maio
6
2013

Por que o licenciamento ambiental no Brasil é tão complicado? (Parte III)

Como o processo de licenciamento prevê a revisão dos estudos ambientais pelos órgãos licenciadores, a ser feita depois de uma consulta à sociedade, deve-se investigar como acontece tal oitiva para podermos analisar os efeitos desse tipo de evento sobre o processo. Na Parte I desta série de textos, descrevemos a audiência pública do processo de licenciamento como sendo “um evento que representa uma oportunidade ímpar de participação direta da sociedade, sob a forma de perguntas e respostas à equipe técnica encarregada da elaboração dos estudos”. E daí? Isso funciona bem?

A resposta a essa questão é, também, uma das mais importantes do conjunto que aqui é apresentado para aceitar o desafio feito na pergunta-título da série. Se às comunidadesé dada a responsabilidade de aprimorar o EIA, orientando as exigências que o órgão licenciador faz ao empreendedor, sob a forma de condicionantes da emissão da respectiva licença, oseventos durante os quais se realizam tais consultas deveriam assumir importância determinante para legitimar o processo. Entretanto, não é exatamente assim que as coisas acontecem. De fato, a expressão “oportunidade ímpar” foi ardilosamente utilizada no primeiro texto da série. A imparidade deve ser entendida, nesses casos, como uma qualidade associada a uma ocorrência única, isolada, pontual.

Trata-se de uma consulta – e não de um processo decisório, enfatize-se – muito deficiente e problemática. De fato, os grupos de pressão que têm muito a ganhar ou a perder com a implantação de um determinado empreendimento ou atividade se mobilizam para um momento específico, datado, delimitado e, por conseguinte, de efeito bastante limitado. De parte do empreendedor, tudo são flores. De parte dos grupos contrários, tudo é desgraça. No centro do conflito estão os técnicos dos órgãos ambientais responsáveis pelo licenciamento, geralmente mal remunerados e com uma enorme responsabilidade. Junte-se a isso a falta de capacitação para dirigir tais eventos e o compreensível temor por sua própria segurança pessoal e temos um grande estímulo para esses funcionários – para fazer outros concursos, é claro.

Nas audiências, os que crêemque perderão muito e os que acreditam que terão muito a ganhar com a implantação do projeto agem mais intensamente que os demais setores da sociedade, e, nesses casos, sua pressão pode gerar um viés favorável ou contrário ao projeto. A regra geral é encontrarmais mobilizados os grupos que enfatizam as externalidades negativas do projeto, enquanto potenciais beneficiários dos demais setores da sociedade não comparecem à audiência e, portanto, não

opinam. Uma das causas dessa distorção é a relativamente fácil identificação dos potenciais afetados, ou seja, os que consideram serem seus prejuízos evidentes e certos são sempre mais visíveis. Já os potenciais beneficiários formam, muitas vezes, um grupo difuso, que não consegue sequer precisar quando e quanto receberá algum benefício.

A rigor, o licenciamento prevê – ao menos em teoria – contribuição da sociedade não apenas nas audiências públicas, mas, também, durante a realização dos estudos ambientais. Não há dúvidas de que o mais recomendável para o aprimoramento do processo seria a troca de informações entre comunidades, técnicos e cientistas. O objetivo principal seria subsidiar a elaboração do próprio EIA, apontando prioridades e auxiliando na identificação dos possíveis impactos sobre o ambiente. A incorporação de contribuições relevantes poderia, desse modo,promover ganhos significativos em razão da possibilidade de aprimoramento dos projetos, o que diminuiria ou eliminaria os conflitos associados ao licenciamento.

As consultasà sociedade têm um grande potencial de contribuição no que se refere aos procedimentos de mediação de conflitos, pois podem incorporar de modo efetivo as dimensões social e ambiental do desenvolvimento, tanto regional quanto nacionalmente. Todavia, na prática, tal contribuição é espasmódica, superestimada, distorcida e tardia. Praticamente não existem processos de licenciamento sem a realização dessas audiências, mas esses eventos oscilam entre a sonolência burocrática e a histeria coletiva, eventualmente beirando o ridículo.

Os mecanismos que emergem de normas imperfeitas não apenas estão longe de garantir a efetiva participação da sociedade no licenciamento como, também, permitem a criação de importantes espaços de atuação para interessados no acirramento dos conflitos. É um verdadeiro caldo de cultura para oportunistas.

As audiências públicas não atingem os seus objetivos, pois não têm sido acatadas como garantia da participação social no processo de licenciamento. São eventos radicalizados pelo enfrentamento de grupos de pressão – entre si ou entre esses grupos e os empreendedores. As discussões são, na realidade, embates contaminados pela utilização de avaliações subjetivas, de informações não-validadas e de argumentação desprovida de caráter técnico ou científico.

Na prática, esses eventos impedem que haja a negociação. Aliás, essa é uma palavra interpretada como sinônimo de negociata por muitos ativistas. Faltam as indispensáveis discussões sobre informações validadas por mecanismos confiáveis. Os subsídios ao processo decisório são prejudicados pela forma de atuação de movimentos sociais, representados nesses atos públicos por pessoas que alegam uma legitimidade que não é facilmente atestável.

Os contendores, em geral, demonstram desconhecimento do EIA e do Rima. Esse fato, por si só, é muito relevante. Porém, é ainda mais significativo quando se considera que, em geral, as comunidades afetadas – como as indígenas, por exemplo – não se encontram preparadas para avaliar e discutir estudos de tal complexidade. Isso confere grande dificuldade ao exercício da participação, na medida em que, para tanto, é necessário empreender análises técnicas ou científicas dos estudos apresentados pelos empreendedores. Nesses espaços atuam os “intérpretes”dessas comunidades.

Essas são ocasiões em que os movimentos sociais e as organizações não governamentais concedem a si próprios o monopólio da representação das comunidades afetadas. Como regra geral, essas entidades atribuem aos políticos – ainda que tenham sido eleitos por essas mesmas comunidades – falta de legitimidade para representá-las. De outra parte, o espaço aberto nas audiências públicas é, com frequência, utilizado por pessoas que, em grande medida, se associam às reivindicações das comunidades por mera estratégia eleitoral.

O espaço das audiências públicas é utilizado, na maioria dos casos, como estuário dascarências das comunidades das regiões de influência do empreendimento, especialmente de demandas antigas não adequadamente resolvidas pelo Poder Público. Desse modo, o dever do atendimento de algumas – ou muitas – das necessidades básicas da população passa a ser do empreendedor. Ele se torna responsável pela alocação de recursos e pela realização de obras destinadas ao cumprimento dessas exigências que, de resto, são guindadas à condição de condicionantes socioambientais.

Assim, no processo de emissão de licenças, ainda que não esteja clara a relação entre os impactos da obra e essas compensações, o empreendedor é “promovido” a agente público. Postos de saúde, escolas, meios de transporte, distribuição de energia elétrica, saneamento básico e segurança pública são apenas alguns dos tópicos dessas extensas listas de obrigações.

Em vez da discussão dos impactos associados ao projeto, nas audiências públicas as análises e os debates envolvendo o EIA e o Rima transformam-se em uma interminável ladainha de reivindicações que, equivocadamente, são feitas ao órgão licenciador ambiental, ainda que o empreendedor seja o Estado. Desviados de seus objetivos fundamentais, esses eventos são utilizadas tanto por defensores quanto por adversários dos projetos para cooptar a população afetada e seus vizinhos, além dos usuais expedientes destinados à obtenção de espaço nos meios de comunicação. Nesses casos, é bastante frequente a manipulação política das populações envolvidas.

Tais características são agravadas pelo rito adotado nas audiências públicas. Nelas a falta de capacitação dos servidores que presidem os eventos e a linguagem utilizada nos processos de comunicação com a sociedade, tanto na elaboração do Rima quanto nas apresentações durante as audiências, deixam um quadro de imobilidade nas comunidades locais. Essa imobilidade deriva da falta de entendimento adequado das características do projeto e da expectativa de que as reivindicações feitas ao longo desses eventos sejam atendidas. Nesse contexto, é comum a realização de audiências do licenciamento como simples etapas de um processo burocrático que apenas legitima decisões prévias.

É um grande equívoco dar à audiência pública a condição de momento maior da participação da sociedade no licenciamento ambiental. Esperar que, por intermédio de uma consulta restrita e pontual, o processo de licenciamento seja aprimorado é uma ingenuidade. Os debates relacionados com a localização, a instalação, a ampliação e a operação dos empreendimentos não podem ser feitospor meio de rituais desse tipo.

As audiências são, a rigor, procedimentos administrativos realizados ao longo de algumas torturantes horas e que ocorrem, não raras vezes, em locais e horários inadequados. Isso para não falar das apresentações elaboradas pelos responsáveis pelos projetos, não raro, incompreensíveis para o cidadão comum.

Há muitos episódios esquisitos que ilustram bem a inutilidade dessas consultas isoladas. Citaremos três, nenhum deles fictício ou fruto de hiperbolismo. Um gasoduto foi apresentado aos potenciais interessados em conhecer os impactos do projeto durante uma audiência ocorrida no oitavo andar de um prédio. Tratava-se do edifício-sede da federação das indústrias de um dos mais pobres estados brasileiros. Não bastasse o evidente desestímulo à presença dos cidadãos mais humildes no debate, o evento foi realizado à noite, na hora da novela de tevê. Uma ferrovia foi descrita aos poucos e sonolentos presentes em um enorme auditório,após o almoço de sábado, em uma cidade do interior do Nordeste, onde esse dia da semana é dedicado ao consumo de buchadas de bode no almoço, sempre seguidas de uma reconfortante sesta.Uma hidrelétrica de grande porte na região Norte teve os seus estudos apresentados e bravamente defendidos, ao longo de uma escaldante tarde, em um ginásio coberto de uma pequena cidade, por um competente técnico “hermano” que, malgrado suas incontestáveis credenciais técnicas, descrevia os estudos ambientais em bom “portunhol”. É tão surreal que dispensa comentários adicionais, mas também aconteceu.

Os empreendedores, em geral, não evitam a disseminação de informações inadequadas ou incorretas. Ainda pior, quando o Rima é apresentado às pessoas, muitas opiniões e impressões já foram cristalizadas entre os locais. No caso das usinas hidrelétricas, por exemplo, a mera notícia de sua construção provoca apreensão e incerteza nas comunidades, especialmente aquelas da área de influência direta do empreendimento. Especulações sobre áreas passíveis de serem inundadas criam um clima hostil para os empreendedores. Movimentos sociais se posicionam contra o desenvolvimento das atividades previstas no projeto. Grupos ambientalistas protestam preventivamente. Quase nada poderá mudar nas audiências, ainda que o projeto seja adequadamente compreendido pelas comunidades atingidas, o que raramente ocorre. Desse modo, a rigor,essas reuniões pouco ou nada contribuem para o esclarecimento da sociedade.

As audiências públicas acabam por se tornar complicadores adicionais do licenciamento, pois essa forma de participação é, com freqüência, contestada judicialmente pelos descontentes tanto com a dinâmica dos eventos quanto com os resultados obtidos. O descontentamento existe tanto por parte de movimentos contrários aos empreendimentos sob licenciamento quanto dos principais interessados na obtenção das respectivas licenças. Ressalte-se que essas consultas não são raras, como demonstra o quadro abaixo:

Considerando-se o período de um ano como o conjunto de 52 semanas, tem-se que, de 2005 a 2012, transcorreram 416 semanas. Portanto, o Ibama planejou e executou no período, em média, uma audiência pública por semana. Considerando-se o ano de 2010, a média aproximada é de 1,58 eventos desse tipo a cada semana. É uma tarefa de considerável envergadura, especialmente quando se consideram os recorrentes problemas orçamentários daquele órgão. Contudo, não são obtidos ganhos proporcionais a esse louvável esforço, uma vez que há problemas nos fundamentos das audiências públicas. Eventos isolados não são capazes de responder adequadamente às expectativas criadas pela possibilidade de participação dos cidadãos interessados.

Processos efetivos de comunicação social poderiam dar aos atores desse processo melhores condições para sua contribuição para o aprimoramento do licenciamento. Quando não são utilizados apenas para promover empreendimentos, esses mecanismos têm grande potencial para viabilizar negociações legítimas, por meio da troca de informações validadas entre as partes interessadas.

Para dar a essas trocas tanto eficiência quanto eficácia, é preciso valer-se de técnicas de comunicação adequadas, esclarecendo as dúvidas pertinentes, dissociando-as das manifestações de ativismo rançoso e, com isso, permitindo que a sociedade participe de modo efetivo. O problema é que as normas legais não definem claramente critérios ou diretrizes para que seja possível estabelecer processos de comunicação ao longo do processo de licenciamento. Ao contrário, os componentes participativos do licenciamento ambiental são estabelecidos por meio de resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) – por meio de normas infralegais,portanto. Dada a omissão do Congresso Nacional diante do tema, a democracia participativa ocupa o espaço da democracia representativa. Assim é a vida na Terra, na qual o vácuo não dura muito tempo.

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Para saber mais sobre o tema:

Faria, I.D.  (2006). A “Síndrome de Genelício”:sobre a participação da sociedade no licenciamento ambiental.Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 31. Disponível emhttp://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD31-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2008).Compensação Ambiental: Os fundamentos e as normas; A gestão e os conflitos.Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 43.Disponível emhttp://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD43-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte II. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 94. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD94-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte III. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 99. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD99-IvanDutraFaria.pdf

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Sobre o Autor:

Ivan Dutra Faria

Especialista em Avaliação de Impactos Ambientais de Barragens. Mestre e Doutor em Política, Planejamento e Gestão Ambiental. Consultor Legislativo do Senado Federal (Área de Minas e Energia).

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  • Não é raro o fato de as comunidades interessadas chegarem às audiências públicas sem um conhecimento mínimo do projeto em questão. Por exemplo, no processo de licenciamento ambiental de uma ferrovia que só transportará carga é preciso ficar claro, o quanto antes para as comunidades das áreas de influência do projeto que, em princípio, não haverá transporte de passageiros na linha. Isso permitirá negociações tempestivas visando a alterar o projeto e, caso não sejam possíveis essas alterações, o oferecimento de justificativas convincentes para a tomada dessa decisão. A construção de eclusas em projetos de hidrelétricas é outro caso clássico de comunicação deficiente com os interessados.

  • A Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) realiza durante os dias 24 e 25, audiências públicas nos municípios de Aracati (Litoral Leste) e Pedra Branca (Sertão Central) para discutir os processos de licenciamento ambiental. Em Aracati, será discutida a ampliação de um empreendimento de carcinicultura marinha, de interesse da Carcinicultura Gavião Ltda. O estudo ambiental entregue à Semace informa que será adotado o sistema de cultivo semi-intensivo de engorda do camarão branco marinho da espécie Litopenaeus vannamei. O objetivo da empresa é implantar 54 viveiros de engorda, em duas fases, numa área de 283,39 hectares localizados na Fazenda Curral de Cima, no distrito de Morrinhos, na zona rural do município.

  • Por acaso acabei me deparando com essa leitura…fui analista ambiental em uma cidade no interior do RJ de poucos habitantes…simplesmente real infelizmente, mesmo em menor escala!

  • que pena que as audiencias piblicas já irem para as comunidades tão amaradas onde os empreários levam uma conversa “tão bonita ” e algumas pessoas são levadas pela falsa idéia de muitos empregos mais na verdade o que se vê depois é muita agressão ao meio ambiente pela ambição desenfreida do ser humano.sem falar que as vezes são dados parecer para esses emprendimentos ao apagar das luzes o que é uma vergonha.
    que Deus nos ajude a termos um meio ambiente equilibrado e saudavel para as proximas gerações visto que nós ainda não temos a chance de ter por muito tempo isso acontecer

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