out
26
2016

Como as corporações de elite moldam o pensamento econômico do país?

1. O ajuste fiscal é uma farsa. Não seria preciso se o governo buscasse recuperar a dívida ativa. O rombo de R$ 180 bi é fichinha perto da dívida trilionária dos grandes devedores. Veja o sonegômetro. Em vez de fazer o ajuste, o governo deve investir nos procuradores capazes de recuperar esse dinheiro. Eles devem receber honorários para isso, como no setor privado (mas mantendo o salário fixo).

É preciso aprovar a PEC que torna o salário dos advogados públicos igual a 90% do dos ministros do STF. A Constituição tem que ser alterada para que esses órgãos tenham autonomia financeira. A carreira deve ser valorizada para que a dívida seja recuperada: não precisa de ajuste fiscal. O orçamento do órgão com essa missão deve ser o dobro.

2. Não existe déficit na Previdência: a reforma é desnecessária. Em parte porque há centenas de bilhões de dívida ativa decorrente de sonegação. Deve-se em vez de reformar a Previdência investir no combate à sonegação. Pode-se criar para auditores fiscais bônus por produtividade. Ou, como os advogados, vincular salários aos do STF.

3. A reforma trabalhista não precisa ser feita. A legislação trabalhista não é rígida: a culpa de dezenas de milhões de trabalhadores informais é da falta de fiscalização. Qualquer flexibilização é prejuízo para o trabalhador. Deve-se dotar a carreira de auditores do trabalho de condições para combater o problema. Entre outras, além de mais funcionários, é premente o bônus de produtividade (a fiscalização da informalidade também traz ganhos de arrecadação) e a vinculação do salário ao teto.

4. Querem extinguir direitos trabalhistas da Constituição e também a Justiça do Trabalho. A quem interessa uma legislação trabalhista mais simples e menos litígios? Ao patronato. É natural que para proteger o trabalhador a legislação seja complexa e precise de alta qualificação para ser bem entendida. A Justiça trabalhista deve ser forte e não sofrer cortes orçamentários. É ela, e não a legislação trabalhista, que é capaz de regular as relações de trabalho para que o mercado de trabalho funcione bem.

Argumentos como os desses quatro exemplos são muito populares em Brasília, pois simultaneamente: a) descartam medidas impopulares para fazer o país crescer (ajuste fiscal, reformas); b) apresentam alternativas fáceis (ex: uma reserva de dinheiro prontamente disponível), com uma narrativa de mocinhos contra vilões indefensáveis (sonegadores, patrões); e c) servem aos interesses corporativistas de um grupo de servidores públicos.

Esse é o lado pouco discutido do poder das corporações públicas: o de como podem moldar o pensamento econômico do país (o lado conhecido foi amplamente discutido nos últimos meses, quando dezenas emplacaram aumentos salariais em meio à crise fiscal.)

As soluções apresentadas por corporações são sedutoras: por vezes parecem quase mágicas. Tipicamente não possuem controvérsias, já que, quando apresentam perdedores, normalmente são vilões (quem vai defender sonegador?). Têm apelo também pelo ar científico porque, em tese, são propostas por especialistas da área, embora normalmente não tenham sido avaliadas em revistas acadêmicas ou congressos especializados: saem direto dos sindicatos para a Esplanada, o Congresso Nacional e a imprensa.

Certamente têm méritos. Não há absolutamente nada a se defender em sonegadores ou em patrões que exploram trabalhadores. A questão é a simplificação do debate. Por exemplo, entre os grandes devedores da dívida ativa estão empresas falidas, estatais, ou aquelas que devem porque há alguma relevante controvérsia jurídica não resolvida: não estão lá simplesmente porque uma carreira não é “valorizada”. Soluções mais complexas para um problema, nesse caso medidas do ajuste fiscal, podem ficar em segundo plano ou serem percebidas como mera iniciativa de algum “vilão” (mercado, neoliberais).

Essas soluções servem para, além de justificar os legítimos pleitos das corporações, aproxima-las de agentes políticos. As evidências apresentadas viram insumo para o discurso político, pelo apelo junto aos eleitores. Há uma simbiose. Nos sites das corporações1, é fácil encontrar relatos de reuniões com políticos, com a pauta misturando a defesa de algum direito difuso ou coletivo (contra algum projeto de reforma estrutural) e a valorização da carreira (a favor de algum projeto concedendo vantagens remuneratórias).

Como esses argumentos vão contaminar a opinião pública nos próximos meses? De um lado, as corporações vão surgindo com força como as primeiras vencedoras do impeachment. De outro, as medidas do governo que se avizinham serão impopulares.  Serão mais atraentes propostas maniqueístas que tenham culpados para se apontar, como as da intelligentsia brasiliense. Entre elas, as baseadas em ideias como a de que não existe déficit na Previdência ou a da lenda urbana de que o governo gasta 40% dos impostos com juros da dívida pública – duas ideias populares no debate que são criações principalmente de servidores de carreira de elite. Porém, as soluções realmente destinadas a recuperar a trajetória do país rumo ao desenvolvimento são muito mais complexas. Vamos resistir à tentação do pensamento mágico?

 

_______________

1 Os argumentos 1 a 4 foram diretamente retirados de páginas institucionais.

 

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Sobre o Autor:

Pedro Fernando Nery

Doutorando e Mestre em Economia (UnB). Consultor Legislativo do Senado da área de Economia do Trabalho, Renda e Previdência.

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16 Comentários Comentar

  • Muito bom o artigo.É lamentável que as grandes castas do Brasil continuem dando as cartas, com privilégios para poucos, em detrimento do sofrimento da maioria que não é articulada, e é pouco informada. Será que um dia venceremos este ciclo vicioso perverso? Quanto vale um voto, uma eleição, o status cor? Até quando vamos brincar de faz de contas nesta terra chamada brasil? Até quando trataremos os efeitos e não as causas reais dos nossos problemas? E como(talvez o mais importante) poderemos sensibilizar a população para não cair nestas armadilhas?

    • Obrigado pela mensagem.

  • Pedro
    Como sempre seu texto é ótimo. Cirúrgico, se me permite. A difusão da pauta de uns poucos como sendo o ganho de muitos me parece o aspecto central das dificuldades institucionais e políticas que apresentamos.
    Abraço.

    • Oliveira,

      Muito obrigado pela mensagem.

      Abraco,

      Pedro

  • Interessante o seu artigo. Ele tenta pontuar o “outro lado” da discussão, mais especificamente o chamado embate retórico. Obviamente é uma discussão louvável e que não pode deixar de existir. Entretanto, me soou bastante tendencioso e raso. Não aprofundou quais seriam necessariamente as “soluções realmente destinadas a recuperar a trajetória do país rumo ao desenvolvimento”, já que como você mesmo mencionou, essas seriam “muito mais complexas”.
    Ora, o que percebi do seu texto, embora proponha mostrar o “outro lado”, ele mais se aproxima de uma retórica utilizada por um dos lados, do que realmente propõe algo de concreto.
    Embora não concorde com os argumentos apontados nos itens 1 a 4, como instrumentos de uma construção retórica de oposição, também não posso aplaudir que medidas drásticas, que propõem mudar toda a sistemática constitucional do Estado brasileiro sejam levadas a votação por uma ascensão de centro direita que parece estar longe dos seus representados.
    Acredito que as reais soluções, as quais deveriam ser debatidas, são as reformas tributária e em seu bojo entraria a discussão do pacto federativo além é claro, o próprio modelo financeiro do estado brasileiro e a reforma da representação política.

    • Obrigado pela mensagem BBA. De fato trata-se de um texto curto. Outros textos aqui no blog exploram a questao das reformas de forma mais detida.

      Abs.,

      Pedro

  • Quem molda realmente o pensamento econômico no Brasil são os economistas com treinamento matemático e estatístico, oriundos especialmente de escolas como FGV e PUC/RJ, que têm suas opiniões ideológicas reverberadas pela mídia especializada dominante (Globonews, CBN, Estadão).
    Veja o exemplo das narrativas por trás da PEC do teto, defendidas por esses economistas e por essa mídia. Estão longe de uma desejável isenção técnica. O estudo de Petrônio Portella Nunes Filho trata dessa questão: http://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td217

    • Prezado Marcelo,

      Obrigado pela mensagem. Ainda no sentido de fomentar o debate, deixo 3 links abaixo, de textos aqui do blog, que discutem o conceito de dívida líquida, usado no texto que recomendou.

      http://www.brasil-economia-governo.org.br/2014/02/17/o-que-e-contabilidade-criativa/
      http://www.brasil-economia-governo.org.br/2013/10/14/divida-liquida-do-setor-publico-decrescente-significa-politica-fiscal-sob-controle/
      http://www.brasil-economia-governo.org.br/2011/09/12/divida-bruta-e-ativo-do-setor-publico-sao-imprescindiveis-para-se-avaliar-o-equilibrio-fiscal/

      Me parece, adicionalmente, que a PEC do teto nao obriga necessariamente o governo a produtir superavit primario, ou que a despesa acompanhe eventuais quedas da receita (o que seria de fato austeridade e um comportamento prociclico). O objeto é a despesa, nao o deficit. Tambem avalio que a PEC nao impede de fato uma aumento real da despesa (apenas impede aumento de despesas com funcionalismo e com o salario minimo caso o teto seja desrespeitado)

      Peco desculpas pela ausencia de acentuacao na mensagem.

      Cordialmente,

      Pedro

      • Caro Pedro,
        Obrigado pela resposta.
        A dívida bruta é realmente um indicador relevante a ser considerado, diante do alto nível da taxa de juros. Nesse caso, o problema mais relevante é o da taxa de juros em si. Por que esse tema não é priorizado na agenda pública? Que outras opções poderiam levar a uma redução dos juros? Este debate está interditado junto à opinião pública.
        Mas o artigo do Petronio que citei trata de forma mais geral a construção da narrativa que motiva a PEC 241/55. Os ativos do BNDES e reservas, juntamente com a queda abrupta das receitas tributárias, em função da crise internacional/hídrica/política e de outros fatores cíclicos explicam o problema fiscal. Ou seja, trata-se de um problema CONJUNTURAL e não estrutural.
        Esse debate está interditado.
        Além disso, como falou o BBA no comentário anterior, há uma distância entre os representantes e os representados nessa questão.
        Quando a percepção de deficiência no oferecimento de serviços públicos aflorar mais a frente, esse d stanciamento na representação política poderá pagar seu preço. As manifestações de 2013 foram um sinal claro desse risco que nossa democracia corre.

        • Caro Marcelo,

          Em relação à taxa de juros: o governo entende que a própria PEC é um caminho para sua redução, ao reduzir a percepção de insolvência do governo e, consequentemente, os juros que o governo paga sobre ela – que seriam o piso dos juros na economia. A própria reforma da Previdência também viria nesse sentido. Um dos textos mais recentes sobre essa questão foi o do prof. Marcio Garcia, no Valor: http://assessoria.vrc.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=49242&sid=70

          Sobre outros aspectos relacionados à alta taxa de juros do Brasil, gosto do capítulo “A redução do custo do capital”, do Gustavo Loyola, no livro “Brasil – pós-crise” (2009)

          Em relação ao problema conjuntural: a despesa cresce acima do PIB de maneira persistente há anos – décadas. Isso não seria um indício de um problema estrutural? Esse argumento foi bastante colocado pelo Marcos em dois textos aqui no blog:

          http://www.brasil-economia-governo.org.br/2015/08/25/por-que-a-economia-brasileira-foi-para-o-buraco/
          http://www.brasil-economia-governo.org.br/2015/08/31/o-faq-da-crise/

          Em relação às manifestações: acho que o preço a pagar seria muito maior sem o ajuste, com o país chegando numa situação como a do Rio de Janeiro, por exemplo. Na verdade, acho que a grande divergência de opinião existente em relação a PEC do teto é sobre esse cenário: todos reconhecem, com maior ou menor importância, o papel das despesas públicas (especialmente o investimento) no crescimento da economia. Mas a divergência mesmo é se estamos rumando ou não em direção a um iceberg. Se sim, a PEC é justificável e o cenário sem a PEC seria muito pior, inclusive em relação à convulsão social.

          Abraço,

          Pedro

          • Pedro,
            O Valor traz hoje matéria com ex-diretor do Bacen, que chama atenção para o diagnóstico errado em torno do juros (e da ausência dessa discussão na agenda pública):
            “Valor: O que poderia ser feito, então, para se desatar esse nó do crescimento? Há algo que esteja além da agenda?
            Assis: Não há nenhuma solução mágica. Eu acho que o governo não tem outra alternativa senão avançar nas reformas. Mas eu sinto falta da discussão de um tema: dos juros e, especificamente, sobre a desindexação da economia. Em grande parte, na minha opinião, os juros são altos porque a economia continua com mecanismos de indexação, como se a economia ainda estivesse com inflação elevada. Já que estamos discutindo tantas coisas complexas, como a reforma da Previdência, que é extremamente ambiciosa, valeria a pena o governo capitanear uma discussão e encaminhar mudanças nessa questão.”
            http://www.valor.com.br/financas/4800253/situacao-e-mais-grave-do-que-os-precos-de-mercado-estao-refletindo

            Sobre o aumento de despesas, ele ocorre de forma mais significativa a partir de 2014, em função do quadro recessivo, conjuntural. Até então, sua evolução estava alinhada à evolução da receita.

            A PEC 55 não equaciona o problema. Foi um artifício diversionista e embromatório escolhido pela possibilidade de sua aprovação e também pela possibilidade de reduzir o tamanho do Estado de alguma forma no futuro. Além de não haver qualquer garantia de sua efetividade, adiou por pelo menos 6 meses a adoção de medidas concretas de equacionamento da situação fiscal.

            Veja ainda opinião do Armínio Fraga (http://www.valor.com.br/brasil/4789013/e-preciso-acelerar-o-ajuste-fiscal-diz-arminio) e do Nilson Teixeira (http://www.valor.com.br/brasil/4799231/sem-ajuste-no-curto-prazo-pib-nao-reage-e-recessao-continua).

        • Prezado Marcelo,

          Obrigado pela contribuição.

          Concordo que a PEC do teto não exclui outras medidas para a economia crescer. Vejo ela mais como uma tentativa de contornar uma situação ainda pior do que propriamente uma agenda de crescimento (pelo menos como é normalmente entendida)

          Não concordo que o problema seja o crescimento da despesa apenas nos últimos anos, continuo achando que há sim uma questão estrutural. A receita cair com o PIB me parece normal, o crescimento persistente da despesa em qualquer situação não.

          Interessante o ponto de vista da entrevista. Mas não entendo que ele desconsidere a importância da despesa na formação dos juros: me pareceu que ele considera a desindexação a questão principal, mas não a única.

          Um abraço,

          Pedro

          Obrigado novamente

  • Causa espanto um artigo sobre “corporações de elite” não mencionar CNI, CNA, Fiesp etc.

    • João, obrigado pela mensagem. Aqui usei o termo para me referir a sindicatos das carreiras que estão no topo, o que me parece um uso comum do termo. Cordialmente, Pedro

  • Prezado Pedro Nery,
    Teus artigos são excepcionais, apresentando uma visão clara e responsável das coisas. Na realidade, estamos dominados pelas corporações e o pior é que elas têm grande penetração na mídia. Conforme falaste, temos que ouvir palestras de pessoas influentes que dizem que o maior gastos é com juros, quando se sabe que muito pouco ou nada é pago, principalmente agora que há déficit primário. O que há é sua incorporação à dívida. A afirmação de que não há déficit na previdência é que é a grande farsa e não o contrário. Tenho medo que eles vençam a batalha.

    • Prezado Darcy,

      Obrigado pela mensagem. Parabéns pelo seu trabalho por aí e pelo vídeo sobre o déficit, estamos divulgando. Boas festas, e que 2017 seja melhor.

      Abraço,

      Pedro

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