nov
4
2013

Qual a consequência do ativismo judicial na fixação dos preços das passagens aéreas?

O transporte aéreo é uma atividade econômica regulada pelo Governo Federal, que mediante concessão autoriza sua prestação a empresas privadas de aviação. Essa exploração pela iniciativa privada cria a necessidade de um sistema regulador estatal para dimensionar, formular e fiscalizar a prestação do serviço. No caso do transporte aéreo, esta competência é da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Uma de suas atribuições é realizar a regulação econômica do setor, fazendo o respectivo monitoramento e promovendo possíveis intervenções no mercado de modo a buscar a máxima eficiência.

Apesar de existir em funcionamento um mercado de transporte aéreo com preços oscilando conforme as regras de oferta e demanda e de haver uma agência reguladora controlando o setor, aconteceu recentemente uma intervenção do Poder Judiciário, decorrente de uma ação civil pública, que pode acarretar perda de bem-estar social. A nosso ver, tal intervenção gera distorção maior que aquela que o juiz se propõe a resolver.

Conforme o Ministro Luís Roberto Barroso, o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance1. É nesse sentido que se pretende discutir uma decisão recente da Justiça Federal2, em que foi adotada uma interpretação do ordenamento jurídico, cujo reflexo trará prejuízo ao consumidor, apesar de a base da decisão, segundo a magistrada, serem os princípios norteadores da atividade econômica previstos no art. 170 da Constituição Federal, entre eles a livre concorrência, a função social da propriedade e a defesa do consumidor.

Na referida decisão, a magistrada condenou a empresa TAM Linhas Aéreas a: a) ofertar aos usuários, nos voos com destino para e/ou origem em Imperatriz-MA, no

mínimo, 50% dos assentos com a tarifa denominada “básica”; b) nos meses de alta demanda, em especial dezembro/2013 e janeiro/2014, cobrar do usuário-consumidor o valor máximo de até 50% da tarifa máxima do plano “básico”.

A argumentação da magistrada para tabelar as passagens aéreas para Imperatriz-MA baseia-se no fato de que existe um bem jurídico imediato afetado na relação sub judice que é o direito do consumidor. Entende que o valor das passagens foi elevado abusivamente, uma vez que o trecho entre Imperatriz/MA e Brasília/DF custava R$ 289,00 e passou para R$ 1.529,00 em janeiro de 2014, caindo para R$ 429,00 em fevereiro de 2014. A magistrada argumenta que a TAM ao invés de ampliar a oferta para os meses de referência, devido à procura mais acentuada pelos usuários, limita-se a elevar de forma desarrazoada os preços das passagens aéreas, colocando o consumidor em desvantagem exagerada.

Argumenta ainda a magistrada que, diante da omissão da ANAC em efetivar os comandos insculpidos nos arts. 2° c/c 8° da Lei nº 11.182/05, acaba por deixar tal tarifação à álea e à deriva dos exclusivos interesses das concessionárias aéreas, em prol da política do regime de liberdade tarifária, como se o fornecimento de serviço de transporte aéreo de passageiros fosse, na sua gênese, atividade privada. Esquecendo-se que se trata de “prestação de serviço público”, e da peculiar circunstância de que a ré está a exercer a atividade empresária como longa manus da União, eis que se encontra na condição de concessionária de serviço público, nos termos do art. 21, XII, c, da Constituição Federal de 1988.

No texto disponível neste site, “Empresa aérea é concessionária de serviço público?”, foi explicado que a Lei nº 11.182, de 2005, instituiu o regime de liberdade tarifária, de forma que a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) não pode tabelar os preços das passagens aéreas, como fez o antigo Departamento de Aviação Civil (DAC) ao longo de quase toda sua existência.

A mesma lei também assegura às empresas a exploração de quaisquer linhas aéreas, observada exclusivamente a capacidade operacional de cada aeroporto e as normas regulamentares de prestação de serviço adequado. Antes dessa legislação, as empresas estabelecidas eram protegidas contra novas entrantes, dificultando a concorrência.

Outro ponto a ser destacado é que concessão de serviços aéreos não confere à empresa o direito ou a obrigação de voar entre quaisquer localidades. O direito de voar somente existe após a outorga de uma autorização específica para cada linha a ser explorada. Essa autorização, denominada Horário de Transporte (HOTRAN), estabelece horários, frequências, tipos de aeronaves e oferta de assentos para cada linha.  As empresas aéreas não têm, nem nunca tiveram, portanto, qualquer obrigação de operar em condições deficitárias. Podem, a qualquer tempo, comunicar ao poder público que não mais operarão determinada linha e solicitar o cancelamento do respectivo HOTRAN.

Se o trecho Brasília-Imperatriz fosse extremamente lucrativo, outras empresas teriam interesse em oferecer voos entre essas cidades. Se não o fazem, é porque não há exageros na rentabilidade.

Por outro lado, se os preços praticados estivessem razoáveis, a partir do momento que houve o tabelamento, a empresa talvez não tenha mais interesse em manter essa linha, uma vez que ela não é obrigada a trabalhar de forma deficitária. Isso é o mais provável que aconteça caso o entendimento persevere no Judiciário: uma descontinuidade da linha, com efeitos negativos para os próprios consumidores de passagens entre Brasília e Imperatriz.

Outra possível consequência perversa da decisão é o aumento das tarifas dessa linha em períodos não tabelados. Para custear os passageiros de dezembro e janeiro, quem viajar nos restante do ano terá de pagar mais caro.

Além disso, como o tabelamento funciona para a primeira metade dos assentos vendidos, há um nítido favorecimento dos consumidores que comprarem primeiro, que conseguirem se planejar, em detrimento daqueles que precisarem voar esse trecho por conta de uma emergência, por exemplo, ou que não tiverem a oportunidade de comprar a passagem com muita antecedência.

Por fim, pode acontecer também que, para manter o voo a preços que não lhe garanta lucro, a TAM tenha de aumentar a tarifa de outros voos, de forma que os passageiros do país inteiro teriam que subsidiar aqueles que viajam entre Brasília e Imperatriz (o que na teoria econômica se chama de subsídio cruzado). Em regra geral, quando o preço pago é diferente do custo de produção, gera-se uma ineficiência na economia, com perda de bem-estar. Essa alternativa, no entanto, não é tão provável pela dificuldade de exportar custo extra para outros trechos.

Note-se como uma decisão judicial tem o poder de alterar completamente o equilíbrio do mercado e prejudicar um número muito maior de consumidores do que os supostamente beneficiados.

Conforme o Relatório elaborado pela ANAC, “Tarifas Aéreas Domésticas”3, relativo ao quarto trimestre de 2012, para atender a um maior número de passageiros, otimizar a ocupação das aeronaves e alcançar rentabilidade, as preferências dos usuários devem ser consideradas na prestação e na precificação dos serviços. Em qualquer atividade econômica, a rentabilidade é fator principal para que se tenha investimento e oferta de serviços. Nesse sentido, as tarifas aéreas são ajustadas a todo instante de acordo com a procura e conforme se aproxima a data do voo.

Isto propicia o atendimento a uma maior diversidade de usuários e uma taxa de ocupação da aeronave que sustente a prestação do serviço. Além das preferências dos usuários, os preços do transporte aéreo são afetados, direta ou indiretamente, por outros inúmeros fatores, tais como: evolução dos custos (estes fortemente influenciados pelo preço do barril de petróleo e pela taxa de câmbio do real em relação ao dólar); eficiência da empresa; distância da linha aérea; grau de concorrência do mercado; densidade de demanda; baixa e a alta temporada; ações promocionais de concorrentes; restrições de infraestrutura aeroportuária e de navegação aérea; organização da malha aérea da empresa; porte e eficiência das aeronaves; e taxa de ocupação das aeronaves.

Importante destacar que a distância é apenas um dos fatores que afetam os preços do transporte aéreo, mas não é o preponderante, pois o consumo de combustível é proporcionalmente maior na etapa de decolagem. Quando a aeronave atinge sua velocidade de cruzeiro, o consumo de combustível é menor.

A demanda de voos entre as localidades de origem e destino, por outro lado, é decisiva. Voos entre destinos com baixa densidade de tráfego podem não ser viáveis financeiramente e, quando viáveis, têm passagens mais caras.

Como se percebe, existem diversos fatores que influenciam o preço das passagens, por isso é comum haver passageiros de um mesmo voo pagando tarifas diferentes. É essa dinâmica que propicia a oferta de alguns assentos a baixo preço no transporte aéreo.

Sobre a evolução dos preços das tarifas, apesar de haver liberdade tarifária, alvo da decisão judicial em pauta, o gráfico abaixo ilustra como a tarifa aérea média doméstica real, em valores deflacionados pelo IPCA até dezembro/2011, e o valor médio pago por quilômetro voado (Yield Tarifa Aérea Médio Doméstico Real) sofreram redução entre 2002 e 2011. Isto é, os passageiros estão pagando bem menos para voar hoje, do que no início da década.

O cenário de livre concorrência atrai investimentos para o setor, estimula o crescimento do mercado e promove a ampliação da oferta. A decisão judicial comentada pode reverter esse quadro. Ao tabelar a rentabilidade da iniciativa privada, mesmo sendo esta uma concessionária de serviço público, não se leva em conta o risco específico da atividade nem os custos e características de sua prestação. As consequências negativas serão sentidas pelos consumidores, além de ser mais um agravante para a insegurança jurídica no país. Espera-se que as instâncias superiores do Judiciário tenham uma interpretação diferente acerca do tema.

_________

1 BARROSO, Luís R. “Ano do STF: Judicialização, ativismo e legitimidade democrática”. 2008. Disponível no site Conjur: http://www.conjur.com.br/2008-dez-22/judicializacao_ativismo_legitimidade_democratica. Acessado em 28/10/2013.

2 Processo 0009029-10.2013.4.01.3701 – TRF da 1ª Região

3 http://www2.anac.gov.br/estatistica/tarifasaereas

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Sobre o Autor:

Fernando Meneguin

Doutor em Economia. Consultor-Geral Adjunto/Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal.

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10 Comentários Comentar

  • Parabéns pelo texto!
    Isso só demonstra o despreparo de quem julga no país e como eles interferem em áreas que não entendem nada.

    • Obrigado, Anderson.
      Na verdade, nossos juízes são pessoas extremamente bem preparadas, mas é interessante abordar os casos sob outros prismas. A disciplina Análise Econômica do Direito é um instrumento interessante para se conseguir análises diferenciadas para questões jurídicas.
      Abraço.

  • Excelente artigo, Fernando. Parabéns. Se me permite um comentário, esse ativismo judicial que vai encarecer as tarifas aéreas é o mesmo que tem inviabilizado os convênios de saúde no Brasil. A maior parte deles não quer mais vender planos individuais ou familiares, mas somente empresariais. O motivo, a meu ver, além da penosa regulação do setor, reside justamente nesse ativismo judicial. O sujeito entrou no plano ontem e amanhã pede uma liminar – e consegue – para ser submetido a uma cirurgia ou outro tratamento mais gravoso. Os planos empresariais por outro lado, obedecem o código civil e os contratos têm mais importância. Aí o Ministério da Saúde faz aquela cara blasè de quem não tá entendendo nada!

    • Obrigado, Pedro. Ótimo exemplo esse dos planos de saúde! É algo para se pensar.
      Abraço.

  • Sou ferrenha defensora do Estado mínimo e da mínima intervenção do Estado na economia. Acho um absurdo o estabelecimento de preços por meio da caneta do juiz, sem que sejam avaliados todos os fatores intervenientes naquele setor da economia.
    Isso posto, acredito que o caso em tela traz algumas particularidades não consideradas pelo nobre articulista. O autor parte do pressuposto que, com os limites de preço estabelecidos pelo judiciário, a companhia aérea estaria operando em condições deficitárias, o que a levaria a: (1) cancelar a linha, ou (2) criar mecanismos de subsídio cruzado para que o déficit daquele período seja custeado por outros passageiros. Entretanto, o próprio autor cita que o preço da passagem na linha Brasília/DF – Imperatriz/MA é de R$ 289,00 em 2013 e será de R$ 429,00 a partir de fevereiro de 2014. Certamente a companhia aérea não está operando no vermelho com esses preços. Assim, observa-se que o preço de R$ 1529,00 a ser cobrado no mês de janeiro de 2014 é realmente abusivo e não se justifica nem mesmo pela lei da oferta e demanda. Conclui-se portanto que a limitação de preço imposta pelo judiciário para o mês de janeiro de 2014 não implicará em prejuízo para a operadora, mas tão-somente em redução de seus lucros no período.

    • Marcia, mesmo que os lucros sejam exorbitantes, coisa que não sabemos, não há nenhuma justificativa para limitá-los. Se você acha isso, sugiro abrir uma pequena empresa de transporte aéreo que faça esse trecho para competir com a TAM e cobrar um preço “não abusivo” aos seus clientes.

  • Obrigado, Márcia, pelos comentários.
    Não defendo a TAM, nem o valor da passagem em janeiro de 2014. O que pretendi reforçar é que o valor da tarifa depende de vários fatores, inclusive sazonais. Não posso dizer que o preço é abusivo ou não, pois não tive acesso à planilha de custos da empresa, mas também é fato que o magistrado também não teve parâmetro para estabelecer o valor tabelado.
    Mas agradeço muito sua posição, o debate democrático é que faz as situações melhorarem.
    Saudações.

  • Olá, Fernando, excelente artigo! Vc teria dados pós 2011? Me parece que houve uma ligeira subida de lá para cá com a aquisição da Trip pela Azul e a saída da Webjet.
    No mais, faço coro aos outros comentaristas e sugiro um estudo semelhante para os planos de saúde.

    • Obrigado, Luciana.
      Eu não tenho os dados, mas, com certeza, essa matéria merecia um estudo acadêmico detalhado!
      Abraço.

  • Fernando, como sempre, seus textos são muito bem escritos e fundamentados.

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