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2017

Como a imprensa desinformou sobre a nova taxa de bagagem

Recentemente a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) autorizou empresas aéreas a cobrarem dos consumidores pelo despacho de bagagem, sob o argumento de que a separação das cobranças levaria a passagens aéreas mais baratas. A reação foi previsivelmente negativa. A revolta só cresceu desde que o IBRE e o IBGE relataram um aumento nas tarifas aéreas de junho a setembro, como podemos ver aqui. Boa parte da imprensa nacional correu para relatar o fato.

De fato, a julgar pelo que se lê, parece que cobrar bagagem à parte ou não teve impacto sobre as tarifas ou, pior, as fez aumentar. Entretanto, as conclusões são precipitadas.

Por que permitir a cobrança da franquia de bagagens?

Antes de entrar no aspecto empírico, vale entender o que fundamentou a decisão da ANAC. Seria ingênuo acreditar que empresas aéreas oferecem serviços acessórios, como comida e transporte de bagagem, gratuitamente. Como não podiam cobrar por estes serviços à parte, esses custos eram incorporados aos preços das passagens, tivesse o cliente malas consigo ou não. Assim, temos o que economistas chamam de subsídio cruzado: todos pagam pelo serviço, mas apenas alguns usufruem dele.

Agora suponha que as empresas recebam autorização para discriminar o transporte de bagagem. É tentador dizer que cobrarão mais de seus clientes para aumentarem seus lucros, mas faz sentido? Afinal, se empresas aéreas buscam o maior lucro possível e incluem o transporte de bagagem na tarifa, elas já estão cobrando o máximo que podem de seus passageiros. Portanto, se passarem a cobrar uma franquia e as tarifas não caírem, tudo o mais constante, as empresas perderiam demanda e lucro. Conclui-se que, tudo o mais constante, as tarifas diminuirão.

Essa é a ideia por trás da medida, algo razoavelmente consensual entre economistas.

O que aconteceu quando a mesma medida foi tomada no exterior?

Por mais bem fundamentado que seja o argumento teórico, é sempre necessário averiguar se ele tem aderência à realidade. Ou seja, checar se os dados confirmam a intuição.

Ainda é cedo para saber o que ocorreu no Brasil. Nenhum estudo sólido pode ser realizado com tão pouco tempo desde a mudança. Por outro lado, há muitos dados de outros países. Antes da mudança, apenas Brasil, Venezuela, Rússia, México e China regulavam a franquia de bagagem. Não faltam dados, portanto, para checar o impacto da regra no preço, em outros países.

Os economistas Jan Brueckner, Darin Lee, Pierre Picard e Ethan Singer realizaram um profundo estudo sobre a regra, nos EUA. A conclusão confirma a intuição: a cobrança da franquia de bagagem tende, de fato, a diminuir o preço das passagens.

A imprensa brasileira sequer checou o significado dos dados antes de divulga-los

Algum leitor mais cético apontará (com razão) que os resultados não necessariamente se aplicam ao Brasil. Afinal, segundo os dados citados por reportagens da grande imprensa, as tarifas subiram após a autorização da franquia. No entanto, ainda não podemos inferir nada.

Os dados usados pelas reportagens, tanto do IBRE quanto do IBGE, não se prestam a avaliar o impacto da medida sobre as tarifas. São apenas uma parte dos índices de inflação que essas instituições produzem.

O primeiro problema é que a cobrança de franquia vigora desde o final de junho. IBRE e IBGE colhem os preços de passagens compradas 30 dias antes do mês em que ocorre a viagem, no caso do IBRE, e 60 dias antes, no caso do IBGE. Assim, a variação de junho a parte de julho relatada pelo IBRE e a registrada de junho a parte de agosto pelo IBGE antecedem a mudança e não lhe podem ser atribuídas.

Ainda mais grave, vale notar que o IBGE passou a incluir as despesas com taxa de bagagem ao preço da passagem a partir de setembro, de modo que os dados do IPCA incluem o preço cheio. Não são úteis a esta análise, portanto.

Por fim, como algumas oferecem os dois tipos de passagem (com e sem taxa de bagagem) e os dados são agregados, i.e., fazem uma média das tarifas de todas as empresas nas regiões estudadas, não conseguimos observar o que aconteceu em cada caso.

Em suma, os dados do IBRE e do IBGE não podem ser usados para avaliar o efeito da cobrança de franquia sobre as tarifas.

A imprensa brasileira cometeu erros infantis de análise

Esclarecidos os defeitos dos dados, há ainda falha metodológicas graves. Há outros fatores que influem nas tarifas – o preço do combustível, a atividade econômica, a sazonalidade, etc., e variam ao longo do tempo. Se essas variáveis são relevantes e estão mudando, pelo menos parte da variação dos preços decorre delas. Desta forma, um estudo muito mais complexo seria necessário para identificar o efeito de cada variável para isolar o impacto da franquia de bagagem.

Tomemos como exemplo a sazonalidade: tarifas tendem a subir em certas épocas do ano e cair em outras por motivos diversos – períodos de férias, feriados e outros eventos com frequência anual ou maior influenciam a demanda por transporte aéreo. Alunos de economia aprendem, desde a graduação, os problemas em analisar uma série sazonal sem o devido cuidado.

Desenhamos o padrão sazonal no gráfico abaixo com a variação mensal mediana da tarifa média por mês , conforme os dados do IPCA de 2009 até setembro de 2017.

Não escapará ao leitor que a sazonalidade favorece o aumento das tarifas de voos realizados de junho a setembro – e, portanto, é razoável supor que ela explique em parte os aumentos observados. Ademais, nota-se também que a variância da taxa de crescimento mensal das tarifas é tamanha que poderia ofuscar o impacto da cobrança da franquia.

Em suma, é perfeitamente possível que os opositores da cobrança da franquia de bagagem estejam certos. No entanto, para sustentarem sua tese é necessário que: a) entendam e usem os dados adequados; e b) controlem os efeitos de outros fatores com métodos adequados.

Este texto foi original publicado na página do Instituto Mercado Popular, em 20 de outubro de 2017.

 

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Sobre o Autor:

Maurício Schwartsman

3 Comentários Comentar

  • Parabéns pelo artigo. Fiquei com uma dúvida: porque vc usou a mediana – e não média – das variacões mensais para estimar os fatores sazonais.
    Vc sabe se a Anac calcula esses valores sazonais?

  • 1) Porque a mediana é uma medida mais robusta. Às vezes um valor extremo isolado é capaz de “puxar” a média para si e afastá-la do centro dos dados. Isso dito, se tivesse usado a média, o desenho ficaria parecido – exceção feita, talvez, a março e novembro.

    2) Até onde sei, não. A Anac tem uma base de microdados que registra quando uma passagem foi comprada, mas não quando será o voo. Neste caso seria possível ver como a época do ano em que a passagem foi comprada influi no preço, mas não como a data do voo interfere.

  • Obg pela resposta, Maurício.

    Algumas observações/ideias:

    1. visualmente, me pareceu que a dispersão das variações dos preços é muito alta. Dei uma olhada nos dados da ABEAR (ASK = available seat kilometer (oferta de assentos vezes kilometros); (RPK = revenue per seat per kilometer). taxa de ocupação e outros). Esses indicadores têm menor flutuação. Pensei que um modelo interessante para tentar estimar os efeitos sazonais, do ciclo e de custos pudesse ser:
    a) como a indústria tem planejamento rígido, as flutuações no ASK mês a mês seriam a melhor estimativa das companhias sobre qual seja a variação mensal na demanda e, portanto, a melhor informação sobre variação sazonal (ask maiores que a média levariam a aumentos sazonais e ask menores levariam a .reduções sazonais)
    b) a variação na taxa de ocupação poderia funcionar como proxy do “erro” de planejamento do ASK pelas companhias, devido a surpresas na demanda. Essas surpresas na demanda poderiam ser interpretadas como decorrentes do ciclo econômico (uma taxa de ocupação menor do que a média pode ser interpretada como surpresa desfavorável em relação à demanda planejada), o que reduziria os preços.
    c) há declarações recentes da ABEAR estimando que o custo de capital (fretameto) responde por 22% do custo (assim, variações no dólar poderiam servir como proxy do aumento do custo de capital em reais)
    d) a mesma fonte estima que o combustível responde hoje por 25% dos custos (historicamente esse custo representava 40% do custo total). A queda teria ocorrido por aumento da capacidade ociosa que elevou o custo de capital unitário e pela queda no preço do petróleo.
    e) os custos de mão-de-obra não variaram no período, já que o dissídio da categoria é em dezembro.
    Mesmo considerando que há poucos meses na série, talvez fosse possível testar minimamente o que ocorreu de fato com os preços de junho a setembro, filtrando o ciclo econômico, as variações sazonais e as variações de custo (combustível e dólar). No caso dos custos, seria necessário usar a cotação do petróleo e do dólar futuro, já que a pesquisa do IBGE tem um atraso de 60 dias.

    2. li o paper que vc. indicou e mais alguns outros. Senti falta na literatura de menção aos custos fixos da estrutura de coleta, embarque, acondicionamento, retirada e entrega de bagagem despachada. Aparentemente, essa estrutura é bastante cara e tem prazo de depreciação elevado. Uma redução na demanda de bagagens despachada não eliminaria esses custos fixos. Como a própria cobrança geraria deslocamento para baixo na demanda, a medida imporia um aumento grande do custo fixo unitário da bagagem despachada. No mínimo, esse fator reduziria o ganho líquido das empresas com a cobrança de bagagem.

    3. um ponto que me chama a atenção é que a cobrança por volume é fixa e, portanto, independe da distância, do peso e do número de conexões. Isso depõe contra o argumento de que a medida visa imputar os custos da bagagem despachada exclusivamente aos usuários do serviço. A cobrança não reflete os fatores de custo. A isso se junta o fato de que, no curto prazo, há aumento de custo fixo unitário em razão da capacidade já instalada ser inflexível no curto e no médio prazos.

    São algumas ideias que gostaria de levar até você. Se achar interessante e quiser discutir mais, meu email é marcoskohler@hotmail.com

    Abs

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