nov
28
2016

Morte severina e mitos sobre a reforma da Previdência

“Morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. A morte severina do poema de João Cabral de Melo Neto se reflete na expectativa de vida ao nascer. Este indicador é afetado por mazelas nacionais como a mortalidade infantil e a morte de jovens por causas externas (homicídios, trânsito). Grosso modo, a expectativa de vida ao nascer está relacionada com a idade média com que as pessoas falecem no país.

Este dado vem sendo equivocadamente usado para justificar que uma reforma da Previdência faria as pessoas “trabalharem até morrer”. Seria injusto estabelecer uma idade mínima, por exemplo, de 65 anos, se em alguns Estados a expectativa de vida é de 66, 68 anos.

Na verdade, o indicador relevante nesta discussão não é a expectativa de vida no nascimento, mas a expectativa de sobrevida na idade de aposentadoria. É por conta dela que se diz que estamos vivendo muito mais, o que pressionaria a Previdência. A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é afetada pela morte severina.

Nas idades médias em que se dão a aposentadoria por tempo de contribuição no Brasil, 55 anos para homens e 52 anos para mulheres, a expectativa de sobrevida é respectivamente de 24 e 30 anos. Assim, a expectativa de vida é de 79 anos para homens e 82 anos para mulheres, bem acima da expectativa de vida ao nascer (72 para eles, 79 para elas), e dos 66 anos do meme “trabalhar até morrer” que circula nas redes.

Figura 1 – “Trabalhar até morrer”

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De fato, mesmo com ganhos expressivos na redução da mortalidade infantil, a expectativa de vida dos homens ao nascer cresceu nas últimas décadas menos da metade do que cresceu a expectativa de sobrevida dos mais velhos. Junto com a veloz redução da taxa de natalidade no país, é isso que pressiona a Previdência e seu desequilíbrio atuarial (medido em trilhões).

A expectativa de sobrevida em idades mais altas não é perfeitamente correlacionada com a renda de um país. Parte da falência da previdência na Grécia se explica pela alta expectativa de vida dos idosos: uma das maiores da União Europeia, apesar de o país ser o patinho feio do grupo. No mesmo sentido, a OCDE estima que nas próximas décadas a sobrevida das brasileiras será maior do que as das americanas ou dinamarquesas, que moram em países muito mais ricos.

O uso da expectativa de vida ao nascer no debate previdenciário, além de incorreto, é incômodo: usa-se a mortalidade infantil para justificar transferências para grupos de faixas etárias mais avançadas.  Esta não é uma questão trivial, já que a pobreza no Brasil está desproporcionalmente concentrada nas crianças.

A discussão da distribuição de renda se relaciona também a outro mito da reforma da Previdência: o de que uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição prejudica os mais pobres, que ingressam cedo no mercado de trabalho. Diversos estudos tem mostrado que os trabalhadores mais pobres não usufruem da aposentadoria por tempo de contribuição. (tema discutido anteriormente no blog)

A exigência de 35/30 anos de tempo de contribuição desta modalidade de aposentadoria não pode ser cumprida por uma ampla parcela da população, que tem uma inserção precária no mercado de trabalho, alternando em sua vida períodos de desemprego, informalidade e carteira assinada. Na verdade, a maioria da população recorre a outro tipo de aposentadoria, a por idade, que requer 15 anos de carteira assinada, mas idade mínima de 65 anos para homens e 60 para mulheres.

Outra parcela da população, com menos de 15 anos de contribuição, só pode recorrer a um benefício assistencial de um salário mínimo, com idade mínima de 65 anos até para mulheres. Assim, a idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição não pode prejudicar os mais pobres se para eles a idade mínima sempre existiu.

Não só a idade mínima para esta modalidade de aposentadoria afeta mais os com maior escolaridade como as regiões mais industrializadas do país. No Norte e no Nordeste, onde se trabalharia “até morrer”, a quantidade de aposentadorias por tempo de contribuição representa apenas 7% e 9% do total de benefícios pagos (metade do que é no Sudeste, 19%).

Para várias regiões e ocupações do país, outros pagamentos são mais relevantes, como a aposentadoria rural. É neste e em outros benefícios associados ao salário mínimo que deveria se concentrar a preocupação acerca dos efeitos da reforma da Previdência na desigualdade de renda.

Outro tema que merece ser visto com ceticismo é a tese de que a Previdência é superavitária, e de que seu déficit seria uma farsa. Há várias questões legítimas no debate sobre o que deve ser receita ou despesa do INSS, mas dizer que nosso problema previdenciário é resolvido com mudanças na contabilidade seria mito, ou para usar o termo do momento, algo que se aproxima de uma “pós-verdade”. O problema concreto é o crescimento da despesa, que decorre de um problema físico, demográfico.

Disputas em torno da contabilidade do sistema são naturais e ocorreram em outros países, mas não podem tirar o foco da questão principal. Ilustrativamente, até os militares não aceitam a contabilidade do seu regime, defendendo que o déficit deles é de metade do que vinha sendo entendido. Por sua vez, o TCU não aceita a tese de superávit no INSS.

Do lado da receita, deve ser lembrado que a Desvinculação de Receitas da União (DRU) historicamente teve como perdedores Estados e Municípios, não a Previdência. A União precisava de dinheiro: se aumentasse impostos, deveria dividi-los com os entes. O jeitinho, de sucessivos governos, foi aumentar contribuições e desvinculá-las via DRU. Este histórico destoa da “teoria da conspiração” de que o governo desvia recursos da Previdência para forjar um déficit e corte de direitos. Também precisa ficar claro que trazer recursos da DRU para expandir a Previdência significa retirá-los de despesas que já serão significativamente comprimidas com o crescimento da despesa previdenciária diante do teto de gastos a vigorar com uma eventual aprovação da PEC nº 55, de 2016, ora em tramitação no Senado.

Do lado da despesa, deve ser esclarecido que mesmo a clientela urbana do INSS apresentou déficits até 2009, com previsão de voltar a apresentá-los de 2016 em diante1. Este é um ponto importante para os que defendem que, sem os rurais, a Previdência é sempre superavitária.

Nos próximos meses o Brasil passará por um amplo debate sobre sua Previdência. Pelo seu tamanho, ela é uma grande conquista e um grande desafio. Discutiremos se financiá-la nos moldes atuais é insustentável ou se mudar suas regras é retroceder em direitos conquistados: o ideal é partir para este debate livre de crenças equivocadas.

Versão resumida deste texto foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, edição de 08/11//2016.

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1 O superávit temporariamente registrado teve relação com maior formalização da economia no período, e não com um equilíbrio atuarial estrutural do regime de previdência.

 

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Sobre o Autor:

Pedro Fernando Nery

Doutorando e Mestre em Economia (UnB). Consultor Legislativo do Senado da área de Economia do Trabalho, Renda e Previdência.

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2 Comentários Comentar

  • Em primeiro lugar quero assegurar que todos nós morremos, ou deixamos de progredir aos 65 anos. A chave da vida útil é desligada e passamos a viver das reservas. Adeus criação e inovação.
    Também discordo sobre o uso da DRU como sendo independente do social quando as verbas utilizadas abrangem os recolhimentos sociais. Pior que foi elevado de 20% a 30% agora em agosto no governo Temer. Também a previsão de socorrer as dívidas públicas a infinitamente maior vem do social R$ 110,9 bilhões só em 2016 de verbas sociais.
    Fui funcionário de uma estatal de fomento por 20 anos e sustento por conhecimento que nenhum fundo social criado para socorrer o social e a produção sobrevive e acaba todos delapidados. A previdência é um desses casos e os fundos de pensão na maioria não desapareceram por serem intensamente fiscalizados por funcionários das próprias e assim mesmo foram e são roubadas.
    Os desvios e corrupções no INSS são coisas fabulosas de origens diversas por ser de repartição simples, sem controle e nem contabilidade.
    Por outro lado seria necessário ter sido implementado o fundo complementar como previsto na constituição de 1988, ou em 1976 quando criados os fundos de pensão que passaram a viger entre 1978 e 1980. Só que obrigatoriamente por capitalização e individualizados.
    Existe muito e muito mais, como o desmonte da política salarial e o desemprego ocorridos no governo FHC e já havia acontecido no governo Sarney e sendo um fundo que os da ativa sustentam os inativos já foi arre3bentado no governo FHC.
    O problema do Brasil é único, não existem estrategistas: aqueles que enxergam 50 anos a frente, além da consanguinidade corrupta que nunca vai ser corrigida. Quando não dá para meter a mão onera-se a prestação de serviços e a mão de obra acima do potencial econômico promovendo uma corrupção indireta.
    Para o caso da nova previdência deveria torná-la facultativa e o brasileiro aprender a poupar por si mesmo porque pelo que vem por aí em restruturaçãoi da CLT prometida o Brasil vai virar senzala para dois terços da população.
    É vergonhoso dizer que nós brasileiros não possuímos habilidade cognitiva em gerir e administrar, a não ser desfalcando dos erários ou de grupos de trabalhadores.

    • Obrigado pela mensagem, Parussolo!

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