Curto e de Longo Prazo no Ordenamento Jurídico e o Impacto no Crescimento Econômico”, disponível em http://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/TD200

 

Referências Bibliográficas

BRITO, Adriano (2016). PT se “autoassassinou” e governo está em fase terminal, diz ex-ministro de Lula, BBC Brasil, 22/01/2016. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160122_entrevista_cristovam_buarque_ab. Acesso em: 02/08/2016

CARDOSO, F. H. (2016). Um pouco de bom senso. Estadão, Opinião, 03/07/2016. Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,um-pouco-de-bom-senso,‌10000060660. Acessoem 10/07/2016.

COOTER, R.; Edlin, A. (2010). Law and Growth Economics: A Framework for Research. Berkeley Program in Law and Economics, Working Paper Series. Disponívelem: http://escholarship.org/uc/item/50t4d0kt

COOTER, R. D.; Schäfer, H. B. (2012). Solomon’s knot: how law can end the poverty of nations. New Jersey: Princeton University Press.

DOSI, G.; Marengo, L.; Pasquali, C. (2007). Knowledge, competition and innovation: is strong IPR protection really needed for more and better innovations? Disponível em http://repository.law.umich.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1093&context=mttlr. Acesso em 28/06/2016.

MARETTI, Eduardo (2014). Interesses corporativos impedem reformas no país, afirma Gilberto Carvalho, Rede Brasil Atual, 24/04/2014. Disponível em: http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2014/04/interesses-corporativos-impedem-reformas-no-pais-afirma-gilberto-carvalho-3731.html. Acesso em: 03/08/2016.

SALES, Robson (2016). Gilmar Mendes: Impeachment está “a caminho de se concretizar”, Valor Econômico, 10/06/2016. Disponível em: http://www.valor.com.br/politica/4596367/gilmar-mendes-impeachment-esta-caminho-de-se-concretizar. Acesso em: 03/08/2016.

TIMM, L. B. (2014). Direito e Economia no Brasil. Editora Atlas, São Paulo.

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1 O termo “normas jurídicas” é utilizado, aqui, em sentido bastante amplo, incluindo leis de efeitos abstratos e concretos, atos administrativos e mesmo decisões judiciais (enquanto normas do caso concreto).

 

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Sobre o Autor:

Fernando B. Meneguin e Tomás T. S. Bugarin

Fernando B. Meneguin é Mestre e Doutor em Economia. Bacharel em Direito. Consultor-Geral Adjunto, Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal. Pesquisador do Economics and Politics Research Group – EPRG, CNPq/UnB. Tomás T. S. Bugarin é Pós-graduando e Bacharel em Direito. Advogado. Pesquisador do Economics and Politics Research Group – EPRG, CNPq/UnB.

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4 Comentários Comentar

  • Prezado Fernando,
    Inicialmente, gostaria de parabenizá-lo pelo texto e pela originalidade da abordagem.
    Os temas tratados são muito instigantes e me despertaram o desejo de contribuir com o debate. É neste sentido que trago algumas considerações para reflexão.
    Inicialmente, acho discutível afirmar que “A norma, ao aprimorar a eficiência da sociedade, contribui para o crescimento econômico, seja por via direta ao estimular a atividade econômica, seja por via indireta ao propiciar a redução de desperdícios de recursos públicos….” me parece que há uma supervalorização das normas, como se estas não fossem elaboradas por ser humanos falíveis e movidos, muitas vezes, por interesses que não podem ser classificados exatamente como “nobres”. É uma afirmação complexa para quem convive diariamente com uma série de normas brasileiras esquizofrênicas e contraditórias.

    O segundo ponto que me chama atenção no texto é em relação a questão das patentes. Acredito que seria importante para a argumentação do texto, citar que a patente, em sua essência, trata-se de uma “troca”. Qual seja: o Estado concede um monopólio temporário e, em troca, o depositante da patente revela de forma detalhada todos os “segredos” de sua invenção, de forma que esta seja “reproduzível” ao final da vigência do monopólio. Acredito que este seria um ótimo benefício a longo prazo, conforme a abordagem do texto.

    O texto parece classificar as normas em duas categorias, aquelas que trazem benefícios momentâneos e são deletérias a longo prazo; e as que trazem dificuldades a curto prazo mas que acarretam em benefícios a longo prazo. Entretanto, me parece ser importante citar uma terceira categoria, composta por um grande número de normas que trazem prejuízos sistêmicos no curto, médio e longo prazos. Em que pese o fato de terem sido elaboradas por pessoas bem intencionadas.

    Agradeço a oportunidade de apresentar minhas questões.

    Atenciosamente,
    Rafael de Andrade

  • Olá, Rafael. Muito obrigado pelo comentário!
    As normas, juntamente com outras instituições, criam as regras do jogo para vivermos em sociedade e, por isso, elas têm um papel fundamental no desenvolvimento econômico. Concordo com você que várias normas foram construídas de forma errada, sem uma prévia avaliação que possibilitasse uma previsão mínima dos efeitos da norma. Com isso, temos leis, como você disse, que geram prejuízos no curto, médio e longo prazos! Esse problema pode ser evitado com a utilização de algumas ferramentas, como a avaliação de impacto legislativo.
    Sobre as patentes, há um texto que escrevi que aborda o tema com mais detalhes. Talvez lá o assunto fique mais claro.
    http://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td198
    Muito obrigado pelo interesse e por propiciar a discussão!
    Grande abraço.
    Fernando Meneguin

  • Excelente texto, como sempre. Gosto muito dos posts deste site, pois esclarecem conceitos e teorias técnico-científicas de forma elucidativa, didática. Parabéns pelo trabalho dos senhores.

    Quanto ao tema em comento, é da maior procedência. Pouco se estuda a análise econômica do Direito, sendo um campo de pesquisa realmente em aberto no Brasil. Pergunto-me se a democracia pode progredir de fato sem estudos de impacto das normas no campo econômico e social, algo raro de se ver, principalmente nos municípios e estados. A dicotomia entre efeitos imediatos e duradouros das normas também é algo minimamente abordado, quiçá pensado conscientemente pelos gestores públicos e operadores do Direito.

    • Obrigado, Leandro.
      Muito bom ter esse retorno de vocês.
      Grande abraço.

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