9
2021
Distorções das emendas parlamentares continuam se agravando


Distorções das emendas parlamentares continuam se agravando
E o noticiário sobre esse assunto continua a revelar aberrações
Por Roberto Macedo
Volto e voltarei a escrever sobre essas emendas, pois constituem uma das grandes distorções do sistema político brasileiro. Refiro-me às verbas que parlamentares federais colocam no Orçamento, particularmente em benefício de prefeituras de cidades onde cultivam suas bases eleitorais, de olho em assegurar votos em futuras campanhas de reeleição.
O valor total dessas emendas cresceu ao longo do tempo, e elas foram objeto de emenda constitucional. Mas é possível argumentar que mesmo assim seriam inconstitucionais, assunto ao qual voltarei mais à frente.
Há quatro tipos de emendas: a individual, do próprio parlamentar, as apresentadas pelo relator-geral do orçamento, as oriundas de comissões e as de bancadas estaduais. O total das dotações alcançou as expressivas cifras de R$ 36,2 bilhões em 2020 e R$ 33,8 bilhões em 2021. É interessante verificar que são valores comparáveis às dotações do programa Bolsa Família, de R$ 29,5 bilhões em 2020 e R$ 34,9 bilhões em 2021. Mas esse programa tem reconhecidos méritos, chegando a perto de 15 milhões de famílias e a muito mais pessoas se contados os dependentes familiares.
As emendas atendem a interesses dos parlamentares e de seus beneficiários, e destinam-se principalmente a projetos municipais. São penduricalhos do Orçamento federal, já que não se destinam a finalidades típicas desse orçamento como, por exemplo, uma rodovia ou um porto marítimo que servisse a vários estados.
Volto novamente à avaliação dessas emendas por Cecília Machado, professora da Fundação Getúlio Vargas, em artigo na Folha em 13/4/21: “Na prática, a execução descentralizada e atomizada das emendas … pode encontrar … desafios na sua implementação … Primeiro, a discricionariedade individual dos parlamentares na escolha de projetos vem ao custo de uma avaliação mais ampla de alternativas para a aplicação dos recursos, e … é falha na identificação de ações prioritárias. … muitos municípios, especialmente os menores, não têm levantamento prévio de suas necessidades … com critérios técnicos … Inexistem critérios de necessidade ou custo-efetividade dos projetos, que passam a seguir lógica populista ou eleitoral … ainda que os maiores gargalos possam estar em outras regiões ou municípios”.
A autora apontou também outros defeitos das emendas. Uma implicação muito relevante de sua análise é que a pulverização, e a falta de critérios na distribuição das emendas, faz com que não atentem para o bem comum dos brasileiros, o que é indicativo de um comportamento aético dos parlamentares.
E o noticiário sobre o assunto continua a revelar aberrações. Uma tem sido objeto de reportagens deste jornal centradas no chamado orçamento secreto. Segundo a última matéria, que vi no site do jornal em 25/6, dos repórteres Breno Pires e André Shalders, recorrendo às emendas do relator “parlamentares aliados indicaram transferências em valores muito superiores àqueles aos quais têm direito pelas tradicionais emendas ao orçamento – que são as individuais e as de bancada. As indicações, definidas nos bastidores, são oficializadas por meio de ofícios ocultos ao público”. Assim, o destino final dos recursos não consta da lei orçamentária, mas só posteriormente pelo meio mencionado, o que é um absurdo.
Segundo a mesma matéria, o Tribunal de Contas da União considerou o procedimento inconstitucional. Uma das transferências realizadas dessa forma chama a atenção. A prefeitura de Tauá, sob comando de Patrícia Aguiar, mãe do relator-geral do Orçamento de 2019, Domingos Neto (PSD-CE), foi beneficiada com R$ 146 milhões em 2020, o que dá uma média de R$ 2.476,77 por habitante, enquanto a capital cearense, Fortaleza, teve valor per capita de R$ 77,85. E por aí vai o dinheiro do contribuinte…
Volto agora à minha visão da inconstitucionalidade das emendas em geral, apontada em artigo neste espaço em 21/4. A Constituição, no seu artigo 4.º, diz que todos são iguais perante a lei, uma de suas cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas por reformas constitucionais.
Há tempos tinha a curiosidade de saber se não haveria uma hierarquia de princípios constitucionais. Pesquisando o assunto na internet, encontrei um texto do jurista Douglas Cunha[1] onde é dito o seguinte: “Embora não exista hierarquia entre normas constitucionais originárias (acrescento: como o artigo 4.º citado) … as emendas constitucionais (normas constitucionais derivadas) poderão, sim, ser objeto de controle de constitucionalidade”.
Está aí, portanto, um caminho para argumentar pela inconstitucionalidade das emendas, pois infringem o referido artigo 4.º, ao criarem duas categorias de candidatos: os incumbentes, que buscam a reeleição e usam as emendas como um instrumento de suas campanhas, e os candidatos sem mandato e sem acesso a elas.
Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 1° de julho de 2021.
[1] (https://douglascr.jusbrasil.com.br/artigos/616260325/a-piramide-de-kelsen-hierarquia-das-normas)
Recomendações de artigos:
Inscreva-se
Categorias
- Categorias (1)
- Coronavirus (10)
- Coronavirus (3)
- Crescimento e eficiência da economia (139)
- Desenvolvimento sustentável (1)
- Direito e economia (66)
- Economia (2)
- Economia (7)
- Educação e saúde (2)
- Finanças públicas e gestão pública (153)
- Inflação, juros e taxa de câmbio (23)
- Infraestrutura e petróleo (46)
- Instituições (2)
- Instituições (6)
- Outros (18)
- Podcast (5)
- Proteção ambiental (6)
- Redução da pobreza e redistribuição da renda (25)
- Reformas estruturais (1)
- Reformas Estruturais (4)
- Regulação (77)
- Regulamentação (4)
- Relações de consumo (5)
- Relações econômicas com o exterior (14)
- Relações Internacionais (1)
- Relações Internacionais (1)
- Reproduções (67)
- Trabalho, salário e previdência (55)
Últimos artigos
- PIB brasileiro está mal internacionalmente, segundo o FMI
- Poupança cai e também estimula o PIB
- PIB seguirá estimulado em 2022, mas 2023 é outra história
- Renovando o Meio Ambiente e a Segurança nas Rodovias: O Programa Renovar
- Limitações ao Ajuste Fiscal pelo Lado da Receita
- Uma leitura a respeito da gestão imobiliária da União: O caso dos Fundos de Investimentos Imobiliário com o patrimônio da União
- Efeito Fim de Jogo nas Concessões de Eletricidade
- Estaria a saga da regulamentação do lobby no Brasil perto de seu fim?
- Emenda Constitucional nº 123, de 14.7.2022: Aspectos Fiscais e Orçamentários¹
- 5G: Conectando o Brasil com o Futuro