mar
16
2015

É benéfica a supressão do terceiro dígito em preços de combustíveis?

Introdução

A definição de preços em milésimos de reais é prática comum do setor varejista de combustíveis. Todavia, existe o argumento de que não seria adequado sob a ótica consumerista, sob a alegação de que não permitiria formar ideia precisa de valor do produto vendido.O contratempo decorreria da própria insignificância de um milésimo de Real, tornando impossível constituir noção de valor e comparar preços de produto se serviços. Isso não ocorreria com preços expressos com até duas casas decimais, expressos no padrão legal, de uso generalizado. Com efeito, um milésimo de Real, ou R$ 0,001, é um número muito pequeno, e não faz parte do meio de pagamento corrente das transações diárias.

O assunto não é mesmo pacífico, tendo ensejado ações judiciais. O Judiciário já se pronunciou contrário a ações estaduais que buscam restringir a fixação do preço a duas casas decimais. Em Mato Grosso do Sul, um acordo chegou a ser firmado entre o Sindicato dos Postos de Combustíveis (Sinpetro-MS) e o Ministério Público Estadual (MPE) para garantir a legalidade do terceiro decimal pelos postos de combustíveis.

Cabe questionar se a supressão do terceiro dígito constitui medida benéfica para o consumidor. O presente texto argumenta que não.

 

Aspectos legais e racionalidade subjacente de preços com fracionamento especial

ALei nº 9.069, de 29 de Junho de 1995 (“Lei do Real”), sempre permitiu a prática de mais de duas casas decimais, ainda que como exceção à regra geral. O fracionamento especial é usado para fixar preço de unidades de referência que servem para compor o cálculo do preço que será pago ao final. Dificilmente representa uma quantidade efetivamente comprada pelo consumidor. Mercado financeiro – especialmente para cotação de câmbio –, e de capitais – principalmente para cotação de ações e fundos mobiliários –, comumente adotam expressão monetária com mais de duas casas decimais. A Ptax800, taxa de câmbio oficial do Bacen e principal referência de preço da moeda nacional, é divulgada com quatro casas, por exemplo. E isso possui sentido, pois constitui preço-base para transações envolvendo cifras elevadas e troca de grandes quantidades referenciadas na taxa divulgada. Na conversão de milhares de reais em dólares, por exemplo, a terceira casa decimal faz diferença no valor final da transação. É, de fato, muito comum e não confunde ninguém.

Na esfera pública, verifica-se cobrança de tributos, pela Secretaria da Receita Federal (SRF), também com base em mais de duas casas decimais, por exemplo para o PIS e Cofins sobre o litro de bebida. Não constitui prática abusiva nem gera confusão alguma para os contribuintes. Serve também para referenciar preços em contratos de concessões públicas. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) chega a utilizar valores com cinco casas decimais para precificação de tarifa de pedágio em rodovias federais concedidas, com base em quilômetro. Trata-se de prática comum de formação de preço baseada em cálculo econômico, cuja precisão é necessária diante da repercussão econômico-social. Pode-se, portanto, afirmar que possui caráter favorável para uma economia de mercado: quanto melhor definido é o preço, mais eficiente torna-se uma economia baseada em trocas.

Ocorre, também, na cobrança de preço em estacionamentos públicos com base em milésimos de real por minuto. Possui, da mesma forma, racionalidade econômica favorável ao consumidor. Ao permitir o pagamento com base em unidade de referência (temporal) menor, cria-se o benefício da maior precisão e constituição do preço justo. Isso permite que não se pague hora cheia sem se usufruir do correlato serviço. Não ocorre, assim, o que se costuma chamar de “enriquecimento sem causa”, que se refere ao pagamento sem a devida contraprestação em produto ou serviço.

No setor econômico específico de distribuição de combustíveis, a ANP não apenas autoriza como determina a cobrança de três casas decimais para o consumidor nos postos de combustíveis. De acordo com a Resolução ANP nº 41, de 5 de novembro de 2013,

“Art. 20. Os preços por litro de todos os combustíveis automotivos comercializados deverão ser expressos com três casas decimais no painel de preços e nas bombas medidoras” (grifo adicionado).

A política de informação de preços segue, portanto,determinação regulatória federal.A medida justifica-se em decorrência de que “diversos itens da estrutura de preços não têm representatividade com apenas duas casas decimais”. De fato, o preço da gasolina é calculado com base em custos de produção, de distribuição e de revenda. Para tanto, o uso de três dígitos favorece o cálculo econômico, especialmente porque permite competitividade entre as empresas de frete, que cobram com base no litro transportado, por exemplo. A competição via preço ocorrerá com base nessa unidade de referência. Nesse caso, cada milésimo de real faz diferença para o preço total do caminhão, para o transporte em grande escala.

Porém, para o pagamento da compra, o valor total final será quitado considerando-se apenas duas casas decimais, desprezando-se a terceira – ou seja, sem arredondamento para cima, seguindo determinação legal e regulatória. Não há prejuízo ou cobrança indevida alguma: mesmo com precisão de milésimos, só se paga com reais e centavos de reais.Assim, por exemplo, uma compra de 41 litros de gasolina a R$ 3,459 por litro resultará em preço com apenas duas casas decimais significativas, conforme abaixo:

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Forma ainda mais comum é a compra de combustível equivalente a uma quantia em Reais. Por exemplo, o abastecimento de 50 reais de gasolina, com o preço de R$ 3,459 por litro, resultará na compra efetiva de 14,45 litros.

Ainda que possa parecer que não, para um produto com valor unitário baixo, uma casa decimal a mais faz diferença no preço total. Tanto para o ofertante como para o consumidor, a terceira casa decimal impõe diferenciação entre os preços praticados no setor. Na verdade, ainda que possa dificultar a comparação de preços entre os postos de combustíveis (o consumidor se vê obrigado apela memorização do terceiro dígito pelo consumidor), há argumentação de que permite a comparação de preços da mesma forma que se faz para produtos de valor unitário mais elevado. Um preço a R$ 3,459 é e sempre será maior do que outro a R$ 3,458, por definição matemática, e qualquer cidadão com ensino primário pode constatar. Comparar um produto que custa em torno de R$ 3,459 com similares constitui o mesmo processo de comparação de produtos de R$ 1,99 ou de R$ 1.999 com outros de mesma faixa de preço. A diferença será proporcional à unidade do preço de referência – se centavos ou milésimos, ou dezenas e centenas de reais.

Agora, a proibição do uso de três casas não tem capacidade suficiente para, per se, alterar a prática de preços do setor. Ocorre que se está diante de um setor com forte inelasticidade-preço de demanda, o que impõe maior poder de mercado ao ofertante, por definição1.Isso sem falar nas fortes suspeitas de cartelização na definição do preço, que tem sido objeto de sucessivas investigações pelos órgãos de preservação da concorrência.

Na verdade, como os preços vigentes no setor apresentam, via de regra, o dígito “9” na terceira casa, eventual proibição do fracionamento milesimal gerará arredondamento de preços para cima. Nesse caso, o preço de mercado modal de Brasília, que é de R$ 3,459, não cairá para R$ 3,45, mas subirá para R$ 3,46 em decorrência apenas de ajuste regulatório impedindo preços com três casas decimais. Mantidas todas as demais condições constantes, não se espera que um preço cotado a R$ 3,459 ou a R$ 3,455 caia a R$ 3,45. Não há porque perder margem ou faturamento em um setor econômico caracterizado pela baixa concorrência.A regra é a do tabelamento de preço, ainda que informal.

Nesse cenário, não é plausível esperar queda de preço. Assim, para o abastecimento de 41 litros, não há como o consumidor “ganhar”, ou deixar de pagar R$ 0,36, apenas pelo afastamento do terceiro dígito. Ele vai, no mínimo, pagar mais R$ 0,05.Note que, ainda que possa parecer pequena a diferença, a supressão do milésimo seria financeiramente negativa para o consumidor. Para 41 litros de gasolina à cotação unitária de R$ 3,46, paga-se o total de R$ 141,86 e não de R$ 141,81 calculado com o preço unitário com três casas, a R$ 3,459. É uma diferença a maior, ainda que de apenas quatro centavos, conforme ilustrado abaixo.

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Supondo um motorista que em média gaste 100 litros de gasolina por mês, isso significa majoração de somente R$ 1,2 ao ano. Mas considerando a frota de carros do País,que ultrapassa 50 milhões de unidades, isso significa ganho de faturamento da ordem de R$ 60 milhões por ano. A maximização do bem-estar do consumidor ocorrerá com preços calculados com três casas decimais, e não duas.

A legislação consumerista não pode apontar um caminho regulatório que vai de encontro ao interesse do consumidor, por definição, impondo tendência de majoração de preços. Não se pode afirmar que seja benéfica a proibição do terceiro dígito de preços para o motorista urbano médio, sendo mais provável a hipótese contrária. O mesmo raciocínio é ainda mais válido para o setor de transporte de cargas terrestres, já que é maior o consumo de combustível por esse segmento.A base de transporte de cargas no País é estruturada sobre o modelo rodovia-caminhão, e o combustível é preço administrado com alta representatividade na formação de custos domésticos, com alto índice de repasse para os demais preços. No limite, pode-se imprimir viés inflacionário, a ser repassado a uma série de outras cadeias produtivas.

Há indícios de que o consumidor médio tem noção da irrelevância do milésimo de real para diferenciação de preço. Veja a prática da falta de troco na economia na magnitude dos centavos. Isso é muito comum em caixas de supermercado e também pelo comércio em geral, mas não apresenta relevância sistêmica. É socialmente aceitável a imprecisão do troco na magnitude de centavos nas trocas diárias com dinheiro em espécie. Se centavos de Real não são relevantes para o cidadão comum, milésimos não podem ser. Da mesma forma que para a cotação de câmbio, o consumidor não memoriza os milésimos de reais para fins comparativos de preços, pois não há relevância – daí ser desnecessário gravar-se mais do que dois dígitos, em ambos os casos. Simplesmente porque não faz diferença econômica.

Isso aponta que a preocupação com o milésimo não constitui questão estritamente econômica. Não se trata nem mesmo de questão legal, pois o Real é divisível além de centavos, para permitir cálculo econômico mais preciso. Daí chega-se ao predomínio da ótica consumerista, de que a prática de preços induziria a se achar que o preço é menor, em decorrência da leitura apenas de duas e não de três casas decimais – ainda que não faça diferença de facto e seja, na verdade, favorável para o consumidor.

Há, sobretudo, uma visão de que a prática constitui propaganda que confundiria o consumidor. A preocupação funda-se também no fato de que o terceiro dígito após a vírgula não representa valor monetário que realmente expressa preço inteligível. Decorreria, daí, dificuldade para formação de noção de valor, com prejuízo para comparação de preços, base de escolha do consumidor.Um argumento é que se se adquirir um litro de combustível, o fornecedor não teria como devolver R$ 0,001 de troco, porque não existe esse fracionamento de moeda em circulação.

Entretanto, trata-se de questão muito mais teórica do que prática. Além de não se parar num posto de combustível para comprar um litro apenas, a lei e a regulação são claras quanto à forma de cobrança do produto com apenas duas casas decimais. Por fim, dificilmente o posto de gasolina teria moedas de R$ 0,01 para dar de troco. Assim, mesmo que o preço do litro seja anunciado e cobrado com três casas, no resultado final será sempre desprezado o que ultrapassar a casa dos centésimos. Na hipotética compra de um litro de combustível, cujo preço está em R$ 3,459, paga-se apenas R$ 3,45.

 

Considerações finais

Por fim, um argumento adicional seria que a exibição de preços de combustíveis com unidade de milésimo em fonte menor que as demais constituiria prática abusiva, já que destacaria apenas parte do preço – até os centavos. Isso criaria falsa sensação de que o produto é mais barato do que realmente está sendo cobrado: um produto de R$ 3,459, teria destaque até R$ 3,45. Todavia, trata-se de prática geral de comércio varejista e também muito comum nos supermercados, carregando uma racionalidade subjacente. Qual seja: a de destacar a parte do preço de maior relevância, justamente da parte que realmente importa para o consumidor poder assimilar e comparar com sua capacidade econômico-financeira.

Na verdade, é benéfica tal prática tanto para o consumidor – que assimila a parte relevante do preço – quanto para o fornecedor – pela maior sensibilização do cliente, com efeito sobre a demanda efetiva.A definição de preços com três casas decimais impõe maior precisão e eficiência a uma economia de mercado – possuindo finalidade econômica e financeira. É desnecessária, portanto, a proibição de fracionamento especial de preços no setor de combustíveis, sob pena de impor prejuízos aos agentes econômicos.

 

(Este texto é baseado no estudo “Adequação Regulatória e Racionalidade de Preços de Varejo de Combustíveis com Três Casas Decimais” – Boletim do Legislativo nº 23 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível em: http://www.senado.gov.br/estudos)

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1 Veja o caso recente do cartel de postos no Maranhão. Disponível em: http://blogs.diariodepernambuco.com.br/economia/?p=19386. Acesso em: 21 fev, 2015.

 

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Sobre o Autor:

Cesar van der Laan

Engenheiro, Doutor em Economia (UFRGS). Consultor Legislativo do Senado Federal (Política Macroeconômica e Sistema Financeiro).

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1 Comentário Comentar

  • porque essa lei esta valendo somente para os postos, e na distribuidora aonde o posto compra os combustivel continua do mesmo jeito
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