out
16
2013

A desigualdade de renda parou de cair? (Parte I)

O governo tem comemorado, ano após ano, a redução da desigualdade de renda no país. O Índice de Gini, uma das formas de mensurar tal desigualdade, tem caído sistematicamente desde o início da década de 2000, como pode ser visto no Gráfico 1. Criou-se um forte discurso oficial em torno da melhoria desse indicador: política social inclusiva, entrada dos pobres na classe média, expansão da classe C, crescimento da renda dos mais pobres em ritmo chinês, etc. Não seria exagero dizer que a queda da desigualdade é um dos carros-chefes da popularidade dos presidentes Lula e Dilma.

Usar o Índice de Gini tem sido muito útil para fins de propaganda oficial, pois a queda da desigualdade, medida por esse índice, aproximadamente coincide com a entrada do Partido dos Trabalhadores no governo. Essa coincidência temporal se torna uma importante ferramenta de propaganda do tipo “antes” e “depois”. Mostra-se o Gráfico 1 e fala-se: antes de o PT entrar no governo a desigualdade não se mexia; depois que o PT entrou no governo a desigualdade começou a cair.

Gráfico 1 – Evolução da Desigualdade de Renda no Brasil (Índice de Gini para a renda domiciliar per capita): 1977-2012

A Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) de 2012, contudo, traz um dado preocupante. Pela primeira vez em mais de dez anos não há redução no Índice de Gini, que ficou praticamente estagnado. Em 2011 registrou o valor de 0,527 e em 2012 ficou em 0,526, como pode ser visto no Gráfico 1.

Em anos anteriores, quando o Índice de Gini caía fortemente, o governo se apressava a divulgar a boa nova, por meio de comunicados técnicos. Mais recentemente essa tarefa tem ficado a cargo do IPEA que, em 2012, analisando o resultado da PNAD 2011, publicou o Comunicado nº 155 (A Década Inclusiva: desigualdade, pobreza e políticas de renda), que centrou toda sua análise da evolução da desigualdade no Índice de Gini, comemorando os resultados virtuosos.

Curiosamente, agora que tal índice parou de cair, o IPEA mudou seu enfoque. No novo documento Comunicado IPEA nº 159 (Duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela PNAD/IBGE), aquele órgão técnico coloca a análise do Índice de Gini em segundo plano, e passa a avaliar outras medidas de desigualdade que, ao contrário do Gini, continuaram a cair em 2012.

O IPEA passa a olhar para outros índices, como o de Theil ou a razão de 20% mais ricos em relação aos 20% mais pobres, que apresentaram queda de 2011 para 2012. Com base nisso, passa a adotar um tom otimista, de que a desigualdade continuou a cair e o sol continua a brilhar.

Não há nenhum problema em se avaliar a evolução de vários índices para se aferir com mais certeza a trajetória da desigualdade. Ademais, o fato de o Índice de Gini ter se estabilizado em um ano não quer dizer que ele não volte a cair mais adiante.

Contudo, ao adotar índices alternativos, o governo perde o discurso de que a desigualdade começou a cair quando o PT chegou ao poder, pois os demais índices de desigualdade já estavam caindo desde pelo menos meados da década de 1990. O Gráfico 2 mostra que entre o início e final dos anos 1990 houve uma queda significativa no Índice de Theil, e não tão acentuada no Índice de Gini. Além disso, já a partir dos últimos anos daquela década observa-se uma nítida tendência de queda para o Índice de Theil, e uma não tão nítida tendência de queda para o Gini.

Outro problema que distorce os resultados é escolher um ano base inadequado para comparação. Especificamente, o Comunicado Ipea usou o ano de 1992 como base para o cálculo da evolução da desigualdade no período pré-PT (vide Tabela 3, à pg. 11 do Comunicado IPEA nº 159). Com isso, aquele documento argumenta que a desigualdade teria crescido antes de 2003.

Ocorre que, como pode ser visto nos Gráficos 2 e 3, abaixo, o ano de 1992 representou um ponto de abrupta queda em todos os indicadores de desigualdade (vide pontos indicados por uma seta nos gráficos abaixo), que logo no ano seguinte voltou a subir.

Assim, se tomarmos 1992 e compararmos com 2002, teremos a impressão que houve aumento da desigualdade no período 1992-2002, como quer fazer crer o documento do IPEA, pois em 1992 ela era muito baixa. Mas 1992 não é um ponto representativo. Se mudarmos a base de comparação para o ano seguinte (1993) veremos que a desigualdade, em vez de subir, teve expressiva queda na comparação de 1993 com 2002 em todos os quatro índices apresentados nos Gráficos 2 e 3.

Usar o ano de 1992 como base leva, portanto, à errônea conclusão de que a desigualdade não caiu até 2002, antes de o PT chegar ao poder.

Gráfico 2 – Índices de Desigualdade no Brasil: Gini vs. Theil (1981-2009)

Gráfico 3– Índices de Desigualdade no Brasil: Razão entre 10% mais ricos e 40% mais pobres vs. Razão 20% mais ricos e 20% mais pobres (1981-2009)

Mas, por que não devemos utilizar 1992 como ano base? As melhores práticas nos ensinam que não se deve usar um ponto atípico como base de comparação. Nota-se, nos dois gráficos acima, forte oscilação das diferentes medidas de desigualdade ao final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Isso parece ser resultado de erros de medida na estatística. Com a inflação em níveis elevadíssimos, ficava difícil mensurar com precisão a renda das pessoas, em uma pesquisa como a PNAD que simplesmente pede aos entrevistados que lembrem, de cabeça, qual a sua renda no mês de referência. Como para 1992 a desigualdade é significativamente inferior à dos anos que o antecederam e que o sucederam, sem haver qualquer fator real que nos levasse a justificar sua queda, reforça-se a hipótese de erro de mensuração.

A Tabela 1, abaixo, coloca a questão em números. Ela mostra que na comparação de 1992 com 2002, todos os índices de desigualdade subiram, a exceção da relação entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres, com o que o IPEA conclui que a desigualdade antes de o PT assumir o governo estava em tendência de alta.

Porém, se mudarmos a base de comparação para 1993 veremos que a desigualdade caiu em todos os índices.

Tomar como base um ano atípico, dentro de um período cuja estatística tem baixa qualidade, parece ser um procedimento pouco ortodoxo. Por isso, nem 1992, nem 1993, são bases adequadas de comparação. O mais prudente é tomar como base um ano após o fim da hiperinflação. Assim, a Tabela 1 adota como bases tanto o ano de 1995, quanto o de 1996. Nos dois casos temos que, para todos os índices, a desigualdade era menor em 2002 do que nos respectivos anos de comparação.  Note, ainda, que, coincidentemente, o Índice de Gini, até recentemente o preferido do governo, foi justamente aquele que menos melhorou antes de 2002.

Tabela 1 – Variação nos índices de desigualdade de renda em diferentes períodos de comparação

É verdade que a queda da desigualdade foi mais intensa a partir de 2002/2003 do que no período anterior. Isso não se discute. Porém tal queda não foi integralmente decorrente de políticas do governo. Segundo cálculos do próprio IPEA, a dinâmica da economia privada, em grande parte impulsionada pela alta internacional no preço das commodities, foi responsável por mais da metade da queda da desigualdade. Ademais, quando as políticas de governo influenciaram na queda da desigualdade, criaram efeitos colaterais negativos, reduzindo o crescimento da economia.

Esse, porém, é um assunto que será tratado em outro texto, a ser publicado na próxima semana.

Por ora, resta lamentar que, diante da importância do Índice de Gini para avaliar a distribuição de renda, o Comunicado nº 159, do IPEA, não tenha analisado se a estagnação daquele índice é um sinal preocupante ou se está ocorrendo somente um simples desvio de percurso Lamenta-se também a mudança de enfoque, do Índice de Gini para outros indicadores de distribuição de renda, com o uso de uma base de comparação conveniente à conclusão que se desejava chegar. Isso só reforça a hipótese de que tal mudança foi motivada para sustentar o discurso político do governo.

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Sobre o Autor:

Marcos Mendes

Doutor em economia. Consultor Legislativo do Senado. Foi Chefe da Assessoria Especial do Ministro da Fazenda (2016-18). Autor de “Por que o Brasil cresce pouco?”.

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11 Comentários Comentar

  • Muito interessante o seu esclarecimento sobre os índices Gini e Theil. Mas acho que há um fator que nenhuma discussão técnica que conheço levou em consideração: a qualidade duvidosa dos dados sobre a renda dos mais ricos, cuja tendência natural é informar dados bem abaixo do que os reais.

    Acho importante problematizar essa discussão da desigualdade com o uso de um outro indicador, que cercaria por um outro lado: o quociente entre a transferência de renda para baixo, pela via dos programas sociais, e a transferência de renda para os mais ricos, pela via da remuneração da dívida pública e outros fatores concentradores da renda. Esses agregados podem iluminar melhor a questão do que índices como o de Gini e o de Theil.

    Além disso, deve ser bem interessante conhecer o índice de Theil pegando os 1% mais ricos versus os 20% mais pobres, pois a heterogeneidade dentro dos 20% mais ricos faz que essa agregação grossa encubra as enormes distorções que temos nessa Belíndia, em que os que podem cruzar a cidade de helicóptero não podem ser misturados com a classe média que se esfola em 2h de congestionamento para ir e outras 2h para voltar.

    Outra perspectiva, que traria uma visão clara do fenômeno que todos enxergamos, de esmagamento da classe média, seria comparar os 0,1% mais ricos e os 1% mais ricos com o estrato seguinte dos 10% mais ricos, ou seja, mostrar que a melhoria de condição de vida dos mais pobres não se dá à custa dos mais ricos, e sim que é a classe média que paga essa conta, bem como a do enriquecimento dos 0,1%.

    Outro fator, que pode se prestar a análises e debates de maior profundidade e precisão no foco, é o da desigualdade intra-setorial. Exemplo: como comparar a desigualdade entre os mais bem aquinhoados e os da camada inferior, dentro do segmento setor público? E dentro do sub-segmento judiciário, ou professores universitários, ou trabalhadores da indústria de transformação, e assim por diante?

    De qualquer forma, simplesmente levantar a pontinha do véu que encobre essa realidade complexa, e que é tratado geralmente da forma simplista que é usar o índice de Gini, por si só já é bastante meritório. Parabéns!

    • Que comentário espetacular, parabéns pra você!

    • Muito boa a análise, e muito bom o comentário do Sergio. Todo governo incluidor leva recursos para a base e o excluidor para cima. Acho que o Brasil atualmente pode ser representado por uma pirâmide como na época da revolução francesa. Só que a divisão entre classe media e baixa é difusa.

  • Negar a realidade dá trabalho: ‘não é mérito do PT’, etc … kkkkk E os demais indicadores?

    • Com certeza o mérito é da cidadã que fez esse comentário tão pertinente!

  • Anos 90 media de 0,59; isso foi uma vergonha constante; e contra fatos use melhores argumentos!!!!!

  • […] a partir daí, até começar a desacelerar juntamente com a economia, a partir de 2011. Há um artigo muito interessante analisando essa tendência no site “Brasil, economia e […]

  • Basta olhar as curvas dos gráficos que toda a tese do colunista cai por terra: mesmo excluindo-se 1992, como ele quer, é nítido que as inflexões para baixo são muito mais pronunciadas a partir de 2003 do que antes, quando as curvas eram quase planas. Não dá para tapar o sol com a peneira! Redução da desigualdade para valer só depois de 2003.

  • Como já apontado, o autor comete uma falácia. O GINI antes do PT tem flutuações para cima e para baixo em torno da média de 0,59. O GINI despenca a partir do início dos governos petistas. Em vez de reconhecer isto e oferecer explicações, o autor logo de cara já deixa claro que seu objetivo é tentar contradizer o óbvio e termina minimizando as ações do governo como programas de transferência de renda, diminuição do desemprego e aumento real dos salários como fatores relevantes para a queda da desigualdade. Enfim, um artigo que sacrificou a objetividade por causa do claro viés ideológico.

  • […] Vejamos: o índice de Gini, que é um dos principais indicadores de desigualdade, vêm caindo sistematicamente nos últimos anos. […]

  • […] (Fonte da Imagem: Brasil, Economia e Governo) […]

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