maio
23
2016

A coisa mais inesperada que acontece a um país

O que têm em comum apenas Brasil, Síria, Irã, Iraque, Sérvia, Iêmen, Egito, Bahrein, Arábia Saudita, Argélia, Hungria, Equador e Luxemburgo? São os únicos países do mundo que não possuem idade mínima para aposentadoria. O caso brasileiro é praticamente excepcional. Os países europeus ou ocidentais que não optaram pela idade mínima exigem tempo de contribuição muito maior, chegando a 45 anos inclusive para mulheres. Exigências menores existem somente nos referidos países do Oriente Médio e norte da África — alguns em guerra —, em que a previdência é quase uma ficção e está disponível para poucos trabalhadores. A exclusão de boa parte da população, junto com a expectativa de vida menor,explica as regras mais brandas. Com uma cobertura baixíssima, as despesas previdenciárias chegam a somar somente 1% do PIB na Arábia Saudita.

Nesta comparação, há uma exceção. A ausência de idade mínima, com exigência de tempo de contribuição menor que a brasileira, e em uma previdência que de fato existe, é realidade no Grão-Ducado de Luxemburgo. Com um território menor do que qualquer um dos mais de 5.500 municípios do Brasil, o Grão-Ducado é o segundo país mais rico do planeta per capita.  Ainda assim, as regras generosas só valem para um benefício básico, bem abaixo da renda do país.

É claro que regras previdenciárias internacionais não devem ser simplesmente importadas, sem que se observem as particularidades do Brasil. No entanto, a excepcionalidade do país nesta questão, destoando não só de países ricos, mas inclusive de países em desenvolvimento, sugere a insustentabilidade da ausência de idade mínima.

Rejeitada no Congresso nos anos 90, a idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição vinha sendo sugerida desde o início do ano pelo governo, quando a Presidente Dilma afirmava que a Previdência era “a questão mais importante para o país”. O discurso foi mantido pelo governo interino, e é provável que a idade mínima integre uma inevitável nova reforma da Previdência, ocorra ela agora ou nos próximos anos. Em verdade, a ausência dessa regra não é exceção somente na comparação internacional, mas até na história brasileira. Ela vigorou até 1962, quando foi suprimida no governo João Goulart, mas sem que tenhamos ficado ricos como o Grão-Ducado de Luxemburgo.

A idade mínima, cada vez maior em vários países, é a regra por conta do envelhecimento populacional, que não é exclusivo do Brasil (embora seja muito veloz por aqui). Ganhos expressivos na expectativa de sobrevida dos idosos, conjugados com quedas acentuadas na natalidade, ocorreram no mundo todo— seja em países desenvolvidos ou em países pobres.  Demógrafos consideram a fecundidade baixa “um aspecto estrutural das sociedades pós-modernas”. A exceção é a África subsaariana, cujos países não participam deste processo: ao fim do século, sete países de lá terão população maior do que a nossa (hoje, nenhum tem).

No restante do mundo, a demografia tem dado ensejo a ondas de reformas previdenciárias. As leis nacionais têm sido seguidamente repactuadas: a frequência de alterações em legislações na área previdenciária possivelmente não tem paralelo com outro campo. Dentre centenas de leis previdenciárias nacionais em vigor hoje, poucas são anteriores aos anos 90. Nos últimos anos, na esteira da crise internacional, dezenas de reformas foram feitas. Em 2011, no auge da crise da dívida europeia, foram promulgadas não menos do que 25 novas leis nacionais de previdência.

O aspecto estrutural do problema levou muitos países a buscar soluções de Estado. Na Espanha, a reforma foi chamada de “pacto”: um acordo multipartidário foi feito, buscando inclusive evitar a exploração político-eleitoral da matéria, sendo o Pacto de Toledo renovado sucessivas vezes. Na Suécia, os líderes da oposição foram chamados para integrar a comissão responsável por uma ampla e ousada reforma. No Japão, há obrigação legal da previdência ser reformada a cada cinco anos.

Outros países, também mais maduros do ponto de vista demográfico, não escaparam de fazer sucessivas reformas em governos de matizes ideológicos diferentes. A oposição podia assumir, mas a agenda continuava. Na França, Itália e Reino Unido, em graus variados, reformas tiveram de ser feitas seguidamente em um pequeno intervalo de tempo, por governos sucessivos de direita e de esquerda. Na ditadura chinesa, a demografia levou em 2015 ao fim da política do filho único.

No Brasil, a idade mínima tem esbarrado em um argumento principal: o de que prejudicaria os mais pobres, porque eles começam a trabalhar mais cedo. Eles satisfariam primeiro os critérios de 35/30 anos e teriam de esperar anos para receber a mesma aposentadoria de quem começou mais tarde. O argumento merece maior reflexão porque, na prática, os mais pobres já tem idade mínima para se aposentar.

Em verdade, a idade mínima não existe no Regime Geral apenas para a aposentadoria por tempo de contribuição. A maioria dos aposentados se aposenta por idade, aos 65 anos (homens) ou 60 (mulheres). São os trabalhadores que não obtiveram inserção contínua no mercado de trabalho formal, e, portanto, os 35/30 anos de contribuição. São os menos escolarizados, das ocupações menos produtivas e das regiões mais pobres do país. Ficaram mais suscetíveis ao desemprego e à informalidade, e suas carteiras não foram assinadas por três décadas continuamente. Em geral, recebem um salário mínimo como aposentadoria.

Há ainda aqueles que não conseguiram sequer o tempo de contributivo para esta aposentadoria mais básica, restando para eles chamar de aposentadoria o que é na verdade um benefício assistencial (o BPC-LOAS, com idade mínima de 65 anos até para mulheres).

Assim, uma “idade mínima” já existe atualmente principalmente nas regiões mais pobres do país. A aposentadoria por tempo de contribuição (sem idade mínima) predomina no Centro-Sul do nosso Grão-Ducado: ela é 23% dos benefícios pagos no Rio Grande do Sul, mas apenas 7% no Rio Grande do Norte. No conjunto da população, a aposentadoria por tempo de contribuição paga em média R$ 1.600 per capita em São Paulo, mas somente R$ 150 no Maranhão (e menos ainda em quatro estados do Norte).

De fato, é correto e justo que um benefício que exige mais e maiores contribuições pague mais (como a aposentadoria por tempo de contribuição em relação à aposentadoria por idade). Entretanto,é discutível a apropriação, no debate, do perfil do beneficiário mais pobre pelos que representam beneficiários mais bem posicionados na distribuição de renda. Não se pode rejeitar o advento da idade mínima por ser ela prejudicial aos mais pobres se para os mais pobres ela já existe.

A mudança demográfica é um grande desafio. A população em idade ativa está se reduzindo significativamente em relação à população dependente, e chegará a 1 idoso para cada 3 habitantes. Este será um processo contínuo: não amanheceremos um determinado dia no futuro com um grave problema na Previdência para resolver, porque ele vai chegar paulatinamente (se já não chegou).

“A velhice é a mais inesperada de todas as coisas que acontecem a um homem”, disse Trótski. O envelhecimento parece chegar também para todos os países. Não podemos negar que chegará aqui, mas não de maneira inesperada. A idade mínima deverá ser parte da adaptação. Até mesmo no Grão-Ducado do Brasil.

 

Versão resumida deste texto foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, edição de 19/05/2016.

 

Download:

  • Veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).

Sobre o Autor:

Pedro Fernando Nery

Doutorando e Mestre em Economia (UnB). Consultor Legislativo do Senado da área de Economia do Trabalho, Renda e Previdência.

11 Comentários Comentar

  • Esperando chegar um lunático citando a tese sem noção de que não existe déficit porque o governo desvia impostos de aplicação obrigatória no INSS para outras atividades hahaha

    • Rodrigo, obrigado pelo comentário. Realmente essa questão do déficit precisa ser mesmo esclarecida. O argumento de que a Previdência é superavitária é muito popular.

  • A idade mínima é necessidade inquestionável.
    Mas, sempre leio reportagens que os idosos não são absorvidos no mercado de trabalho.
    Não sei se é fato ou não. Creio que temos relatos, mas não dados oficiais, porque as taxas de desemprego consideram quem está procurando emprego e pessoas de idade acima de 60/65 já estão aposentadas no Brasil e não entram, portanto, nessa estatística.
    Por esse motivo, me questiono se o aumento da idade mínima não criaria um limbo com idosos desempregados e que não podem se aposentar, caso a regra de transição não considere que a população brasileira ainda vai levar um certo tempo para mudar a demografia e termos mais idosos do que jovens/adultos no mercado.
    Além disso, o número de idosos em atividades de indústria, manuais em que habilidades manuais decaem não pode impactar negativamente na produtividade?

    • Podemos reduzir esse dano criando incentivos (leia-se redução de tributos) para que as empresas contratem pessoas mais idosas em determinadas atividades. Por exemplo, em atividades administrativas e de atendimento presencial.

    • Thaísa,

      Essa questão é realmente muito importante.

      1. Numa publicação maior sobre a idade mínima (aqui: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518439/Textos_para_discussao_190.pdf?sequence=1) eu introduzo um pouco dessa discussão. Copio e colo um trecho:

      A IDADE MÍNIMA AMPLIARÁ O CONTINGENTE DE TRABALHADORES MAIS
      VELHOS NO MERCADO DE TRABALHO?
      Sim, ainda que, dependendo da idade mínima e de regras de transição, esses
      trabalhadores inicialmente afetados não sejam considerados idosos ainda. Com a idade
      mínima, espera-se que o contingente de trabalhadores mais velhos aumente por conta da
      permanência daqueles que efetivamente paravam de trabalhar para receber a
      aposentadoria (o que não é óbvio, já que não há proibição de receber a aposentadoria e
      continuar trabalhando).
      Camarano (2014)34 destaca que a permanência do trabalhador por mais tempo no
      mercado de trabalho exigirá políticas públicas para “inclusão digital, capacitação
      continuada, saúde ocupacional, adaptações no local de trabalho como cargos e horários
      flexíveis, redução de preconceitos com relação ao trabalho do idoso, melhoria no
      transporte público”.
      A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) usa o
      slogan “Viva mais, trabalhe mais” (Live Longer, Work Longer) para suas diretrizes
      voltadas para estes trabalhadores. Já a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
      destaca, face à transição demográfica, a necessidade de combater a discriminação e
      oferecer oportunidades de aprendizado, de modo a garantir a empregabilidade e o
      empreendedorismo destes trabalhadores.

      2. Além disso, com o agravamento da transição demográfica, esse contingente passará a ser “compulsoriamente” melhor absorvido, pela escassez de trabalhadores mais jovens.

      3. Outra questão importante que você colocou é o desemprego em quem está em vias de se aposentar. Reproduzo outro trecho do texto: TODO TRABALHADOR SÓ PODERÁ SE APOSENTAR COM A IDADE MÍNIMA?
      Provavelmente haverá exceções, como ocorre nos países onde existe idade
      mínima. Além da aposentadoria por invalidez e da aposentadoria especial (ATC para
      quem trabalhou sob condições prejudiciais à saúde ou à integridade física), é possível que
      se adotem mecanismos de “aposentadoria antecipada” ou “aposentadoria parcial”.
      Estudo do Ipea citado anteriormente explica esta questão (Caetano et al., 2016):
      Entretanto, essas alternativas se destinam, em parte importante dos
      casos, a atender os segurados que possuem alguma restrição para
      aguardar a idade mínima de aposentadoria e/ou que enfrentam alguma
      dificuldade para acumular os períodos contributivos mínimos exigidos,
      como desempregados de longa duração, portador de enfermidade que
      não leve à aposentadoria por invalidez, ou pessoa com parente portador
      de necessidade especial, por exemplo. Quando a antecipação é
      voluntária, há pesados custos para o segurado, na forma da redução do
      valor do seu benefício mensal. Este último mecanismo seria similar ao que o ocorre hoje com o cálculo na ATC
      pelo fator previdenciário (benefício menor para quem se aposenta mais cedo). No caso do
      desempregado, alguns países exigem para aposentadoria antecipada que o desligamento
      tenha sido causado por falência do empregador ou originado em demissão coletiva.

      4. A questão dos trabalhadores manuais talvez não seja tão preocupante porque este pessoal já se aposenta mais tarde, pela aposentadoria por idade (65 anos homens, 60 mulheres) ou pedindo o BPC (65H, 65M), que é um benefício assistencial.

      Abraço,

      Pedro

      • Pedro, só vi a resposta hoje, ao vir aqui para reler seu texto. Muito obrigada por compartilhar esses dados. Excelente!

  • E que se diz, com relação à APOSENTADORIA TOTAL dos funcionários públicos ???
    É uma vergonha que o Brasileiro lute para ganhar um cargo público, pensando só, na garantia de aposentadoria total !!!
    O furo está ali !!!

    E nós da empresa privada, com aposentadorias minguas.
    Porque ainda existe dita descriminação ???
    Sendo que é a empresa privada e seus funcionários, que pagam e mantem a totalidade do estado Brasileiro.
    Não é o estado que gera riqueza – O estado é só gastador !!!
    Solucionemos dito descalabro / injustiça, e 50% do problema estará solucionado.

    Troquemos o dizer de nossa bandeira, por:
    ORDEM – PROGRESSO – e HONESTIDADE !!!

    Saudações – Wolfram Quintero

    • Não é bem assim. Essa história de aposentadoria integral já se tornou lenda.

      As regras de aposentadoria integral mudaram desde 2003. Quem ingressou até dezembro de 2003 recebe 100% do salário. Já a partir de 2004, não. Não existe mais a figura da integralidade desde esse ano. Os novos servidores contribuem sobre o teto previdenciário, da mesma forma que a iniciativa privada. Se quiserem mais, deverão pagar “por fora” uma aposentadoria complementar. Existe uma regra de transição aí, que abrange uma parcela pequena de servidores, mas a realidade é que o futuro da aposentadoria do servidor será igual à do regime geral.

      Eu sou servidor federal e tenho uma Previdência complementar que pago há anos, porque sei que não tenho mais integralidade. O servidor que não se atinar a isso sofrerá graves prejuízos
      quando se aposentar.

    • Prezado,

      Informe-se melhor. A aposentadoria integral do servidor já foi extinta. O que se tem agora são aposentadorias integrais residuais, que são direito adquirido desde que respeitadas as regras de transição. Dentro de alguns anos ninguém mais poderá se aposentar nesta modalidade.

    • Wolfram,

      Compartilho da sua preocupação. Entretanto, a trajetória das aposentadorias de servidores públicos é considerada “menos” preocupante porque 1) obviamente atinge um contingente menor da população (o que é injusto, mas faz o estrago ser menor); 2) possui idade mínima desde a reforma da previdência de 1998; 3) possui contribuição obrigatória de 11% sobre os valores acima do teto do INSS mesmo para quem já se aposentou; e 4) está limitada ao teto do INSS desde 2013 com a criação da Funpresp.

      Atualmente, temos um déficit de uns R $70 bi na Previdência dos servidores, e de uns R$ 150 na do INSS, sendo que este último cresce mais aceleradamente.

      A meu ver, ainda há um contingente muito grande de servidores públicos, em todas as esferas, que se beneficia de regras de transição relativamente brandas, isto é, não tem benefícios limitados ao teto do INSS, gozam da paridade e da integralidade e a eles não se aplica a idade mínima completamente.

      É possível que, para este grupo privilegiado, uma nova reforma aumente a alíquota de contribuição e/ou extinga a paridade com servidores da ativa (no caso de quem já é aposentado). Para os demais, é possível que a idade mínima aumente.

      Finalmente, vislumbro que eventualmente também terá de ser reformada a previdência dos militares, responsável por boa parte do “rombo” na previdência dos servidores.

  • Em relação à aposentadoria do servidor público, faço as seguintes considerações.
    1) Como já foi dito pelo Pedro, a maior parcela do “déficit” decorre do sistema dos militares, não dos servidores civis.
    2) Também sou servidor público e faço um alerta: não há privilégio para o servidor público na definição dos proventos de aposentadoria. O que muitos não observam é que, assim como o contribuinte do regime de previdência geral, o servidor recebe o benefício com base no salário de contribuição. Isto é, para o regime geral o limite de contribuição é de 10 salários e o benefício de aposentadoria próximo desse nível. Para o servidor público, a mesma coisa; a contribuição é maior do que a do regime geral (11%) e incide sobre toda a remuneração (ou salário de contribuição). Por isso, o benefício recebido é condizente e proporcional com seu salário de contribuição.

Inscreva-se

Publicações por data