jun
20
2016

Adianta reservar vagas para mulheres no Legislativo?

O feminismo e todo o debate sobre igualdade de gêneros no Brasil vêm ocupando o centro das discussões na arena pública de tal modo a propiciar a apresentação e tramitação da Proposta de Emenda à Constituição nº 98/2015, a qual reserva um percentual mínimo de cadeiras nas representações legislativas em todos os níveis federativos. Trata-se de questão delicada que merece reflexões cuidadosas.

Nesse contexto, é pertinente resgatar o diferenciado enfoque dado por Jürgen Habermas1 a essa questão, sob o filtro da sua teoria discursiva. Para esse autor, o estabelecimento do rol de direitos fundamentais de uma sociedade deve ser feito por meio de um ambiente dialógico no qual argumentos racionais possam ser apresentados e debatidos por cidadãos livres e iguais, fazendo com que a autonomia privada se compatibilize com a pública por meio da possibilidade de participação no processo democrático e da aceitabilidade dessas decisões por todos os destinatários.

Inicialmente, o movimento feminista clássico reivindicava uma maior inserção da mulher nos sistemas de ação social (por meio da busca da igualdade de oportunidades de educação e trabalho), um maior apoio na superação de desigualdades naturais e sociais (amenização da dupla jornada com o oferecimento de creches para os filhos, direitos penitenciários diferenciados às mães, licença maternidade) e liberdades subjetivas (liberdade de reprodução, de pornografia, de prostituição, de atividade homossexual). Nesse contexto, o Estado liberal procurava apaziguar a situação, eliminando entraves formais ao livre acesso das mulheres nos diferentes âmbitos sociais, enquanto o Estado Social, com a retórica de uma justiça distributiva, positivava e regulamentava direitos formais aptos a conferir maior autodeterminação da vida privada das mulheres2.

Tais estratégias são utilizadas até hoje por governos democráticos para acalmar os ânimos dos movimentos feministas por meio da satisfação das suas demandas. Apesar do sentimento progressista que essas soluções possam proporcionar, elas acabam por manter as destinatárias da regulamentação alheias a esse processo de produção legislativa, já que consiste em um mero favor paternalista da classe política, segundo o teórico. Além disso, essas medidas agravam a discrepância entre igualdade de direito e de fato e estabelecem uma política de “discriminação através de favorecimento”3, dividindo a sociedade entre favorecidos (homens) e desfavorecidos (mulheres). Habermas também alegava que esse tipo de legislação apenas favorecia a categorias restritas de mulheres às custas das outras, em face das generalizações contidas nos discursos feministas e pelo fato dessas vanguardas não deterem o monopólio dos pontos de vista de todas as mulheres.

Com tais argumentos o autor não pretende negar a importância da implementação de vários desses direitos e a essencialidade dos movimentos feministas na luta pela defesa de mulheres que não possuem voz, mas apenas questiona a efetividade de leis supostamente equiparadoras feitas no interior de uma cultura definida e dominada pelos homens, uma vez que essa está impregnada de estereótipos acerca da identidade de sexos, tomados como algo dado4.Nesse caminho, o feminismo atualmente tem focado seus esforços na refutação e reconstrução de tais construções sociais e no incentivo da participação das próprias afetadas no discurso público5.

Isso porque nenhuma regulamentação heterônoma, por mais sensível às questões de gênero que possa ser, é capaz de alcançar o escopo e a legitimidade conquistados por um processo legislativo permeado pela efetiva participação das mulheres de diferentes origens, hábeis a esclarecer os aspectos relevantes para uma posição de igualdade. Assim sendo, mecanismos institucionais e legais que incentivem a participação das mulheres na política são iniciativas louváveis e que propiciam o aprimoramento do Estado democrático de Direito, se implementados adequadamente.

Com esse objetivo, uma série de normas foram promulgadas no decorrer dos últimos anos estabelecendo cotas para acesso de mulheres aos diferentes espectros da participação política. Em 1995, a Lei nº 9.100/95 estabeleceu um percentual mínimo de 20% para ocupação de mulheres nas campanhas municipais (art. 11, §3o), enquanto que, em 2009, a Lei nº 12.034/2009 (art. 10, §3o), alterando a Lei nº 9.504/97, passou a prever a participação mínima de 30% e máxima de 70% para cada gênero para as candidaturas no sistema proporcional em todas as esferas federativas. Já em 2010, com a Lei nº 13.165/2015 determinou-se que fosse destinado 10% do tempo de propaganda, nos programas e inserções, para as mulheres (art. 45, IV, da Lei nº 9.096/95) e 5% do fundo partidário para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres (art. 44, V, da Lei nº 9.096/95).

Diante de todas essas medidas, o número de candidaturas de mulheres cresceu expressivamente: somente na Câmara dos Deputados esse número passou de 935 para 1.730 mulheres das eleições de 2010 para 2014 (acréscimo de 85%), segundo dados do TSE. De todo modo essa tendência de crescimento não foi seguida pelo número de mulheres eleitas nas respectivas Casas: 51 deputadas em 2014 e 45 em 2010 (crescimento de apenas 13%)6. Assim, considerando-se que o eleitorado brasileiro é composto por 52,13% de mulheres7, esses números indicam que os resultados dessas medidas legislativas vêm sendo muito aquém do desejado no tocante à representatividade das mulheres na política (9,9% do total de deputados), talvez em face do alto índice de descumprimento dessas determinações e da falta de punições mais severas e efetivas para esses descumprimentos, ou pela própria imperfeição desses mecanismos.

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A explicação mais provável para essa discrepância entre número de candidatas e número de eleitas pode estar na inefetividade do mecanismo proposto. A obrigatoriedade de um número mínimo de candidatas incentiva os partidos a procurar mulheres que apenas irão “alugar” seus nomes para as legendas, sem qualquer intenção de efetivamente participar do pleito8. A probabilidade de essas mulheres se elegerem é, portanto, mínima. Por outro lado, mulheres realmente interessadas em participar do processo político, passaram a ter maior chance de conseguirem as legendas de seus partidos em função das mudanças na legislação. É possível que o aumento de 13% no número de deputadas eleitas possa ser explicado por seu maior acesso às candidaturas, propiciado pelas mudanças na legislação.

Dadas tais constatações, questiona-se se a referida PEC nº 98/2015, ao assegurar a cada gênero o percentual mínimo de cadeiras na Câmara dos Deputados (10% na 1a legislatura, 12% na 2a legislatura e 16% na 3a legislatura), é instrumento hábil a garantir a participação feminina substancial na arena política e se ele está em harmonia com os demais princípios democráticos e constitucionais estruturantes do nosso sistema.

Países como Noruega, Dinamarca, Finlândia, Irlanda, Bélgica, Itália, Alemanha e Suécia adotaram cotas para mulheres em agências governamentais, em direção de comitês, conselhos ou comissões públicas. Na América Latina, a Argentina estabeleceu que 30% dos nomes das listas dos partidos deveriam ser compostas por mulheres. Outros países, como Chile, Colômbia, Paraguai, Uruguai, adotaram algum tipo de legislação com vistas à maior inclusão feminina9.

Os defensores da PEC argumentam que esse tipo de ação afirmativa acentua o debate público a respeito das questões de gênero, incorporando novas perspectivas e diálogos democráticos, além de gerar uma quebra de paradigmas em uma sociedade arraigada de hábitos machistas. Segundo eles, a sociedade por si só não desenvolveria automaticamente mecanismos de maior inclusão e representatividade feminina, sem determinações cogentes por parte do Estado, como por meio do sistema de cotas, uma vez que todas as estruturas político-partidárias e sociais trabalham para consolidar a exclusão feminina dessa arena10.

Por outro lado, os críticos dessas medidas levantam a violação ao princípio democrático e da soberania do voto, uma vez que os candidatos do sexo masculino mais votados pelo sistema eleitoral seriam preteridos em favor de candidatas menos votadas, ou seja, o voto dado a uma mulher teria maior peso do que ao dado a um homem. O Senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), nesse sentido, expôs: “o que se pretende com essa emenda é dizer que a composição das assembleias não depende mais exclusivamente do povo, mas é pré-determinada pelo Congresso no exercício do poder constituinte derivado11. Aduzem de igual modo que o maior entrave à participação política das mulheres remanesce no âmbito dos incentivos do sistema, devendo-se, pois, investir, não na imposição dessa participação, mas na estruturação de mecanismos institucionais mais eficientes e efetivos para que as mulheres verdadeiramente desejem participar da política e que sejam vistas e valorizadas na sociedade enquanto tal12, sob pena de as cadeiras femininas serem preenchidas por representantes que não veiculam adequadamente os pleitos de suas representadas.

Voltando à teoria discursiva de Habermas, não parece este ter previsto a necessidade de políticas afirmativas (coercitivas) como melhor forma para alcançar o escopo da participação feminina na política. Até porque tais imposições obstruem o objetivo de se formar um debate entre cidadãos livres e iguais, fomentando, infelizmente, a clivagem entre cidadãos favorecidos e desfavorecidos e a representação de setores limitados da população feminina, por vezes capturada pelos grupos de maior influência política – tanto é que expressiva parte das Deputadas Federais com reais chances de serem eleitas possuem algum grau de parentesco com figuras que tradicionalmente dominam a arena política nacional.

O grande desafio é inserir mulheres “comuns” de diferentes recortes sociais que tragam consigo as demandas e argumentos autorreferentes para pluralizar o debate público. A alternativa ideal seria pela via do fomento à cidadania,       catalisada pela atuação dos movimentos feministas – e outros grupos sociais organizados – na denúncia da vulnerabilidade dos direitos das mulheres em seus diferentes papéis sociais, na valorização da figura feminina e na demonstração da indispensabilidade da participação política dessas na reversão desses quadros, incentivando que mais mulheres adentrem no espaço público.

Contudo, até que ponto esses movimentos podem lograr êxito a curto, médio e longo prazos, a despeito das estruturas políticas, econômicas e sociais vigentes, é a medida em que se retoma a discussão quanto à necessidade de ações afirmativas transitórias para permitir maior representatividade feminina. Mas note-se, que esse raciocínio seria extensível aos pobres, movimentos LGBTs, negros, entre outros grupos minoritários. O que justifica garantir acesso às cadeiras na Câmara dos Deputados às mulheres e não garantir aos demais? E qual o limite da imposição do mosaico dos grupos sociais que ocuparão essa posição na arena política sem que se invada o núcleo do princípio democrático?

________________

1HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entrevalidade e facticidade II. Tradução: Flávio BenoSiebeneichjer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

2Idem, p. 162.

3Nesse sentido, Habermas (1997) comenta: “na medida em que a proteção da gestação e da maternidade apenas agravara o risco do desemprego das mulheres, uma vez que normas de proteção do trabalho reforçaram a segregação do mercado de trabalho, situando-as nos grupos de salário mais baixo, pois um direito de divórcio mais liberal sobrecarregou as mulheres com as consequências da separação e, finalmente, na medida em que o esquecimento das interdependências entre as regulações do direito social, da família e do trabalho fez com que as desvantagens específicas ao sexo se acumulassem.”

4HABERMAS, 1997, p 166.

5 OKIN, Susan M. Gênero, o Público e o Privado. Estudos Feministas. V. 16, n. 2, agosto, 2008.

6Dados do TSE. Disponível em: <https://www.google.com/url?hl=pt-BR&q=http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-2014-eleitorado&source=gmail&ust=1466341096634000&usg=AFQjCNEFYlZWwLQk1xi8nQRrUONwML0Slg>.

7 Dados do TSE das eleições de 2014: <Disponível em: https://www.google.com/url?hl=pt-BR&q=http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-2014-eleitorado&source=gmail&ust=1466341096634000&usg=AFQjCNEFYlZWwLQk1xi8nQRrUONwML0Slg>.

8 Como se observou após a promulgação da Lei nº 12.034/2009, diversos partidos políticos preencheram parte das vagas mínimas à candidatura feminina com mulheres sem objetivos políticos autênticos, somente para cumprir requisitos formais da legislação e funcionar como instrumento simbólico.

9 MALHEIROS, Sonia. A Política de Cotas por Sexo: Um estudo das primeiras experiências no Legislativo Brasileiro. Brasília: CFEMEA, 2000, p. 21 e 22.

10 MIGUEL, Luís Felipe, BIROLI, Flávia. Gênero e representação política. In: Feminismo e Política. MIGUEL, Luís Felipe, BIROLI, Flávia. São Paulo: Boi Tempo, 2014. MALHEIROS, Sonia. A Política de Cotas por Sexo: Um estudo das primeiras experiências no Legislativo Brasileiro. Brasília: CFEMEA, 2000.

11 Fonte: <-no-legislativo” http://www.ebc.com.br/noticias/politica/2015/08/senado-aprova-em-primeiro-turno-cota-minima-para-mulheres-na-política>.

12A forma de financiamento eleitoral e distribuição de tempo de propaganda entre os candidatos de um mesmo partido são alguns dos grandes entraves para inserção da mulher na representação política.

“Dentre as medidas possíveis já propostas para expandir o acesso de mulheres à política formal, podemos citar: A criação de creches públicas que permitam às mulheres se envolver mais com o ativismo político, já que na divisão do trabalho doméstico coube a elas o cuidado com a prole; Maior esforço dos partidos políticos na fase de recrutamento dos candidatos, no sentido de incluir mais mulheres nas listas partidárias, ter mais mulheres entre os seus dirigentes, e de dar às suas candidatas melhores condições de concorrer (destinando-lhes percentuais do fundo partidário e do tempo de propaganda partidária gratuita); 
 organização de grupos de defesa dos interesses das mulheres, mediante recrutamento e treinamento de mais membros, formação de lideranças e formulação de estratégias políticas e lobbying; realização de cursos de formação política das mulheres nas instâncias partidárias, para promover sua capacidade de oratória, familiarizá-las com a dinâmica das disputas políticas e ‘esclarecê-las acerca das regras institucionais, como a do sistema eleitoral e partidário, bem como acerca do modo com que as elites defendem seus interesses’”. COSTA. Thiago Cortez. Representação política feminina: Modelos Hierárquicos para análise dos Resultados Eleitorais de 2006. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE, 2008.

 

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Sobre o Autor:

Débora Costa Ferreira

Bacharelado em Economia pela Universidade de Brasília (2014) e em Direito pelo UniCEUB (2014), Pós-Graduação em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (2015).

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2 Comentários Comentar

  • Eu particularmente sou contra reservar vagas no legislativo para mulheres.

    • Qualquer pessoa sensata é.

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