dez
6
2021

Uma questão absorvente

Uma questão absorvente[1]

 

 Por Marcos Mendes*, Henrique Moreira Rizzolli, Herly Xiao, Laura Guarnier, Leonardo Baran, Lucas Dalto Pizarro, Octávio Ferro Indio da Costa, Roberto Felize e Thiago Souza de Oliveira[2]

 

 Introdução

O presente texto utiliza a proposta de distribuição gratuita de absorventes íntimos a mulheres de baixa renda como estudo de caso de política pública. O intuito é mostrar a importância de se ter um diagnóstico adequado, definindo-se exatamente qual é o problema que se deseja resolver, as diferentes restrições, os impactos colaterais e as diferentes possíveis soluções.

Houve intenso debate na sociedade brasileira sobre a aprovação e veto parcial do Projeto de Lei 4.968/19, transformado na Lei 14.214/21. Seu objetivo principal era instituir o Programa de Proteção e Promoção de Saúde Menstrual (PPSM), que consistiria na entrega gratuita de absorventes ao seguinte público:

a) estudantes de baixa renda matriculadas em escolas da rede pública de ensino;

b) mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema;

c) mulheres apreendidas e presidiárias, recolhidas em unidades do sistema penal; e

d) mulheres internadas em unidades para cumprimento de medida socioeducativa.

Também propunha a inclusão de absorventes como itens da cesta básica entregues no âmbito do já existente Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

O Programa seria implementado de forma integrada pela União, estados e municípios, mediante atuação, em especial, das áreas de saúde, de assistência social, de educação e de segurança pública.

Os recursos viriam do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) e do Sistema Único de Saúde (SUS). No primeiro caso, seriam recursos inteiramente do Governo Federal, que é o responsável pelo financiamento do FUNPEN. No segundo caso, o financiamento seria realizado pelos três níveis de governo, que custeiam solidariamente o SUS.

De forma adicional, propunha-se que os absorventes higiênicos femininos feitos com materiais sustentáveis teriam preferência de aquisição, em igualdade de condições, como critério de desempate, pelos órgãos e pelas entidades responsáveis pelo certame licitatório.

Os vetos por parte da Presidência da República atingiram os artigos 1º (que assegurava a distribuição gratuita), 3 º (que definia o público alvo), 5º (tratamento preferencial aos absorventes produzidos com material sustentável), 6º (financiamento pelo SUS) e 7º (inclusão dos preservativos na cesta básica). Somente os artigos 2º (que institui o PPSM) e 4º (implementação pelos 3 níveis de governo) foram mantidos, os quais declaram apenas intenções.

Após os vetos instaurou-se choque de opiniões na imprensa e nas redes sociais que reproduz a polarização política vigente no país. Quem é contra o Governo Bolsonaro passou a criticar os vetos e propor sua derrubada. Os defensores do Presidente passaram a desqualificar o mérito da proposta.

Políticas públicas decididas por embates ideológicos ou eleitorais correm sérios riscos de levarem a maus resultados. Elas devem ser desenhadas a partir de uma identificação clara do problema a ser resolvido, da análise da experiência nacional e internacional em lidar com o problema, explorando-se diferentes possibilidades que possam ser adotadas conjuntamente. Custos e benefícios precisam ser adequadamente mensurados.

Por que intervir?

O ponto de partida para a discussão de uma política pública deve ser sempre a pergunta: por que o governo tem que intervir? O setor privado e os mecanismos de mercado não são capazes de resolver o problema sozinhos? No jargão econômico a pergunta é: qual a falha de mercado que se quer solucionar?

Isso porque toda intervenção estatal tem custos para a sociedade, pelo aumento de tributos e pelos custos administrativos e regulatórios que a ação estatal gera.

A principal falha de mercado, no caso, parece ser a existência de pessoas sem renda suficiente para adquirir um bem de primeira necessidade. Não há igualdade de oportunidade às mulheres pobres no acesso à saúde, educação e mercado de trabalho. Em sendo uma questão de política redistributiva há, a princípio, espaço para a entrada do governo visando facilitar o acesso da população em situação desfavorecida ao bem essencial.

Seria essa falha de mercado relevante? A julgar pela mobilização das agências internacionais voltadas a questões de equidade, o tema parece ser, de fato, relevante. A UNICEF desenvolve em uma das vertentes de sua campanha mundial “Water, Sanitation and Hygiene” (WASH), a conscientização e a distribuição de itens de higiene menstrual para regiões de baixa e média renda, além de localidades em estado de emergência. O tema também é abordado nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, com o recorte de reivindicação para o acesso de serviços de saúde.

Há diversas políticas públicas voltadas ao acesso a absorventes ao redor do mundo. O exemplo mais significativo é o da Escócia, a qual após um período praticando parcerias locais para o fornecimento de absorventes em instituições de ensino, começou em novembro de 2020 distribuir esse item gratuitamente para “quem precisar deles”, além de 500 mil libras (valores de 2020) destinados à instituição de caridade FareShare para a distribuição de produtos de higiene menstrual para famílias de baixa renda. Essa é uma experiência relevante porque se baseou em cuidadosa avaliação ex-ante das diferentes opções para a provisão do serviço público, de custos e de benefícios.[3]

Outra falha de mercado pode estar na estrutura de produção e oferta de absorventes. Havendo concentração da oferta em poucas empresas, não haveria concorrência perfeita e, com isso, surgiria a possibilidade de lucros extraordinários e oferta do bem inferior ao ótimo social. De fato, mais de 50% do mercado é atendido por três grandes empresas: Johnson & Johnson, Kimberly-Clark e Procter & Gamble[4]. Trata-se, portanto, de um mercado oligopolizado.

Nesse caso, haveria espaço para medidas diferentes e não cobertas pelo projeto de lei em análise: ações regulatórias tais como a redução de imposto de importação ou a verificação de eventuais práticas anticompetitivas das empresas do setor, visando melhorar a eficiência de mercado para que houvesse maior oferta e menor preço.

Os absorventes estão classificados na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) no código “96.19.00.00 – Absorventes e tampões higiênicos, cueiros e fraldas para bebês e artigos higiênicos semelhantes, de qualquer matéria”.

A alíquota da Tarifa Externa Comum do Mercosul é de 16%, mas a classificação está na lista de exceções com alíquota de 12%. Em decorrência de todo o debate sobre a questão dos custos dos absorventes, a Câmara de Comércio Exterior decidiu, em 19/11/21, reduzir a alíquota de importação de 12% para 10%. Também foi reduzida de 8% para 7% a alíquota incidente sobre produtos químicos essenciais à produção de absorventes[5]. Pode-se dizer que, embora tenha vetado o projeto de lei, o Governo Federal está se movendo em outra frente, visando o objetivo de tornar os absorventes mais acessíveis.

Uma consulta à base de dados da Organização Mundial do Comércio permite verificar as tarifas de importação impostas pelo Brasil em comparação com o restante do mundo. A figura abaixo mostra que o movimento recente colocou nossa tarifa de importação abaixo da média mundial e da América Latina. Mas ainda é alta em relação à dos países desenvolvidos e dos emergentes asiáticos.

Haveria, portanto, mais espaço para avançar nessa liberalização. O Brasil, contudo, tem limitações decorrentes do acordo do Mercosul. Em geral, nossa política externa está atada a princípios protecionistas que impedem que as importações elevem a concorrência e permitam que bens de consumo cheguem à população mais pobre a preços mais acessíveis. Pode-se dizer que, em parte, a necessidade de subsidiar produtos aos mais pobres vem de outra política pública, voltada a preservar a margem de lucro das empresas que atuam no País.

Absorventes e similares: tarifa preferencial média para grupos de países: 2020 ou 2021 (%)

 

Fonte: OMC (http://tariffdata.wto.org/ReportersAndProducts.aspx)

Nota: classificação de produtos = “Sanitary towels (pads) and tampons, napkins
 and napkin liners for babies, and similar articles, of any material”)

Fenômeno similar se dá no caso da chamada “margem de preferência” em compras públicas. Reproduzindo regra existente na antiga Lei de Licitações (Lei 8.666/93), a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/21), em seu art. 26, prevê que bens manufaturados nacionais possam ser adquiridos por preços mais altos que seus concorrentes estrangeiros. Ou seja, o intuito de proteger a produção no país – como no caso das alíquotas de importação – pode levar ao aumento de custos na aquisição dos absorventes, caso venha a ser ativada, na licitação pública, a cláusula de “margem de preferência”.

Quais as possíveis falhas de governo?

Toda política pública está sujeita a “falhas de governo”. A compra e distribuição de absorventes em grande escala, pelo Governo Federal, teria grandes desafios de logística de armazenamento e distribuição, o que poderia elevar os custos totais. Licitações públicas também são frequentemente assoladas por atrasos e casos de corrupção.

Uma forma de evitar esses custos é buscar canais alternativos de provisão e distribuição. O Brasil já dispõe do Programa Farmácia Popular, que utiliza a rede privada de farmácias para ofertar medicamentos e produtos de higiene a preços subsidiados. Nesse sentido, parece mais eficiente e lógico atender parte do público alvo por meio de programa já existente, em vez de criar uma nova estrutura de distribuição pela aprovação de uma nova lei. Note-se que o Farmácia Popular já oferta bens similares a absorventes, como fraldas geriátricas.

O Programa já foi objeto de avaliações[6] e, já tendo um histórico de execução, pode ser objeto de melhorias marginais, o que parece mais eficiente que a instituição de um programa totalmente novo. Uma possibilidade seria o novo programa se restringir a públicos específicos que não têm acesso às farmácias, como as presidiárias, ou ter distribuição suplementar nas escolas públicas (como, por exemplo, absorventes disponíveis para casos de emergência, em vez de distribuição ampla para todas as alunas).

A questão federativa

O art. 4º do Projeto de Lei, que não foi vetado, estabelece que o programa “será implementado de forma integrada entre todos os entes federados”. Trata-se, portanto, de uma legislação federal criando obrigação para todos os estados e municípios.

Do ponto de vista da organização federativa do País, não parece uma medida adequada. Uma das grandes vantagens de se ter uma federação é que cada governo local pode dar atenção às prioridades locais. Uma vez que o legislador federal toma uma decisão unificada para todo o país, perde-se essa flexibilidade.

É certo que em todos os lugares do país há mulheres de baixa renda necessitando de absorventes. Mas não necessariamente essa é a primeira ou uma das primeiras prioridades locais. Por exemplo, em um estado estudantes que recebam absorventes podem continuar faltando aulas por não terem transporte adequado ou porque não há professores na escola. Em um estado o foco da política pode estar mais na população carcerária, em outro, na população escolar e, em outro, nas mulheres que têm dificuldade de buscar emprego ou comparecer ao trabalho por falta de absorventes. Ao gestor local, que conhece melhor a realidade da sua comunidade, deve ser dada flexibilidade de escolha e ação.

Nesse sentido, em vez de uma lei unificadora nacional, medidas infralegais de inclusão de fornecimento de absorventes e outros produtos de higiene via SUS, poderiam ser oferecidos de forma voluntária aos estados e municípios. Uma forma de fazê-lo seria, por exemplo, mediante o compartilhamento de custos, por meio de transferência vinculada com contrapartida: a cada R$ 1 destinado pelo estado ou município para a provisão de absorventes, dentro de programa desenhado no âmbito do SUS, a União custearia, digamos, R$ 0,50. Isso equivaleria a um subsídio ou redução do custo da política para o governo local, induzindo, porém não obrigando, a participação no programa.

Um aspecto interessante da autonomia local é que os diferentes programas e diferentes abordagens poderiam ser submetidos a avaliações, de modo a se verificar qual das políticas locais se mostrou mais efetiva, constituindo caso de sucesso a ser copiado e adaptado por outros estados e municípios. Isso ampliaria a eficácia da política pública ao longo dos anos.

As formas alternativas ou adicionais de atingir o mesmo objetivo

O projeto de lei em análise escolheu o caminho da distribuição direta de absorventes. Quais seriam os caminhos alternativos para se atingir o objetivo final de tornar o produto acessível a mulheres de baixa renda? Obviamente as diferentes opções não são mutuamente excludentes. Juntas podem levar a efeito mais intenso que a simples distribuição. Mas, ao mesmo tempo, é preciso avaliar benefícios e custos.

Já se mencionou, acima, os mecanismos regulatórios de averiguação e prevenção de eventuais práticas anticompetitivas de mercado e de redução do custo de importação do produto acabado e de seus insumos. Também já foi apresentada a opção de venda na rede privada de farmácias, a custos subsidiados, no âmbito do Programa Farmácia Popular. A seguir, avaliam-se outras opções. 

Transferência de dinheiro

Outra possibilidade é simplesmente dar o dinheiro à família. De fato, um questionamento muito frequente à distribuição de absorventes foi o de que já existe o Programa Bolsa Família (PBF). E que esse Programa é elogiado justamente por deixar a opção de consumo nas mãos das famílias, não impondo um padrão único de consumo a partir de uma decisão do legislador ou da burocracia.

Um contra-argumento seria o de que as adolescentes não controlam o orçamento da família. São os pais e responsáveis que decidem por elas. E estes podem ter outro conjunto de preferências e prioridades. Esse argumento, usualmente utilizado para justificar a obrigação de matricular crianças na escola, também pode ser usado para justificar a distribuição direta dos absorventes.

Mas há os que apontam que o Bolsa Família tem entre as suas condicionalidades a presença na escola. Se uma adolescente está faltando por não dispor de absorvente, a família pode ser punida com a perda do benefício, o que faria os pais privilegiarem o atendimento da necessidade da adolescente. Somente o reconhecimento da ineficácia dos condicionantes do Bolsa Família ou a percepção de que as faltas em período menstrual não seriam suficientes para decretar a perda do benefício poderiam desmontar esse argumento.

Nesse caso, o esforço poderia ser o de prover as escolas com estoques de absorventes para atender a demanda eventual pelas adolescentes (em vez de provisão obrigatória a todas) e de melhorar o monitoramento das condicionalidades do PBF. 

Redução de impostos

Outra possibilidade seria a redução da tributação sobre o consumo de absorventes (não confundir com o imposto de importação, acima tratado). A experiência internacional mostra que vários países optaram por esse caminho.  Há registro de tratamento tributário preferencial na Alemanha, Austrália, Canadá, Colômbia, Jamaica, Líbano, Índia, Malásia, Nigéria, Uganda e Quênia[7].

Em 2004, o primeiro país a eliminar a tributação sobre produtos de higiene menstrual foi o Quênia. Em 2018, a Índia também eliminou a sua taxa de 12%. Em 2016 os países membros da União Europeia entraram em um acordo acerca da flexibilização sobre a taxação de produtos sanitários, mas não incluem uma regulamentação formal para a tributação como realiza com diversos outros produtos, estipulando alíquotas mínimas e máximas. Com isso, por exemplo, em 2019, a Alemanha conseguiu retirar a taxação de 19%, dado que os absorventes eram considerados um item de luxo pelo parlamento[8].

No Brasil, os absorventes (e tampões) são isentos do Imposto de Produto Industrializado, porém continuam com a incidência de outros impostos, como o Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e possuem uma alíquota de tributação média de 34,48%.

O problema de se utilizar a redução de impostos é a falta de focalização nos mais pobres. A redução da arrecadação, que fará falta para financiar outras políticas públicas, subsidiará os absorventes comprados pelos pobres e pelos ricos. Esse é o problema típico de se tentar fazer política de atenção aos mais pobres através de benefícios tributários[9]. Um estudo sobre os benefícios fiscais do ICMS no Rio Grande do Sul mostrou que os 30% mais pobres receberam menos de 14% do benefício, enquanto os 30% mais ricos se apropriaram de 50%32.

De modo similar, o Ministério da Fazenda, em 2017, estimou que destinar R$ 1 bilhão ao Bolsa Família produz um impacto 12 vezes maior para a queda da desigualdade do que desonerar em R$ 1 bilhão a cesta básica[10] . Isso porque, por um lado, acabam entrando no conceito de “cesta básica” produtos não consumidos pelos mais pobres, como carne de primeira. Por outro lado, os produtos têm variações de qualidade que não podem ser discriminadas na tributação: no caso dos absorventes, por exemplo, acabariam sendo desonerados tanto os mais baratos quanto os mais sofisticados. E a variação de preços e qualidade nesse mercado é ampla. Pesquisar o valor de uma unidade de absorventes nos seguintes sites: Amazon, Droga Raia, Drogaria São Paulo e Pague Menos. Notou-se que a variação de preço pode chegar a 10 vezes: a marca Tena-Maxi Night era vendida a R$ 2,42 a unidade, enquanto a marca Cottonbaby saia a R$ 0,26.

Deve-se notar a diferença entre reduzir impostos de importação e reduzir impostos sobre consumo. O imposto sobre importação não tem por finalidade principal arrecadar recursos para financiar políticas públicas. Sua função é regular o fluxo de entrada de produtos no país e o grau de proteção às empresas que atuam dentro do país. Embora a redução de ambos os impostos leve à diminuição do preço ao consumidor, os canais são diferentes. A redução do imposto sobre consumo resulta em perda de receita relevante para o governo, limitando sua capacidade de financiar outras políticas públicas. Já a redução do imposto de importação, não causa perda relevante de receita e atua sobre os preços ao aumentar a concorrência e diminuir margens de lucro e custos de produção.

Outra observação relevante é que o Programa Farmácia Popular, acima apontado como uma alternativa interessante de veiculação da política, também carece de focalização na população mais pobre. A princípio, qualquer indivíduo pode se beneficiar da aquisição de medicamentos subsidiados pelo Programa. No entanto, a forma segmentada de oferta e as exigências burocráticas para a aquisição subsidiada tendem a afunilar a busca pelo programa pelas pessoas que obtêm maior benefício marginal dos descontos. Não é, contudo, objeto desse texto uma avaliação pormenorizada da focalização efetiva do Programa Farmácia Popular.

Por fim, é importante chamar atenção para a importância de se fazer uma reforma tributária. A elevada tributação dos absorventes pelo ICMS decorre de distorções no nosso sistema tributário, que tributa muito os bens e pouco os serviços. Sendo os serviços mais consumidos por pessoas de alta renda, o sistema se torna regressivo. A introdução de um imposto sobre valor agregado (IVA), com alíquota única para todos os bens e serviços, corrigiria esse viés e reduziria o custo dos absorventes.

Adicionalmente, a reforma tributária reduziria a guerra fiscal e, com isso, o subsídio que os estados dão às empresas. Esses subsídios acabam sendo compensados por altas alíquotas nos bens tributados. Se extintos, viabilizariam alívio para todos os bens que hoje têm alíquotas elevadas.  Por fim, um IVA permite que se identifique claramente o montante total de impostos embutidos em um bem ou serviço comprado pelo consumidor final. Pessoas de baixa renda poderiam receber restituição total ou parcial de seu consumo via identificação pelo CPF, o que reduziria a necessidade de alíquotas diferenciadas para produtos específicos.

Produção comunitária de absorventes

Chamou atenção internacional uma bem-sucedida iniciativa do empreendedor indiano Arunachalam Muruganantham, que conseguiu criar um método simples de manufatura de absorventes[11]. Frente ao alto custo dos absorventes, em um mercado dominado por grandes empresas oligopolistas, ele identificou a necessidade de ofertar absorventes a baixo custo para a população indiana de baixa renda. Seu método padronizado, com maquinário simples e de baixo custo, permitiu criar nas comunidades rurais pequenas fábricas, que ocupam a mão de obra local, em especial feminina, produzindo itens que acabam sendo comercializados e consumidos localmente.

Esse tipo de experiência pode ser válido para o Brasil, seja para comunidades rurais, seja para favelas em áreas urbanas, e pode ser implantada de forma descentralizada e baseada em doações privadas, com pouca ou nenhuma participação do setor público. Não se está afirmando que funcionaria automaticamente. Como qualquer outra iniciativa de política pública, o sucesso desta estaria sujeito aos detalhes de desenho e implementação. Mas a experiência indiana é internacionalmente reconhecida como bem-sucedida. Logo, uma avaliação de possível adaptação ao Brasil mereceria ser avaliada.

Esse é mais um argumento que aponta para a relevância de soluções descentralizadas, tornando pouco eficiente a aprovação de uma lei uniformizadora e de aplicação obrigatória em todo o território nacional.

Os vetos presidenciais fazem sentido?

No ambiente de polarização em que estão sendo debatidas todas as políticas públicas, o Presidente da República foi fortemente criticado por vetar o projeto em análise. Os defensores da iniciativa legislativa tendem a afirmar que as justificativas dos vetos seriam “desculpa” para não implementar o projeto. Cabe analisar cada um dos argumentos usados nos vetos e verificar a sua consistência.

O primeiro argumento é de que o projeto de lei seria incompatível com a “autonomia das redes e estabelecimentos de ensino”. De fato, trata-se de ponto já assinalado acima: ao obrigar todos os governos e suas redes de ensino a implementarem um programa uniforme, definido pelo legislador federal, teríamos não só a anulação da autonomia das redes de ensino como dos próprios governos subnacionais. Não basta que se tenha uma causa nobre para desconsiderar essa autonomia, pois tal desconsideração também pode ser usada para finalidades menos elogiáveis. É preciso preservar as regras do jogo democrático e de funcionamento das instituições, e não se justifica quebra-las em função de um objetivo meritório.

Outro argumento é o de que se trata da criação de uma despesa obrigatória de caráter continuado. A Lei de Responsabilidade Fiscal exige, nesses casos, que se aponte uma nova e perene fonte de recursos ou o corte permanente de despesas para garantir o financiamento do programa. O projeto não foi claro a esse respeito, apenas atribuindo o custeio ao SUS e ao Fundo Penitenciário Nacional.

Mais uma vez, há que se preservar as regras fiscais, não cabendo flexibilizá-las em função do mérito da proposta em análise. Afinal, o mérito é sempre relativo a depender das preferências e interesse de quem o avalia. E a estabilidade fiscal é, em si, um bem público importante para proteger os mais pobres de fenômenos como a inflação, que corrói sua renda.

Há um veto específico à inclusão de absorventes na cesta básica que também é consistente. Argumenta o Poder Executivo que “o Projeto de Lei introduziria uma questão de saúde pública em uma lei que dispõe sobre segurança alimentar e nutricional”.

Por outro lado, há argumentos menos defensáveis ou que poderiam ser contornados. Alegou-se que não se pode fazer no âmbito do SUS um programa que seja voltado para clientelas específicas, pois o SUS tem caráter universal. Haveria espaço para, no âmbito do SUS, desenhar programas de subsídios ou fornecimentos nos postos de saúde e outras dependências públicas que não frustrassem o caráter universal. Mas isso teria que ser feito por instrumento infralegal. A proposição do programa na forma de lei, de fato, cria rigidez e maior dificuldade para uma adoção de caráter universal.

Outro argumento é o de que “absorventes higiênicos não se enquadram nos insumos padronizados pelo Sistema Único de Saúde – SUS, portanto não se encontram na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME”. Esse parece um argumento formalista e passível de ser superado, uma vez que se pode considerar a importância de medidas preventivas para a saúde, e o risco de uso de instrumentos inadequados e nocivos à saúde em substituição aos absorventes.

Conclusões

Esse texto procurou apontar diversas alternativas existentes para lidar com o problema do baixo acesso a absorventes por mulheres de baixa renda. Seu intuito foi mostrar que não há uma única maneira de solucionar a questão. Portanto, o ambiente de confronto entre os que são favoráveis e contrários ao PL 14.214/21 empobrece o debate público, pois não permite explorar as melhores soluções possíveis.

O projeto tem como ponto negativo o fato de não estar ancorado em estudos de avaliação ex-ante que tenham buscado identificar as melhores formas de atingir seus objetivos (formas de provisão, financiamento, parcerias, amplitude do programa, instrumentos de mercado para redução de custos dos produtos, etc.) como ocorreu, por exemplo, no caso escocês, citado no texto. Ademais, o PL propôs um modelo único, obrigatório, possivelmente de alto custo. Ao fazê-lo, feriu pontos importantes de instituições relevantes, como a autonomia dos entes subnacionais e das instituições de ensino ou as regras de responsabilidade fiscal.

Esse padrão único nacional desestimularia o surgimento de diferentes alternativas, subsidiadas ou não pelo Governo Federal, de governos subnacionais ou do terceiro setor, gerando diferentes soluções, passíveis de serem replicadas e adaptadas em diferentes partes do país. Avaliações ex-post indicariam os modelos mais efetivos e permitiriam a melhoria dos diferentes programas.

Por outro lado, o PL teve o mérito de abrir a discussão de um problema relevante e que tem sido objeto de políticas públicas em vários países. Ao fazê-lo, já induziu o Governo Federal a se mexer para, por exemplo, reduzir tarifas de importação de absorventes e de insumos necessários à sua produção.

O episódio também foi importante para mostrar como políticas protecionistas prejudicam os mais pobres. Altas tarifas de importação diminuem o grau de competição e elevam custos de produção, encarecendo os bens de consumo final, que se tornam menos acessíveis aos mais pobres. Já a margem de preferência para empresas nacionais nas licitações públicas encarece as políticas públicas de distribuição de bens aos mais pobres, como no caso dos absorventes.

Outro ponto relevante é a importância de uma reforma tributária para a redução do custo da cesta de bens consumida pelos mais pobres, com a possibilidade de mecanismos de devolução dos impostos pagos de forma focalizada na população carente.

Como em qualquer política pública, existem diferentes formas de atingir um mesmo objetivo. Explorar todas as possibilidades, avaliando-as cuidadosamente, além de agir de forma cooperativa (entre governos e com o setor privado) parece ser uma opção superior a simplesmente aprovar um projeto top-down, sem prévia avaliação de custos, benefícios e detalhes de implementação.

 

[1] Esse texto reflete esforço coletivo de análise da disciplina “Política Fiscal” dos cursos de graduação em Economia, Administração e de Engenharia do Insper. Marcos Mendes é o professor da disciplina e os demais autores são alunos.

[2] Os autores agradecem a Sandra Rios e Lucas Ferraz por informações que auxiliaram na elaboração do texto, sem implicá-los em eventuais erros ou associá-los às opiniões aqui emitidas.

[3] Ver: Access to free sanitary products: BRIA – gov.scot (www.gov.scot).

[4] Fonte: http://novo.febrafar.com.br/fabricantes-disputam-o-setor-de-higiene-pessoal/

[5] O Estado de S. Paulo 20/11/21: “Após veto de Bolsonaro, tributo para importação de absorvente é reduzido”.

[6] Ver, por exemplo, Luiza, V.L et al. (2018) Applying a health system perspective to the evolving Farmácia Popular medicines access programme in Brazil. BMJ Global Health. Disponível em: Applying a health system perspective to the evolving Farmácia Popular medicines access programme in Brazil (bmj.com)

[7] Fonte: BBC Brasil 26/11/2020  Escócia se torna primeiro país do mundo a oferecer absorventes e tampões de graça – BBC News Brasil

[8] Fonte: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/11/13/alemanha-acaba-com-taxa-do-absorvente-e-item-deixa-de-ter-19-de-imposto.htm

[9] Ver, por exemplo, Lisboa, M. et al (2020) Uma agenda econômica pós-pandemia:

parte I – qualidade do gasto público e tributação. Insper. Disponível em: https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/07/Uma-agenda-econ%C3%B4mica-p%C3%B3s-pandemia-parte-I-1.pdf

[10] Kanczuk, Fábio. https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/apresentacoes/arquivos/2017/apresentacao_equilibrio-geral-e-avaliacao-de-subsidios_fabio-kanczuk.pdf/view. Acesso em 26/9/2020.

[11] Ver sua apresentação em TED Talks em https://www.ted.com/talks/arunachalam_muruganantham_how_i_started_a_sanitary_napkin_revolution?language=pt-BR#t-56788. A Netflix oferece uma versão romanceada do episódio no filme “Pad Man”.

 

* Marcos Mendes é pesquisador associado e professor do Insper, além de ser membro do Instituto Fernand Braudel; os outros autores são alunos de graduação do Insper.

 

Sobre o Autor:

Marcos Mendes

Doutor em economia. Consultor Legislativo do Senado. Foi Chefe da Assessoria Especial do Ministro da Fazenda (2016-18). Autor de “Por que o Brasil cresce pouco?”.

Recomendações de artigos:

Inscreva-se

Publicações por data