jan
31
2018

O conceito de austeridade se aplica ao Brasil?

Muitos economistas brasileiros ainda insistem em apontar uma eventual política de austeridade fiscal como uma das causas de nossa crise. Acreditam que um corte de gastos, ou não expansão das despesas, contribuiu bastante para o tamanho e duração da recessão. Alguns mais ousados vão além: comparam a situação brasileira com a dos países avançados (sobretudo europeus) no pós-crise, sugerindo o uso da política fiscal como solução para os nossos problemas. Teriam eles razão?

 

A resposta dos países desenvolvidos após a crise de 2008

Uma das grandes controvérsias em economia de fato diz respeito aos efeitos da política fiscal na atividade econômica. Em que condições um aumento do gasto público se traduz em aumento do produto?

Essa discussão esteve em segundo plano nas décadas de 80 e 90. À época, o consenso macroeconômico dizia que a política monetária – mudanças nos juros, crédito e moeda – seria a mais adequada para estabilizar uma economia. Esse consenso mudou com a crise de 2008. Desde então, muitas economias desenvolvidas chegaram ao mínimo histórico em suas taxas de juros.

Nos EUA, a resposta à crise veio com um pacote fiscal. Ao American Recovery and Reinvestment Act, aprovado em fevereiro de 2009, se atribui papel importante em impedir que a recessão se transformasse em depressão.

Na Europa, uma união monetária, a discussão era mais quente, assim como a divergência. Em alguns países, os defensores da austeridade argumentavam que, com déficit e dívida elevados, cortes de despesas seriam a solução para a retomada.

Em teste, a austeridade via gastos aumentaria a confiança dos agentes. Esse discurso tinha por base os trabalhos do economista italiano Alberto Alesina, um dos proponentes da tese da “contração fiscal expansionista”. Ou seja, uma contração da despesa pública poderia funcionar como um estímulo à economia.

Pouco a pouco, contudo, essa controvérsia foi se desfazendo, em favor daqueles contrários à austeridade.

 

O que a experiência pós-crise ensinou aos economistas

Novas evidências surgiram com os ajustes realizados na Europa. Um trabalho importante nesse sentido foi o de Blanchard e Leigh (2013)1. O artigo mostra que países com maior corte de gastos foram aqueles com maior diferença entre o crescimento previsto e o efetivo. Os ajustes pareciam duros demais.

Com uma revisão mais cuidadosa dos trabalhos de Alesina e seus colegas, diversas críticas metodológicas ganharam força. Uma delas diz respeito ao problema de variável omitida. Após um ajuste fiscal “de sucesso”, a economia poderia ter se recuperado não pelo ajuste em si, mas por qualquer motivo exógeno, como um aumento no preço de commodities. Levando essas críticas em consideração, o resultado mais geral da pesquisa de Alesina se perdia, como já mostrava em 2010 um importante texto do FMI2.

Durante este período, ocorreu uma explosão de trabalhos teóricos e empíricos para examinar os efeitos da política fiscal. Chistina Romer, uma das principais especialistas mundiais no tema, afirmou em 2011 que provavelmente havia mais estudos nessa área entre 2008 e 2011 do que nos 25 anos anteriores3.

A literatura acadêmica aprimorou rapidamente seus instrumentos para medir o impacto de gastos fiscais, através de novas técnicas para identificação de choques. Grande parte dos resultados sugeria que esse impacto (o multiplicador fiscal) varia de acordo com o momento do ciclo econômico, do regime de câmbio adotado e da política monetária4. E, quase sempre, apresentam valores positivos – ou seja, cortes de gastos geralmente impactam negativamente a economia, e vice-versa.

Diante de toda essa pesquisa no assunto, a maioria dos economistas reconhece, hoje em dia, que os defensores da austeridade perderam o debate na Europa5.

Aumentar o nível de gastos pode, em determinadas circunstâncias, desempenhar um papel importante para a saída de uma crise econômica, ajudando a recuperar a produção no curto prazo. Restaria, então, saber se podemos generalizar estes resultados para qualquer economia em qualquer contexto.

 

O que esse debate tem a ver com a crise brasileira?

Alguns economistas brasileiros erroneamente acreditam que podem generalizar as conclusões do debate sobre a Europa.

Quando a economia do Brasil começou a se desacelerar fortemente, a interpretação majoritária foi de que a crise tinha sólidas raízes fiscais. Mas alguns economistas passaram a se manifestar fortemente contra o ajuste das contas públicas, afirmando que seria um “austericídio”. Um exemplo desse discurso está exposto no relatório “Austeridade e Retrocesso”, lançado em 2016.

Um dos textos mais citados para justificar essa visão heterodoxa foi escrito por técnicos do FMI, em 2016, denominado “Neoliberalism: oversold?”. Nele, afirmava-se que a despeito de alguns sucessos da agenda neoliberal, alguns pontos não haviam tido bons resultados, como a consolidação fiscal. O problema é que o texto do FMI focava em países avançados com custos de financiamento de dívida muito baixos.

No próprio texto do FMI, admitia-se que muitos países tinham pouca escolha além de um ajuste fiscal, pois os mercados não permitiriam que continuassem se endividando. Esta última ressalva se aplica ao Brasil.

Outro artigo usado como argumento pelo grupo de economistas brasileiros foi Ball et al (2013)6. Trata-se de um trabalho empírico, cuja amostra é formada por 17 países da OCDE. O resultado principal indicava que uma consolidação fiscal de 1% do PIB poderia aumentar o desemprego e a desigualdade, respectivamente em 0,6 e 1,5 pontos percentuais. O problema é que, assim como no caso anterior, o trabalho se baseava em países desenvolvidos, com conclusões não facilmente aplicáveis a contextos distintos.

O terceiro trabalho bastante utilizado como argumento contra o ajuste foi o “The Permanent Effects of Fiscal Consolidation”, de Fatás e Summers, de 2016. De maneira geral, encontrava evidências de efeitos negativos de longo prazo da política fiscal no pós-crise, sendo um dos canais a histerese no mercado de trabalho. Como consequência, tentativas de reduzir a dívida via consolidação fiscal poderiam aumentar a relação dívida/PIB devido aos impactos negativos do ajuste no produto. Afirmavam, desta maneira, que políticas de austeridade poderiam ser extremamente custosas.

Mais uma vez, os próprios autores foram bastante claros ao negar que esta fosse uma conclusão padrão para todos os governos e em todos os momentos. Afirmavam estar olhando para um episódio bastante particular, quando circunstâncias “especiais e severas” estavam presentes: ou bem a política monetária estava restrita pelo limite inferior da taxa de juros ou bem havia amarras institucionais impostas pela união monetária da Europa.

 

O erro fatal na tese do ‘austericídio’: não houve austeridade no Brasil

 A tese do ‘austericídio’ carece de sustentação teórica adequada para explicar a situação atual da economia brasileira. Os textos nas quais se baseia não estudaram o contexto brasileiro, mas países avançados com baixo custo de financiamento de dívida e alguma forma de impedimento de política monetária. Certamente, não é o caso do Brasil, que tinha espaço tão amplo para uso da política monetária (o qual vem corretamente aproveitando), além de uma dívida bastante elevada e cara frente aos seus pares emergentes.

Além disso, a própria qualificação do debate de ajuste fiscal no Brasil é controversa: os indicadores fiscais brasileiros falham em mostrar que tenhamos vivido um forte ajuste nas contas públicas.

Tomemos o exemplo de Portugal para comparação. O gasto público luso diminuiu 7,2% entre 2010 e 2012, em valores reais. De acordo com dados do FMI, só em 2020 voltará ao patamar de gastos de 2010.

No Brasil, em contrapartida, o nível real de gastos de 2016 ficou acima do nível de gastos de 2014. Percebe-se facilmente que tal dinâmica é bastante distinta daquela verificada na Europa após a crise: o que se chamou de austeridade por lá não parece ter nenhuma correspondência por aqui.

O que ocorre de fato no país, e pode causar certa confusão, é uma mudança na composição do gasto federal. Enquanto avançam os gastos com pessoal e, principalmente, benefícios previdenciários, sobra cada vez menos espaço para outras despesas. Apesar de grandes cortes em áreas específicas, como no apoio à pesquisa acadêmica, o volume total de gastos não diminuiu.

Em 2014, a soma das rubricas pessoal, benefícios previdenciários e assistências acumulava um volume de 63% da despesa total. Para o orçamento de 2018, esse mesmo volume está em 69%. O resultado é que as despesas discricionárias vêm sofrendo um forte ajuste, mas sem que possamos dizer o mesmo da despesa total. É por isso que a reforma da Previdência é tão importante, objetivando amenizar essa tendência.

Em suma, é natural que a macroeconomia, frente aos novos desafios, repense algumas de suas velhas ideias. Alguns países vivem situações inéditas, como taxas de juros no limite inferior e utilização de mecanismos não convencionais de política monetária. Parte dos países avançados convive ainda com baixo crescimento crônico, sem saber se voltarão um dia a crescer a taxas mais elevadas. Ignorar essas questões e aplicar a lógica de “one size fits all” para a política fiscal é um caminho bastante equivocado para seguir.

 

Publicado originalmente no Instituto Mercado Popular em 4 de janeiro de 2018 sob o título “A crise brasileira não foi causada por austeridade”.

 

_______________

1 Blanchard e Leigh (2013) – Growth Forecast Errors and Fiscal Multipliers.

2 IMF. Will it hurt? Macroeconomic Effects of Fiscal Consolidations, 2010.

3 Romer, C. (2011). What do we know about the effects of fiscal policy? Separating evidence from ideology.

4 Ver, por exemplo, texto de Nicoletta Batini e coautores, denominado “Simple Method to Compute Fiscal Multipliers”, de 2014.

5 Como afirmou, por exemplo, o chileno Andres Velasco: “Europe’s austerians lost the argument” em Velasco (2017) – Can Fiscal Contraction Ever Boost Growth?

6 Ball et al (2013) – The Distributional Effects of Fiscal Consolidation. Ele é citado, por exemplo, em http://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2016/06/1777343-e-preciso-muita-fe.shtml.

 

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Sobre o Autor:

Guilherme Tinoco

Mestre em teoria econômica pela FEA-USP. O autor agradece os comentários de Pedro Menezes, do IMP.

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