fev
23
2011

É possível controlar o gasto do Governo apenas enxugando os desperdícios?

É muito comum o argumento de que o governo é “perdulário” e que ações visando o enxugamento de desperdícios seriam suficientes para conter a expansão do gasto público. Sendo válido esse argumento, a política de controle de gastos deveria se concentrar nas chamadas “despesas de custeio” da máquina governamental: diárias e passagens, material de consumo, serviços terceirizados (limpeza, vigilância, etc.), consultorias prestadas por empresas privadas, etc.

O que se demonstra nesse texto é que, embora seja desejável a redução de eventuais desperdícios no custeio, esse tipo de controle de gasto nem de longe resolveria o desequilíbrio das contas do Governo Federal.

Em valores de 2010, um ajuste fiscal significativo estaria na ordem de R$ 40 a R$ 50 bilhões. O que se poderia obter com um corte radical no custeio não passaria de R$ 19 bilhões.

Tomando-se os dados da execução orçamentária do Governo Federal, temos que os “gastos de custeio” são aqueles classificados como “outras despesas correntes”. Mostra-se, a seguir, que a efetiva e significativa redução das “outras despesas correntes” depende de mudanças de fôlego na legislação e nas políticas públicas, tais como: alteração nos requisitos para concessão de aposentadorias e pensões, revisão da política de valorização real do salário mínimo e reavaliação da indexação do gasto com saúde ao crescimento do PIB nominal.

São, portanto, medidas muito mais profundas do que a restrição ao gasto com passagens aéreas ou com compra de material de consumo.

A Tabela 1 abre as “outras despesas correntes” em grandes itens de despesa. Olhando o valor da despesa total (R$ 594 bilhões) parece fácil fazer o ajuste fiscal. Se precisamos cortar R$50 bilhões para zerar o déficit nominal do Governo, então estamos falando de um ajuste de menos de 10% no custeio da máquina pública: nada que um “aperto de cintos” não pudesse resolver.

Mas essa impressão é ilusória. As outras linhas da Tabela 1 desagregam a despesa total, apresentando os itens em que ela é rígida, seja por determinação legal, seja por se tratar de política pública prioritária.

O primeiro item refere-se à “distribuição obrigatória de receitas”: Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios, Fundo Constitucional do DF, royalties de petróleo, etc. O Governo Federal, por determinação constitucional ou de diversas leis, é obrigado a compartilhar sua arrecadação com estados. Trata-se, portanto, de despesa obrigatória e incomprimível[1].

O segundo item de despesa é aquele referente à Saúde. De acordo com a Emenda Constitucional nº 29, de 2000, o Governo Federal é obrigado a gastar com saúde o valor efetivamente gasto no exercício anterior acrescido da variação nominal do PIB. Portanto, tudo o que se gasta em saúde em um ano converte-se em despesa obrigatória para o ano seguinte, reajustado pela variação do PIB. Não só não há possibilidade de cortes, como há obrigatoriedade de crescimento real desse gasto ano após ano.

Tabela 1 – Outras despesas correntes do Governo Central (orçamentos fiscal e da seguridade social): 2010

Despesa R$ Bilhões % do Total
OUTRAS DESPESAS CORRENTES (TOTAL) (A) 593,8 100%
1 – DISTRIBUIÇÃO OBRIGATÓRIA DE RECEITAS 137,0 23%
2 – SAÚDE 50,9 9%
3 – ASSOCIADA A PESSOAL E ENCARGOS (EXCETO SAÚDE) 3,8 1%
4 – SENT. JUDIC., EXERC ANT. E COMPR. FINANC.(EXCETO SAUDE) 16,5 3%
5 – BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS E ASSISTENCIAIS (EXCETO SAUDE) 246,5 42%
6 – SEGURO DESEMPREGO E PIS PASEP 29,2 5%
7 – BENEFÍCIO MENSAL AO DEFICIENTE E AO IDOSO 22,2 4%
9 – EDUCAÇÃO 22,0 4%
10 – Bolsa Família 13,5 2%
SOMATÓRIO DAS DESPESAS RÍGIDAS (1+2+…+8) (B) 541,7 91%
OUTRAS DESPESAS CORRENTES NÃO RÍGIDAS (C)=(A)-(B) 52,1 9%
Memo: Despesas vinculadas ao salário mínimo, ao PIB ou à inflação: 2+5+6+7 348,8 59%

Fonte: SIAFI – Sistema “Siga Brasil”. Elaborado pelo autor.

(*) Conceito de “despesa liquidada”.

O terceiro grupo de despesas é aquele associado aos gastos com pessoal. Os pagamentos de remunerações de servidores públicos não são classificados como “outras despesas correntes”. São classificados como “pessoal e encargos sociais”. Não fazem parte, portanto, do “custeio” analisado nesse texto. Porém, existem despesas classificadas como “outras despesas correntes” intimamente ligadas à despesa de pessoal, tais como: auxílio alimentação, auxílio transporte, salário família, etc. Todas essas despesas decorrem de obrigações legais da União na condição de empregadora. Logo, o seu valor é determinado a reboque das despesas com pessoal e encargos sociais. Sua redução dependeria, portanto, da redução nos gastos de pessoal. Mas os gastos de pessoal também são rígidos, devido a fatores como estabilidade no cargo e irredutibilidade de vencimentos[2].

O quarto item da Tabela 1 representa despesas geradas no passado e que não podem ser cortadas no presente. É o caso, por exemplo, de sentenças judiciais, indenizações e restituições que a União é obrigada a pagar. A única forma de cortar dispêndio nesse item seria desobedecer ao Judiciário ou ficar inadimplente junto a credores. Certamente essa não é uma forma consistente de se fazer ajuste fiscal[3].

O item 5 representa as aposentadorias, pensões e outros benefícios previdenciários pagos pelo INSS. Obviamente essa é uma despesa devida a todos aqueles que preenchem os requisitos legais para requerer uma aposentadoria, uma pensão, um auxílio doença ou qualquer outro benefício pago pelo INSS. Não há como fazer redução dessa despesa negando-se a concessão de benefícios para os quais os requerentes tenham direito.

Ademais, por decisão governamental, o salário mínimo (que é a base de referência para aproximadamente 2/3 dos benefícios previdenciários) tem subido acima da inflação. Nos últimos anos o seu reajuste tem sido feito com base no crescimento do PIB. Os benefícios previdenciários superiores a um salário mínimo são reajustados pela inflação passada.

Por isso, as únicas formas de redução desse tipo de dispêndio são a reforma na legislação previdenciária ou a desvinculação do valor dos benefícios básicos do valor do salário mínimo[4].

Os itens 6 e 7 são similares ao anterior. Referem-se a benefícios que são pagos a todos os requerentes que cumpram os requisitos legais. A Lei Orgânica da Assistência Social define a obrigatoriedade do pagamento de benefícios aos deficientes físicos e idosos de baixa renda. Tais benefícios são indexados ao salário mínimo. O PIS-PASEP e o seguro desemprego pagam abonos e remuneram temporariamente os desempregados. Embora esse benefício não esteja formalmente vinculado ao salário mínimo, parte substancial dos beneficiários está nessa faixa de renda, de modo que os reajustes reais do mínimo também impactam essa categoria de despesa.

O item 8 contém as “outras despesas correntes” em educação. Na educação há um complexo sistema de vinculação de impostos aos gastos com “manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE)”[5]: 18% da arrecadação de impostos do Governo Federal devem ser destinados a essa finalidade. Além disso, há a obrigatoriedade de se fazer aportes de recursos federais, a título de complementação, ao Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB)[6].

Tais obrigações legais não chegam a ser uma fonte importante de rigidez nas “outras despesas correntes” em educação, pois o gasto obrigatório recai quase que totalmente no item “despesa de pessoal e encargos sociais”. No entanto, esse é um setor prioritário da gestão pública. Ainda que possa haver desperdícios no custeio da educação, a economia eventualmente feita com o corte desses desperdícios tenderia a ser reaplicada em outros programas (mais eficientes) dentro da própria área da educação. No limite, fazendo uma hipótese heróica, poderíamos imaginar que um corte radical no custeio da educação representaria uma economia de 10 a 20%. Ou seja, no máximo R$ 4,4 bilhões.

O último item diz respeito ao Programa Bolsa Família. De acordo com a Lei nº 10.836, de 2004, que rege o programa, é o Governo que define o valor e a quantidade de bolsas a serem concedidas. A rigor, se desejasse cortar o programa, não seria necessário revogar a lei. Bastaria definir um valor irrisório para a bolsa (cujo valor não está indexado ao salário mínimo ou a qualquer outro indicador) ou reduzir drasticamente o número de beneficiários.

Obviamente, o grande peso político desse programa, aliado aos seus resultados positivos na mitigação da miséria, e possíveis contestações judiciais à redução do valor do benefício, tornam tal procedimento bastante improvável.

Ao deduzir todos esses itens rígidos das “outras despesas de custeio” sobram apenas R$ 52 bilhões de despesas flexíveis: 9% da despesa total. Como fazer um ajuste fiscal da ordem de R$ 50 bilhões (necessários para zerar o déficit nominal) se o conjunto de despesas a ser submetida a enxugamento é de R$ 52 bilhões? Seria preciso interromper todos os programas de governo que não tenham sido listados na tabela 1: saneamento básico, ciência e tecnologia, defesa, urbanização, agricultura, meio-ambiente, etc.

Outro indicador da dificuldade de se cortar o custeio está na última linha da Tabela 1: nada menos que 59% das “outras despesas correntes” são reajustados, automaticamente, pela variação do PIB ou pela inflação do ano anterior.

Um corte forte nas “outras despesas correntes” não rígidas, da ordem de 20%, levaria a uma economia de R$ 10,4 bilhões. Somando-se a isso a economia na área da educação, acima calculada em R$ 4,4 bilhões, teríamos um corte de R$ 14,8 bilhões, obtido mediante forte comprometimento da gestão governamental. E mesmo esse grande esforço não nos colocaria nem perto do necessário ajuste de R$ 50 bilhões.

Ademais, seriam altas as chances de que esses cortes fossem revertidos em exercícios posteriores, mediante pressões para a retomada de política públicas por eles prejudicadas.

Fica claro que não há opções de ajuste fiscal permanente, consistente e com efeito a longo prazo que se baseie apenas no “enxugamento de desperdícios nas despesas de custeio”. Embora seja salutar e desejável que se busque cortar desperdícios, o ajuste necessário vai além e requer reorientação da ação do Governo em políticas relevantes. É preciso, inclusive, tomar medidas que ajustem a despesa em itens que não foram aqui analisados, como a despesa de pessoal, investimentos e inversões financeiras.

Um roteiro para um ajuste da despesa pública passa pelos seguintes pontos:

a)        racionalização da política de pessoal, voltada para a qualidade na contratação, o estímulo ao bom desempenho e o controle da folha de pagamento;

b)        forte esforço de avaliação dos investimentos públicos prioritários, com o cancelamento de investimentos desnecessários ou questionáveis;

c)        dinamização dos procedimentos de concessões e demais modalidades de participação da iniciativa privada nos investimentos de infraestrutura (inclusive a melhoria na regulação e na capacidade de atuação das agências reguladoras), com vistas a se acelerar os investimentos nessa área, com o envolvimento de menos recursos públicos e com maior eficiência;

d)       revisão da política de reajuste do salário mínimo, para reduzir a velocidade de crescimento das despesas a ele indexadas;

e)        complementação da reforma da previdência social;

f)         revisão da regra de despesa mínima em saúde, vinculando-se a expansão da verba a melhorias na gestão e a indicadores de qualidade;

g)        revisão das políticas industrial e de incentivos regionais, visando à redução dos recursos aplicados em financiamentos subsidiados a programas de baixo retorno social ou à gradual retirada do Governo Federal do mercado de financiamento de longo prazo ao setor privado.

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Para ler mais sobre o tema:

Mendes, Marcos (2011). Desembrulhando o ajuste fiscal: há espaço para ajuste fiscal no Governo Federal sem reformas legais ou revisão de políticas públicas? Texto para Discussão nº 86. Centro de Estudos da Consultoria do Senado. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm


[1] Note-se que não foi considerado nesse total o montante de transferências emergenciais, feitas aos estados e municípios em 2009 e 2010, a título de compensação por perdas de receitas decorrentes da crise econômica internacional. Esta seria uma despesa não-obrigatória.

[2] Não se considera nesse item as “outras despesas correntes” associadas ao gasto com pessoal na função saúde, pois já foram incluídas no item anterior.

[3] Mais uma vez, não se incluem nesse item as despesas realizadas no âmbito da função saúde, já consideradas no item 2.

[4] Sempre há a necessidade de manter vigilância em relação às fraudes contra a previdência. No passado recente, por exemplo, um maior rigor na concessão de auxílio doença provocou uma forte desaceleração no crescimento dessa despesa. Mas esse tipo de providência gerencial não é capaz de fazer a despesa da previdência diminuir de forma significativa.

[5] Vide art. 212 da Constituição Federal.

[6] Lei nº 11.494, de 2007.

Sobre o Autor:

Marcos Mendes

Doutor em economia. Consultor Legislativo do Senado. Foi Chefe da Assessoria Especial do Ministro da Fazenda (2016-18). Autor de “Por que o Brasil cresce pouco?”.

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7 Comentários Comentar

  • Parabéns pelo site. Comento, para não ficar muito longo, apenas os itens b e g da sua lista de sugestões, que se referem à reavaliação dos investimentos e políticas públicas. De acordo, mas o nó da questão me parece ser como criar um mecanismo institucional de avaliação de projetos que permita maior transparência e efetividade na consecução desta meta, e que não seja ele mesmo pesado, burocrático e sujeito à negociação político-partidária. Uma idéia (de leigo nessa área) seria criar um site que pudesse reunir esse tipo de avaliação, sem metodologia estritamente padronizada, mas sujeito a um grupo de revisão técnica, que pudesse dar base a uma lista anual dos, digamos, 20 melhores e 20 piores projetos ou objetos de despesa, com documentação abundante, que seria provavelmente de interesse da opinião pública.

    Abraço,

    Cleofas

  • Prezado Marcos Mendes

    Parabéns a todos vocês pela iniciativa.

    Prezado Cleofas

    A respeito da sua sugestão, complemento com o que segue

    Nos EUA existe uma agência do Estado, US Government Accountability Office [GAO], para fiscalizar o governo em tudo o que concerne à fé pública.

    Márcia Farias, procuradora do Ministério Público junto Tribunal de Contas do Distrito Federal, escreveu artigo a respeito do GAO: “Tendências do controle externo nos Estados Unidos”, publicado na Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Infelizmente o link abaixo com o ótimo artigo parece ter sido desativado

    http://200.198.41.151:8081/tribunal_contas/2008/02/-sumario?next=3

    No artigo, Márcia Farias explica o que é e como funciona o GAO. Conta um pouco sobre o contexto histórico do seu surgimento, que remonta aos anos 20 do século passado, e historia as modificações e aperfeiçoamentos pelas quais passou a agencia estatal até 2007, ano em que escreveu o artigo. A autora fornece alguns dados comparativos (2007) que são estarrecedores:

    GAO – 3 260 funcionários; orçamento: US$ 484,7 milhões.

    TCU – 2 381 funcionários; orçamento: US$ 500 milhões.

    TCDF – 590 funcionários; orçamento: US$ 200 milhões.

    Retorno Financeiro

    GAO – US$ 105/ US$ 1.

    TCU e TCDF não fazem essa conta. Por quê?

    Para quem se interessar, o GAO oferece anualmente a outros países um Programa Internacional para Auditores. O TCU é ou era associado a esse programa.

    http://portal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/relacoes_institucionais/relacoes_internacionais/programas_treinamento

    Para ir ao site do GAO

    http://www.gao.gov/

  • […] de como a máquina pública funciona. Posso sugerir outros linques se quiser, por exemplo, o do blógue-informativo do Instituto Fernand Braudel. Nele, você também terá uma explicação pormenorizada das razões, […]

  • Caro Marcos, seu artigo é correto e nos remete ao esforço de empreender a reforma politica e da previdência para que se possa desembaraçar o Estado de parte do passivo de sua história fiscal e política. Não sei se possível.
    Em relação ao modelo de gestão e orçamento, implementado no governo de FHC e em vigor, no qual se alocam recursos a programas integrados através de eixos territoriais nacionais, o que poderia ser melhorado para que se tivesse maior transparência em suas inversões e segurança na hora de se cortar recursos, para que não se interrompa e desperdicie o que já foi investido? Perdeu-se muito tempo criticando a definição de gestão por programas,por conta do fantasma do estado mínimo, e não se aproveita a oportunidade de evoluir esta ferramenta como forma de gestão. Saudações “braudelianas”.Ana Maria de Abreu Laurenza

  • Marcos,

    Referente ao montante de 42% de gasto com benefícios previdenciários, qual o parcela da previdência dos servidores e a parcela da previdência do INSS pago a iniciativa privada?

    • Danilo, o valor a que você se refere, mostrado na tabela 1, refere-se apenas aos benefícios do INSS (iniciativa privada). Note que a tabela trata das chamadas “outras despesas correntes” do governo (grupo de natureza de despesa = 3, no código orçamentário), que não incluem as despesas com pessoal, aposentadorias e pensões do setor público. Essa parte do gasto está no grupo de natureza de despesa 1 (Pessoal e encargos sociais).

      Logo,trata-se de 42% das “outras despesas correntes” e não 42% da despesa total.

  • Caro Marcos Mendes, será que com essa economia nos gastos do Governo, não dava para custear o Bolsa Família na sua integralidade?

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