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8
2013

Por que o licenciamento ambiental no Brasil é tão complicado? (Parte II)

Para continuar a responder essa questão, parte-se aqui do seguinte ponto: a legitimação do licenciamento ambiental exige a garantia de que as informações necessárias ao processo de tomada de decisão devem ser validadas por mecanismos confiáveis e só então transmitidas,em um padrão acessível de linguagem, à sociedade em geral e, nomeadamente, às comunidades diretamente afetadas pelo respectivo empreendimento.

Em princípio, trata-se de responsabilidade imposta no ordenamento jurídico nacional, a começar pela própria Constituição de 1988, tanto ao empreendedor quanto ao órgão licenciador. Mas, e quanto aos meios de comunicação, em geral? Em que medida a mídia influencia o desenrolar dos conflitos associados ao licenciamento ambiental, na medida em que se trata aqui da transmissão de informações devidamente validadas?

Quando se falava, bem antigamente, que papel aceita tudo, significando que qualquer um pode falar o que quiser, ainda que o que se diz não necessariamente corresponda à verdade, não se tinha a dimensão de que a coisa iria piorar tanto na chamada “Era da Informação”. Na questão ambiental – crème de la crème para palpiteiros – vale o que está escrito, no pior sentido da expressão. Não apenas o que está escrito, mas, também, o que foi dito ou filmado ou tuítado.

À época dos trágicos acontecimentos em Fukushima, apareceu gente – supostos famosos especialistas, é claro – dizendo na mídia que, com a “constatação inequívoca do aquecimento global”, os terremotos como o que deu origem ao tsunami que assolou o Japão iriam ficar cada vez mais frequentes. Quase ninguém reagiu,quase ninguém estrilou.É uma bobagem de proporções “tsunâmicas” que a turma engole assim, sem um piscar de olhos. E não fica só nisso.

Operadores do direito vem à cena para pontificar sobre questões complexas de natureza energética, opinando “categoricamente” de forma contrária à construção de grandes reservatórios na região amazônica, garantindo que o “potencial hídrico” da região é tão grande que usinas a fio d’água são suficientes para a região, pois a vazão é muito grande e o “potencial ecológico” da biodiversidade local tem que ser protegido.

Cientistas políticos vociferam, também, contra as hidrelétricas e – como “especialistas de notório saber”, é claro – garantem que“a energia eólica é capaz de evitar a construção de grandes hidrelétricas”. Jornalistas que escrevem sobre meio ambiente atribuem a si próprios competência de engenheiro eletricista e, confundindo perdas elétricas na transmissão com perdas elétricas na distribuição, exigem “a construção de centrais elétricas perto dos centros de carga” e denunciam “perdas de 17% na transmissão”. Pobres dos que não sabem o significado desses conceitos e números, pois vão ser assombrados por essas “denúncias” recobertas pelo glamoroso glacê midiático. Os engenheiros do setor, por sua vez, sentem vontade de eletrocutar alguém.

Isso complica demais o licenciamento ambiental no Brasil, que, de modo cada vez mais intenso, vem se transformando em uma notável coleção de palpites que pipocam nos jornais, nas rádios, nas tevês, nos blogs, nos twitters e na Câmara de Vereadores de Ororingó do Oeste, onde, neste exato momento, o quinto vereador à esquerda de quem entra discursa sobre a sustentabilidade do desenvolvimento.

Com um pouco de boa vontade, o prezado leitor pode até achar divertida a evidente contradição de um jornalista que luta pela exigência de diploma para o exercício de sua profissão palpitar contra o uso da energia nuclear no Brasil, confundindo raios X com radioatividade. O leitor que nos perdoe, mas os especialistas não acham a menor graça nisso.

No final de 2007, por exemplo, uma revista semanal de grande circulação no Brasil publicou matéria de capa sobre um tema altamente vendável, por se tratar do novo apocalipse, do novo fim do mundo: o aquecimento global. Para “enriquecer” a reportagem, em vez de convidarem especialistas para estabelecer o tão útil contraditório científico, elaborou-se um quadrosintético das informações apresentadas pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla original). Note-se que esse órgão vem sustentando previsões que encontram forte oposição em uma parcela da comunidade científica formada pelos “céticos”, denominação que costuma ser acompanhada de algum escárnio que tenta desqualificar aqueles pesquisadores. Esse esgar crítico fica evidente ao longo da matéria da revista, deixando perplexos aqueles que acreditam, com razão, que ser “cético” é uma qualidade inerente ao bom cientista.

Contudo, o pior foi guardado para o final. Os autoreselaboraram umquadro-resumo com as contrastantes visões do IPCC e dos “céticos”acerca dos principais efeitos das mudanças climáticas sobre o planeta. Subitamente dotados de onisciência, os jornalistas definiram, em uma terceira coluna da matriz, “quem está certo”nesse conflito. Atingidos por um raio de clarividência e por ondas de amplificação da capacidade analítica, os sábios comunicadores definiram o lado que tem razão em uma batalha feroz, na qual estão envolvidos, em ambos os lados, centenas de doutores e pós-doutores em climatologia – uma ciência que estuda o que talvez seja o mais complexo e o mais caótico dos sistemas com que um cientista pode se deparar. Em tempo, nas semanas seguintes, a seção de cartas da revista não registrou um comentário sequer dos leitores da revista a respeito dessa desmedida pretensão científica deleigos.

O processo de licenciamento ambiental no Brasil costuma evidenciar a utilização dos mais variados argumentos de autoridade por meio de alguns supostamente inquestionáveis pesquisadores. Ora, isso não existe! Argumentações dessa natureza são utilizadas para definir alguns impactos socioambientais como irreversíveis e algumas rupturas do equilíbrio natural como definitivas.

A regra geral é assistir adebates que se dão no campo das convicções ou dos argumentos de fé. Desconhece-se o fundamento essencial da boa ciência: a avaliação pelos pares (peerreview). A avaliação pelos pares de um trabalho científico ou de uma pesquisa, por exemplo, é aquela feita por uma ou mais pessoas de competência equivalente à dos autores.Isso constitui a melhor forma de autorregulação de algum relevante campo do conhecimento, pois tem como fundamento ser feita por intermédio de membros qualificados desse campo, o que permite manter elevados padrões de qualidade e credibilidade.

Especificamente nos meios acadêmicos, a avaliação pelos pares é o método mais utilizado para determinar se um paper deve ser publicado.Isso ocorre no licenciamento ambiental, é certo, mas apenas no diálogo entre os responsáveis pela elaboração dos estudos e os técnicos do órgão licenciador – especialmente no caso do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Em paralelo, quase sempre desqualificando os autores dos estudos e os técnicos que os analisam, há grupos de pressão – que incluem servidores de carreiras de Estado em atividade funcional – cujos argumentos são os preferidos da maioria dos grandes formadores de opinião.

Render-se a uma supostamente irretorquível argumentação de um suposto incontestável pesquisador sobre determinado tema ou é uma opção ideológica ou um conformismo intelectual ou uma reverência medíocre ou um conhecimento epidérmico ou, pior, uma desmedida ignorância. Não é assim que a banda da ciência toca. E meio ambiente é – também e principalmente – matéria para a ciência e não apenas para a política.

As religiões e as ideologias podem compor uma interessante oposição dialética à ciência e isso é bem visto pelos que praticam a boa ciência. Não é,necessariamente,um diálogo antipodal. Os usuais antípodas da ciência, mais precisamente da adoção do rigor do método científico aplicado às ciências naturais, são os que confundem, intencionalmente ou não, o científico com o cientificista, oferecendo como alternativa a crença e a convicção.

Superstição e ciência distinguem-se, especialmente, pelo fato de a primeira não ser capaz de verificar suas previsões iniciais, enquanto a segunda pode fazê-lo por meio de metodologias rigorosas e instrumentos confiáveis.

A ciência pode acumular evidências que comprovam ou quefalseiam uma hipótese e, ainda assim, exige que tais comprovações sejam constantemente reavaliadas. Provas obtidas devem ser reexaminadas e rigor metodológico dos experimentos deve ser capaz de por os fatos à prova.

A ciência lida com a complexidade assumindo fragilidades conceituais, metodológicas, instrumentais e operacionais para, com isso, dar respostas provisórias, ainda que possíveis. Já o combate ideológico maximiza negativamente a intensidade da resposta dos ecossistemas às modificações provocadas pelas ações antrópicas, sem que o método científico valide suas crenças. Ao contrário, a ciência pode vir a derrubar verdades estabelecidas como resultados de processos predominantemente filosóficos ou ideológicos, ainda que sejam resultantes de esforços bem intencionados.

Os leigos em ciência ajudam a difundir equívocos. Um exemplo é considerar-se que, quanto de maior magnitude econômica forem os empreendimentos, maiores serão os impactos ambientais a eles associados. Trata-se de inferência não necessariamente verdadeira, pois um projeto pode não apresentar custos de instalação muito elevados, ainda que seus impactos sejam de grande magnitude e relevância. De outra parte, não se pode desconsiderar o balanço dos efeitos negativos e positivos da implantação de um determinado empreendimento, especialmente quando comparados com o cenário esperado para a região, sem a implantação, a opção no-action.

Os conflitos associados aos processos de licenciamento ambiental no Brasil – em especial, os dos grandes projetos de infraestrutura – vêm sendo criados, predominantemente, por crenças e convicções preestabelecidas. São sentimentos que colidemcom os fundamentos das abordagens científicas dos impactos ambientais.

Em grande medida, crentes e convictos das partes conflitantes fecham-se, sistematicamente, e resistem a qualquer ponderação que vá de encontro ao conjunto de argumentos que defendem. Essa resistência ocorre independentemente de avaliações capazes de sustentar, cientificamente, os pontos de vista de qualquer das partes em conflito, o que leva à excessiva judicialização do processo.

No Brasil, as questões ambientais transformaram-se em matéria quase exclusiva dos operadores do direito. E isso não é nada bom. Não porque tais profissionais não devam participar da busca pelas soluções ambientalmente defensáveis para os problemas do desenvolvimento econômico. Ao contrário, eles não apenas são benvindos, são imprescindíveis. Todavia, seu papel vem sendo superestimado.

Embora mais atuantes e numerosos, os operadores do direito não estão sozinhos. É cada vez mais comum a presença de jornalistas, economistas, cientistas políticos e cientistas sociais, entre outros, no debate. Ainda que tenham uma função essencial na discussão,muitos desses profissionais vêm desempenhando um papel distorcido no processo – e isso dificulta ainda mais o licenciamento ambiental.

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Para saber mais sobre o tema:

Faria, I.D.  (2006). A “Síndrome de Genelício”:sobre a participação da sociedade no licenciamento ambiental.Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 31. Disponível emhttp://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD31-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2008).Compensação Ambiental: Os fundamentos e as normas; A gestão e os conflitos.Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 43.Disponível emhttp://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD43-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte II. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 94. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD94-IvanDutraFaria.pdf.

Faria, I.D.  (2011). Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte III. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 93. Disponível em http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD99-IvanDutraFaria.pdf.

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Sobre o Autor:

Ivan Dutra Faria

Especialista em Avaliação de Impactos Ambientais de Barragens. Mestre e Doutor em Política, Planejamento e Gestão Ambiental. Consultor Legislativo do Senado Federal (Área de Minas e Energia).

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