jun
24
2015

Gastos pró-cíclicos e crise fiscal

Já é bastante conhecido o fato de que o orçamento das três esferas de governo é rígido e não comporta cortes substanciais. Isso decorre de: despesas mínimas obrigatórias em saúde e educação; regras previdenciárias que geram obrigações  líquidas, certas e crescentes; impossibilidade política de cortes substanciais em programas sociais; estabilidade dos servidores no emprego somada a outras vantagens remuneratórias garantidas em lei. Em 2014, essas despesas consumiram 89% da receita primária disponível do Governo Federal, como mostra a tabela. Nos governos estaduais e municipais o quadro é similar.

Principais itens de despesa primária em 2014 (% da Receita Líquida do Gov. Federal)

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Outro problema fiscal menos debatido é que as regras que determinam esses gastos são pró-cíclicas. Ou seja, induzem o crescimento da despesa pública nos períodos em que a economia e a arrecadação estão crescendo. Isso significa que em períodos de bom desempenho econômico, como 2004-2010, o crescimento do PIB e da receita obrigam, facilitam ou estimulam a expansão da despesa. Justamente no momento em que seria mais fácil poupar (expandindo o superávit), guardando reservas para enfrentar momentos futuros de menor crescimento, há um estímulo a gastar mais, impedindo-se tal poupança. Quando o ciclo econômico se reverte, as despesas estão altas e crescendo rapidamente.

O ajuste fiscal se impõe quando se esgota o ciclo de expansão. Nesse momento, ocorre uma desagradável coincidência entre receitas em queda e despesas no pico. O ajuste se torna mais duro, pois tem que ser feito sem a ajuda do crescimento do PIB, com as restrições aos gastos em programas sociais coincidindo com a alta do desemprego e queda da renda, como temos visto em 2015. A ação do governo, em vez de atenuar os ciclos econômicos, acaba por intensificá-los, gerando tensão política e social.

Vejamos quais são essas regras pró-cíclicas. Na educação, a União é obrigada a aplicar 18% da sua receita de impostos, com o percentual subindo para 25% nos estados e municípios. Isso é calculado em bases anuais: arrecadação subiu, a despesa tem que subir. Na saúde, a despesa dos estados e municípios deve ser de, no mínimo, 12% e 15% da receita de impostos, respectivamente. Mais uma vez: subiu receita, subiu gasto obrigatório. Pela Emenda Constitucional 86/15, a despesa mínima da União em saúde é de 15% da receita corrente líquida (RCL). A RCL é calculada em termos anuais  e, portanto, altamente influenciada pelo ciclo econômico.

Os limites máximos de despesa de pessoal e de endividamento, para os três níveis de governo, são fixados, na LRF e em resoluções do Senado, como proporções da RCL. Em momentos de boom econômico abre-se mais espaço para endividamento e os sindicatos ganham mais argumentos para pressionar por reajustes remuneratórios.

As transferências da União a estados e municípios, e dos estados aos municípios também são pró-cíclicas, pois são calculadas, mensalmente, como um percentual da arrecadação. Com a economia acelerada, transferências crescentes estimulam mais gastos.

O salário mínimo, que indexa os gastos da previdência e diversos programas sociais, é corrigido pelo PIB de dois anos antes. Em momentos de reversão do ciclo econômico, quando a economia começa a cair, o salário mínimo tem correções elevadas, herdadas do período de bonança, o que agrava a crise fiscal, em especial as contas da previdência e a folha de pagamento dos municípios.

A qualidade das políticas também é prejudicada por essas regras pró-cíclicas. Na fase ascendente do ciclo, constroem-se hospitais e universidades e contratam-se mais profissionais. Quando o ciclo se reverte, as verbas obrigatórias para saúde e educação caem junto com a arrecadação e não se consegue dar conta das despesas correntes necessárias para gerir as novas instalações criadas nos anos anteriores. O limite máximo de despesa de pessoal é atingido e não se consegue remunerar adequadamente o quadro (recentemente expandido) de profissionais.

Observe-se que nem a inflação pode contribuir significativamente para reduzir o caráter pró-cíclico dos gastos, pois tanto o salário mínimo quanto os gastos com saúde e educação variam direta ou indiretamente (via aumento da RCL) com o aumento de preços. Como esses gastos são reajustados pela inflação passada, somente uma aceleração inflacionária poderia aliviar as contas públicas (e, obviamente, criar milhões de outros problemas).

Uma proposta simples para começar a reverter esse problema seria a revisão do período de tempo usado para calcular a RCL. Em vez de calculada com base nos doze meses anteriores ao de referência, esta passaria a levar em conta um período mais longo de, por exemplo, 60 meses (com correção pela inflação). Isso englobaria um ciclo econômico completo e arrefeceria a oscilação nas regras e limites referenciados pela RCL.

O Gráfico mostra a receita primária do Governo Central, corrigida pelo IPCA, calculada como uma média de 12, 36 e 60 meses. Fica evidente que a ampliação do período de cálculo torna a série mais suave, evitando saltos nos valores dos limites máximos e mínimos de despesa.

Receita Primária do Governo Central (R$ bilhões de março de 2015)

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Posteriormente se poderia dar passo adicional, discutindo-se mudança similar no cálculo do montante de impostos vinculado aos gastos, nas regras de partilha constitucional e no salário mínimo. Não adianta propor sofisticados modelos de cálculo de déficit estrutural e fixação de meta fiscal levando-se em conta a fase do ciclo econômico, se não for possível, por motivos legais, obter maior poupança na fase positiva do ciclo. É preciso, primeiro, mudar as regras de determinação da despesa. Isso dará mais estabilidade fiscal e mais previsibilidade de verbas para os gestores públicos, com impactos positivos não apenas no equilíbrio das contas, como na qualidade do gasto.

(Artigo publicado no Valor Econômico, em 19/6/2015)

 

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Sobre o Autor:

Marcos Mendes

Doutor em economia. Consultor Legislativo do Senado. Foi Chefe da Assessoria Especial do Ministro da Fazenda (2016-18). Autor de “Por que o Brasil cresce pouco?”.

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1 Comentário Comentar

  • Muito bom artigo. Interessante a proposta de cálculo da RCL com base nos dados de 60 meses anteriores…o amortecimento é uma técnica bastante recorrente em séries temporais.
    Contudo, acredito que a análise seria mais fidedigna se incluísse o resultado nominal das contas do Governo Federal.
    Isso, principalmente em face de medidas, igualmente pró-cíclicas, de aumento e manutenção da taxa SELIC em níveis astronômicos. O efeito nas contas públicas é bastante alto e não é contemplado na análise.
    Abraços
    Gustavo

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