fev
7
2018

O fator e o favor previdenciário

Em 6 de dezembro, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti publicou no JOTA o artigo Previdência: prendam os suspeitos de sempre. Contrário à reforma da Previdência discutida atualmente no Congresso, Robalinho reconhece que há um ‘problema’ previdenciário no País, mas ele estaria no Regime Geral (INSS).

O artigo critica as medidas que afetam os servidores públicos, especialmente os que ingressaram antes de 2003, já que reformas anteriores já teriam deixado a trajetória do Regime Próprio da União equilibrada no longo prazo. Assim, para Robalinho, os servidores teriam sido escolhidos como “espantalho” pelo governo, que desejaria criar um “inimigo externo”. O procurador também acusa o objetivo das medidas de irem “muito além da previdência”, uma vez que afetariam servidores de carreiras de estado que investigam forças políticas: teria a reforma da Previdência, portanto, “o objetivo final de manter o sistema político corrompido”.

Apesar de algumas considerações apropriadas – especialmente em relação à ausência dos militares da proposta -, há muito que ressaltar no texto do presidente da ANPR. Se é verdade que a situação futura do Regime Geral é muito mais grave do que a do Regime Próprio da União, também é verdade que os regimes próprios dos servidores dos entes subnacionais – na ausência de reformas – vão transformar vários Estados brasileiros em novos “Rios de Janeiros” nos próximos anos.

Igualmente, se é verdade que o menor desequilíbrio em longo prazo entre todos os regimes é mesmo o do Regime Próprio dos servidores da União, também é verdade que reformas anteriores ainda levarão tempo para surtir efeitos – o que diante do teto de gastos ameaça diversos investimentos e políticas públicas do governo federal. Os efeitos regressivos do ponto de vista da distribuição de renda também continuarão existindo por muito tempo: embora alcance poucas famílias, os regimes próprios seriam sozinhos responsáveis por 7% de toda a desigualdade de renda do país, segundo Pedro Souza e Marcelo Medeiros, os pesquisadores que estão na fronteira desta linha de pesquisa.

Para que o leitor entenda com mais clareza quais são as regras atuais do Regime Próprio (RPPS) dos servidores e como elas mudam na reforma, contemos a história de Antônio e Victor. Consideremos Antônio e Victor “gêmeos” para todos os fins: são trabalhadores que ingressaram no mercado de trabalho com a mesma idade, com uma mesma qualificação e em uma mesma profissão, receberam sempre a mesma remuneração, contribuíram sobre iguais valores e se aposentaram na mesma data: aos 55 anos, com 35 de contribuição.

Adicionalmente, suponha também o leitor que a média salarial ao longo da carreira de Antônio e Victor tenha sido de R$ 3 mil, e o último salário, de R$ 4 mil. Agora, suponha uma única diferença entre Antônio e Victor: Antônio trabalhava na iniciativa privada e está sujeito às regras do Regime Geral, Victor trabalhava no setor público e está sujeito às regras do Regime Próprio.

Antônio estará sujeito ao fator previdenciário, que aplicado a sua média salarial de R$ 3 mil, resultará em uma aposentadoria de cerca de R$ 2 mil1. Victor estará sujeito ao favor previdenciário, chamado de “integralidade”: se aposentará com os R$ 4 mil de último salário.

A integralidade ignora a média salarial de R$ 3 mil e a expectativa de sobrevida contida no fator previdenciário. Note que o termo integralidade pode confundir: ao contrário do que os segurados do INSS estão acostumados, o “integral” aqui se refere ao último salário, não à média salarial: com efeito, a aposentadoria não é a média integral, mas um valor maior do que a média.

No exemplo simples colocado, as regras diferentes entre os regimes levam a uma redução de R$ 1 mil sobre a média salarial de Antônio e um aumento de R$ 1 mil na média salarial de Victor, resultando em uma aposentadoria com o dobro do valor. Ressaltemos: Victor e Antônio sempre tiveram os mesmos salários e contribuíram sobre os mesmos valores.

A integralidade, ou o favor previdenciário como chamamos neste texto, é a principal fonte de iniquidade entre os regimes, e de pressão no gasto público. Contrariamente ao que algumas corporações veicularam nas redes sociais na última semana, o fato de servidores mais bem remunerados contribuírem sobre salários acima do teto do INSS não gera a contrapartida proporcional à integralidade. Se Victor ganhasse R$ 10 mil ou R$ 20 mil, certamente contribuiria com mais do que Antônio, mas o favor continuaria embutido.

Voltando à opinião de Robalinho, é verdade que servidores que ingressaram depois de 2003 não tem direito à integralidade, e os que ingressaram depois de 2013 (na União) possuem regras inclusive mais restritivas do que as do INSS (mesmo teto, idade mínima maior). O desafio é que o contingente de servidores com direito a esta vantagem – que o governo e os jornais chamam de privilégio – ainda é e será muito significativo, especialmente na próxima década. Em 2015, 93% dos servidores que se aposentaram na União tinham integralidade.

Diante do teto de gastos (Emenda Constitucional no 95, de 2016), os altos gastos com aposentadorias e pensões do Regime Próprio comprimem despesas de políticas públicas e investimentos na União, inclusive os voltados à população mais pobre – ainda que a tendência partir da década de 2030 tenda ao equilíbrio. Frisa-se que diante do teto e sem reformas, o próprio reajuste do funcionalismo de servidores ficará pressionado, o que adiciona complexidade à atuação corporativa de entidades como a ANPR: os interesses de servidores pré-2003 definitivamente se conflitam com os dos que ingressaram posteriormente.

Neste sentido, é pertinente olhar os indicadores de deficit atuarial dos diversos regimes.  O resultado atuarial – superavit ou deficit – é considerado o indicador mais relevante para a saúde de um regime previdenciário. Ele se contrapõe ao resultado financeiro, que é um indicador corrente, do presente; enquanto o resultado atuarial indica o equilíbrio futuro. Simplificadamente, este é a soma dos fluxos futuros de receitas e despesas, trazidas a valor presente. Em um sistema estritamente equilibrado, não há deficit (ou superavit) atuarial.

O deficit atuarial do regime próprio na União é de R$ 1,4 trilhão. Observe que enquanto Robalinho tem razão de que a trajetória no Regime Geral (INSS) é muitíssimo pior (R$ 7,9 trilhões!), o valor não é nada desprezível. Em especial, o Regime Próprio da União possui as mesmas regras dos regimes próprios de Estados e Municípios, com deficits atuariais somados de R$ 5,4 trilhões, em entes que não podem emitir moeda e tem restrições a se endividar.

A alarmante situação previdenciária dos Estados é parcialmente explicada pela integralidade, conjugada com regras especiais de aposentadoria que afetam a maior parte dos funcionários, como professores, policiais e profissionais de saúde. Segundo o Banco Mundial, mesmo o rico Estado de São Paulo terá ao redor de 2030 o mesmo comprometimento da receita com previdência que o Rio, falido, tem hoje. Os Estados – e a prestação de serviços básicos à população – não resistirão a mais uma década com as atuais regras previdenciárias. Não há sentido em se opor a esta reforma porque haverá equilíbrio nos regimes próprios em 2035 ou 2040.

Então o que muda na polêmica versão atual da proposta? A mudança é simples. Servidores que ainda têm direito ao favor previdenciário, a integralidade, continuarão tendo direito a ela – desde que esperem até os 65 anos de idade (homem) e 62 anos (mulher) para se aposentar. Podem se aposentar antes disso? Sim, mas sem a integralidade. Neste caso, este servidor leva “só” 100% da média salarial.

Voltando ao exemplo de Antônio e Victor, Victor continuaria tendo direito à integralidade se esperasse até os 65 anos. Se ainda quisesse se aposentar antes disso, teria direito a 100% da sua média, de R$ 3 mil. O valor é certamente inferior ao último salário (R$ 4 mil), mas ainda muito acima do da aposentadoria de Antônio (R$ 2 mil). Por quê? Se não incide mais o favor previdenciário aumentando a média, tampouco incide algo parecido com o fator previdenciário: pode-se levar 100% dela.

Note que é, portanto, absolutamente falsa a afirmação de Robalinho em seu texto de que não há regra de transição para servidores (“quer-se que a nova idade mínima seja fixada no dia seguinte à eventual promulgação”). Sustenta o presidente da ANPR, antes de concluir com a frase “prendam-se os suspeitos de sempre” que batiza o artigo, que haveria um tratamento diferenciado e desrespeitoso com o servidor que tornaria a proposta inconstitucional. Perceba: só é necessário continuar contribuindo até os 65/62 anos para manter a integralidade. Isso não é necessário para quem quiser sair antes levando 100% da média.

Agora imagine Victor, chateado com a proposta, explicando para Antônio a injustiça de levar como aposentadoria sua média salarial, sem fator previdenciário ou qualquer outro índice que considere sua (longa) expectativa de sobrevida. Ademais, a possibilidade de aposentadoria com 100% da média só existirá para servidores que ingressaram antes de 2003 – uma clara concessão a quem já foi afetado por reformas anteriores e feito seu planejamento familiar de acordo com elas –, enquanto os servidores que ingressaram posteriormente ficam sujeitos ao mesmo cálculo que valerá para os trabalhadores do INSS.

Há outros pontos a discordar no artigo aqui comentado. De menos relevante, soa incorreta a afirmação que “na verdade, é banal e intuitivo que a despesa previdenciária é anticíclica”: ela parece acíclica, pois cresce vigorosamente independentemente da atividade econômica. Talvez alguns ainda a considerem prócíclica, porque os reajustes do salário mínimo (o valor da maior parte dos benefícios) são influenciados pelo crescimento do PIB, mas com uma defasagem de mais de 1 ano. Anticíclica dificilmente ela é – como podem ser benefícios da Seguridade como o Bolsa Família e o seguro-desemprego –, se não se reduziria quando o PIB voltasse a crescer, o que coadunaria com o argumento de Robalinho de que os deficits altos são conjunturais.

De mais relevante, é extremamente controversa a afirmação de que “o governo mente quando diz que a reforma não atinge os mais necessitados” e que irá “reduzir em 40% a aposentadoria dos que chegarem aos requisitos com o tempo mínimo de contribuição (15 anos)”. De fato isso seria extremamente preocupante, porque possui razão o procurador quando diz que os trabalhadores mais pobres têm dificuldade de comprovar tempo de contribuição.

No entanto, a proposta atual, contrariamente à versão original, mantém o mínimo atual de 15 anos de contribuição, não mudando em nada o requisito para estes trabalhadores. Principalmente, a PEC não propõe a desvinculação do piso previdenciário do salário mínimo. Esta vinculação faz com que a maior parte dos beneficiários da Previdência, especialmente os mais pobres, recebam como valor do benefício mais do que a média salarial com que contribuíram. Para eles, é irrelevante a fórmula de cálculo do benefício, pois sempre tende a estar abaixo do salário mínimo atual – o piso previdenciário pela Constituição – que foi muito valorizado nos últimos 20 anos, especialmente nos governos do Partido dos Trabalhadores.

Ilustrativamente, um trabalhador que tenha recebido sempre o salário mínimo desde os anos 90, e contribuído sobre ele, teria média salarial atualizada em 2017 de pouco mais de R$ 600. Qualquer fórmula de cálculo de aposentadoria, seja a da reforma ou seja a vigente, leva a um valor inferior ao salário mínimo atual. Com 15 anos, o menor tempo de contribuição exigido para aposentadoria, ele já tem a média salarial integral como benefício, ou mais que integral, uma vez que o piso previdenciário é de R$ 937. Quase 70% dos benefícios do INSS são de 1 salário mínimo.

Desta forma, a tese do presidente da ANPR em relação aos trabalhadores pobres do INSS não apenas contrasta com o fechamento de seu artigo (“É no regime geral que está o problema”), como não tem amparo à luz da PEC e da realidade previdenciária.

Finalmente, chama atenção o argumento de que objetivo final da reforma da Previdência é manter o sistema político corrupto, uma vez que ela afeta servidores de carreiras que “investigam, fiscalizam, processam, incomodam as forças políticas que estão no poder”.  Não seria o caso então de possibilitar logo a aposentadoria destes servidores, permitindo a corruptos que se livrem de seus investigadores? Grandes personagens da luta recente contra a corrupção no País estão se aposentando pelas regras atuais, como o delegado ex-diretor da Polícia Federal Leandro Daiello (51 anos), o procurador da Lava Jato Carlos Fernando dos Santos Lima (53 anos, que anunciou aposentadoria para o ano que vem), e o próprio ex-Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot (61 anos) que se aposentadoria após deixar o cargo.

Ademais, a estranha lógica que relaciona a reforma da Previdência com o combate à corrupção poderia induzir o leitor menos esclarecido a inferir como corolário –equivocadamente – que ações anticorrupção são usadas contra a reforma: um infeliz argumento que já foi usado por opositores da Lava Jato.

A lembrança do ex-PGR Rodrigo Janot, aliás, é oportuna para encerrarmos este texto. Em agosto, o PGR ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 476, relativa ao Plano de Seguridade Social dos Congressistas (também afetado pela atual reforma). Esta previdência parlamentar, que contrariamente ao senso comum exige tempo de contribuição de 35 anos, possui na prática idade mínima maior do que a do Regime Próprio dos servidores e não conta com integralidade, pagando valores médios que são pouco mais da metade das aposentadorias do Regime Próprio no Judiciário, no MP e no Legislativo. Ressalta-se que a ação do PGR não se refere ao Instituto de Previdência dos Congressistas (IPC), este sim com regras mais vantajosas, mas extinto em 1997.

Os argumentos trazidos na ADPF são extremamente pertinentes na discussão da reforma que aproxima o favor previdenciário do Regime Próprio ao fator previdenciário do Regime Geral. Peço licença ao leitor para encerrar o texto reproduzindo três trechos, convidando-o a refletir se os argumentos se mantêm se substituirmos os termos “agentes políticos” por “servidores”.

  1. “Além de igualdade de oportunidades, o princípio republicano busca assegurar tratamento igualitário a todos os cidadãos e repudia privilégio ou regalia que beneficie, sem fundamento jurídico suficiente, determinado grupo ou classe em detrimento dos demais. É refratário à instituição de privilégios, pois se baseia no
    reconhecimento da igual dignidade de todos os cidadãos, donde a temporariedade do exercício do poder, precisamente para impedir perpetuação de privilégios.”
  2. “Concessão de benefícios previdenciários com critérios especiais distingue indevidamente determinados agentes políticos dos demais cidadãos e cria espécie de casta, sem que haja motivação racional – muito menos ética – para isso”.
  3. “Os princípios republicano e da igualdade exigem que, ao final do exercício de cargo eletivo, seus ex-ocupantes sejam tratados como os demais cidadãos, sem que haja razão para benefícios decorrentes de situação pretérita, muito menos de forma vitalícia. Mesmo durante a ocupação de cargos é desejável que os mandatários do povo sejam tanto quanto possível tratados com direitos e deveres idênticos aos de seus compatriotas”.

Publicado originalmente no JOTA em 11 de dezembro de 2017.

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1 R$ 2.124, com o fator previdenciário de 0,708.

 

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Sobre o Autor:

Pedro Fernando Nery

Doutorando e Mestre em Economia (UnB). Consultor Legislativo do Senado da área de Economia do Trabalho, Renda e Previdência.

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