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23
2015

Qual o critério para ser miserável no Brasil? (e como o Judiciário agrava a miséria)

A Constituição Federal de 1988 assegurou ao idoso e ao portador de deficiência que comprovarem não possuir meios de prover a própria subsistência, ou de tê-la provida por sua família, o direito à percepção de um salário mínimo mensal, a título de benefício assistencial (art. 203, V).

Esse é o Benefício do Prestação Continuada, regulamentado pela Lei nº 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS), com a atual redação dada pela Lei nº 12.435/11. Nessa norma, estabeleceu-se que se considera “incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo” (art. 20, § 3º).

Desta forma, segundo a LOAS, há dois requisitos que devem ser atendidos em situação de cumulativa ocorrência para que o cidadão faça jus ao benefício assistencial: (i) ser idoso ou portador de deficiência; e (ii) encontrar-se em situação de miserabilidade econômica, ocorrente quando a renda familiar per capita for inferior a ¼ do salário mínimo nacional.

Já se discutiu neste site o custo do Benefício de Prestação Continuada no texto “Qual o programa assistencial mais caro do Brasil? (Não é o Bolsa Família)”, no qual se mostrou que o BPC é o programa social que mais onera os cofres públicos, superando inclusive o dispêndio com o Bolsa Família. Estima-se que em 2015 o gasto será de quase R$ 42 bilhões, havendo ainda questionamento quanto à sua eficiência, pois, em relação à pobreza, o BPC não é considerado o instrumento mais efetivo para reduzi-la.

Inicialmente, cumpre salientar que este padrão objetivo de aferição de miserabilidade foi estabelecido por Lei e, portanto, foi alvo de aprofundada reflexão no Poder Executivo e no Legislativo, onde se entendeu que a concessão do benefício àqueles que comprovassem renda familiar inferior a ¼ do salário mínimo não oneraria demasiadamente o erário, e que a instituição dessa política pública, tal como preconizado pelo constituinte, seria salutar, nos moldes desenhados pela Lei nº 8.742/93.

Seguindo os ditames legais, a administração pública passou a negar a concessão do benefício assistencial ao idoso ou deficiente que integrava família com renda per capita superior ao limite máximo legalmente estabelecido. Muitas dessas pessoas recorreram ao Poder Judiciário, pleiteando o estabelecimento do benefício, a despeito do não preenchimento de um dos requisitos.

A orientação predominante nos Tribunais Regionais Federais firmou-se pela possibilidade da concessão do benefício assistencial, ainda que a renda familiar per capita superasse ¼ do salário mínimo, desde que houvesse outros elementos que indiciassem a situação de miserabilidade econômica (e.g. necessidade de comprar remédios caros não fornecidos pelo SUS, custear tratamento médico especializado, contratar enfermeira).

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, consolidou-se que “A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo1.

Em 1998, o STF, divergindo do entendimento jurisprudencial prevalecente, reconheceu a constitucionalidade do critério legal matemático estabelecido na LOAS, ao julgar improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.232/DF. Naquela oportunidade, consignou o Min. Nelson Jobin que “compete à lei dispor sobre a forma de comprovação. Se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da própria lei. O gozo do benefício depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar dessa forma [1/4 do salário mínimo per capita]. Portanto, não há interpretação conforme possível, porque, mesmo que se interprete assim, não se trata de autonomia de direito algum, pois depende da existência da lei, da definição2.

Assim, naquela ocasião, o Supremo Tribunal Federal foi deferente à decisão dos Poderes Legislativo e Executivo.

Todavia, em 2013, a própria Corte Suprema reviu seu posicionamento quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 567.985/MT. Os ministros passaram a admitir que outros critérios fossem utilizados pelos magistrados para aferir a miserabilidade econômica dos postulantes ao benefício assistencial.

O fundamento da reversão jurisprudencial (overruling) foi, em síntese: (i) que o parâmetro objetivo legalmente estabelecido poderia acarretar a exclusão do direito assistencial a pessoas miseráveis, que realmente precisariam do auxílio estatal; e (ii) que, “Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei nº 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei nº 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei nº 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei nº 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas”.

Ao desconsiderar a escolha política (1/4 do salário mínimo), o STF acabou exercendo, obliquamente, controle de decisões técnicas de órgãos políticos (Presidência da República e Casas do Congresso Nacional).

Desde essa decisão paradigmática, os Tribunais, de forma amplamente majoritária, se não unânime, têm aceitado outras provas de miserabilidade, reconhecendo o direito à percepção de um salário mínimo legal mesmo para aqueles que auferem renda familiar per capita superior a ¼ do salário mínimo3.

Já se discutiu também neste site qual é o ponto ótimo de intervenção do Poder Judiciário nas políticas públicas, considerando o bem-estar da sociedade (Qual a quantidade ótima de intervenção judicial nas políticas públicas?). No presente caso, relativo à definição do conceito de miserabilidade, não há negar que a intervenção do Judiciário colaborou para colocar o BPC como o programa assistencial mais caro do País. Alargam-se os benefícios vinculados aos direitos sociais, mas não se prevê uma harmonização entre esses direitos e os recursos disponíveis para a concretização das políticas públicas (regra da contrapartida), tampouco com a necessidade de aplicação dos escassos recursos em outras finalidades que poderiam gerar maior bem-estar à sociedade.

Para agravar a situação, consagrou-se situação de insegurança jurídica que apenas sobrecarrega o próprio Judiciário. Isso porque a administração deve sempre pautar sua atuação em lei. Assim sendo, está impedida de apreciar se, no caso, apesar da renda familiar superar ¼ do salário mínimo, o postulante está em situação de miserabilidade (uma vez que a lei não lhe confere tal discricionariedade e, ainda que assim não fosse, a autoridade administrativa possui limitados instrumentos para apurar a condição social e econômica do requerente). Logo, só resta ao pretenso beneficiário recorrer ao Judiciário e, em realidade, por vezes nem mesmo ele sabe se faz jus ao benefício, já que a aferição da miserabilidade passou a ser bastante flexível e subjetiva.

Em outras palavras, o STF permitiu que mais pessoas sejam enquadradas como miseráveis sem realizar prévio estudo técnico quanto ao impacto orçamentário de sua decisão. Indo além, desconsiderou o critério objetivo traçado pelos Poderes Executivo e Legislativo. Tal proceder, que poderia ser qualificado por alguns como “ativista”, impõe um enorme custo social que suga considerável alocação orçamentária para atender às demandas judiciais, restando menos recursos para o desenvolvimento de políticas públicas que poderiam atender à sociedade de forma generalizada e criando mais obstáculos para o desenvolvimento econômico.

___________

1REsp (Recurso Especial) nº 1.112.557/MG, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, STJ – 3ª Seção, DJe 20/11/2009.

2ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 1.232-1/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, STF – Pleno, julgado em 27/08/1998.

3Nesse sentido, ver TRF-1, AC 180146120134019199, DJe 16/10/2013; TRF-2, AC/RE 201402010065423, DJe 09/10/2014; TRF-3, AC 00337173720124039999, DJe 13/09/2013; TRF-4 AG 200104010887366; e TRF-5, REO 00034470620104058201.

 

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Sobre o Autor:

Fernando B. Meneguin e Tomás T. S. Bugarin

Fernando B. Meneguin é Mestre e Doutor em Economia. Bacharel em Direito. Consultor-Geral Adjunto, Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal. Pesquisador do Economics and Politics Research Group – EPRG, CNPq/UnB. Tomás T. S. Bugarin é Pós-graduando e Bacharel em Direito. Advogado. Pesquisador do Economics and Politics Research Group – EPRG, CNPq/UnB.

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7 Comentários Comentar

  • O critério de bem-estar geral aplicado no texto é o utilitarista?

  • Muito bom! Vocês tinham que ensinar isso nos cursos de formação de juízes!!!

    • Legal, Anderson. Felizmente, a disciplina Análise Econômica do Direito já vem sendo lecionada em alguns cursos da magistratura. Com o tempo, essa matéria será mais difundida, como acontece em outros países.

  • Isso mesmo, Tiago. A função de bem-estar social busca agregar em um único critério o efeito sobre a sociedade de uma política pública ou de uma redistribuição e recursos. Dentre as diferentes formas que uma função de bem-estar social pode assumir encontra-se a de Bentham, jurista inglês do século XVIII, que argumentava que o benefício para cada cidadão deveria entrar com o mesmo peso na análise do benefício social de uma política pública. Essa formulação, portanto, simplesmente soma as utilidades individuais de cada membro da sociedade para formar a função de bem-estar social.

  • Excelente texto. Concordo plenamente com os autores.

    Acredito que políticas de transferência de renda, quando bem aplicadas, podem sim aumentar o bem estar social. Mesmo adotando como premissa o utilitarismo de Bentham, se entendermos que a utilidade marginal da riqueza é decrescente para cada indivíduo/família e que a pobreza extrema gera externalidades negativas, é possível que a transferência de renda possa, com efeito, aumentar o bem estar social. De qualquer forma, é inegável que a adoção de tais políticas, salvo em situações muito específicas, causa um ônus do ponto de vista de alocação de recursos.

    Infelizmente, o BPC/LOAS não é um exemplo de política de transferência de renda bem aplicada. Além dos problemas causados pelo ativismo judicial destacados no texto, o BPC/LOAS possui graves problemas administrativos, gerados pelo próprio conjunto normativo instituidor da prestação. Trabalhei alguns anos no setor de auditoria de benefícios do INSS. A autarquia não dispõe de instrumentos para auferir a real renda familiar dos requerentes do benefício. Isso ocorre porque o grupo familiar a ser considerado, assim como a renda obtida por atividades não formalizadas, são declaratórios. Dessa forma, é bastante comum que pessoas obtenham o benefício através de declarações falsas de renda e grupo familiar. Não tenho dúvidas que, em São Paulo, a maioria dos beneficiários do BPC/LOAS não possuem, de fato, direito ao benefício.

    O ativismo judicial só agrava o problema. As decisões proferidas pelos magistrados em controle de constitucionalidade frequentemente tratam de questões de natureza eminentemente política. Nestes casos, em que princípios constitucionais são invocados para desqualificar regras legais, é muito perigoso que a decisão judicial seja proferida sem considerar elementos extra jurídicos, ou seja, sem avaliar as consequências econômicas e sociais envolvidas.

    Nesse contexto, seria bastante desejável que os magistrados tivessem um conhecimento, ainda que superficial, de Economia.

  • Hélio, muito obrigado pelo retorno! Excelente comentário o seu!

  • Na verdade o BPC é o segundo programa social mais eficiente em diminuir as desigualdades sociais e a pobreza.

    Vejam o estudo abaixo sobre o papel dos impostos e transferências em diminuir desigualdades e pobreza no Brasil:

    http://www.commitmentoequity.org/publications_files/Brazil/CEQWPNo7%20EffectHighTaxOnIncomeDistBrazil%20Jan%202013.pdf

    O BPC apesar de longe de ser perfeito ainda é um ótimo programa em comparação com o restante dos gastos públicos brasileiros. Apenas o PBF (Programa Bolsa Família) é mais efetivo que o BPC em diminuir desigualdades e a pobreza.

    É bom lembrar que o BPC foi desenhado para alcançar uma população menor do que o Bolsa Família. O alvo do BPC são idosos e deficientes miseráveis, um grupo pequeno da população, e que é parte daquilo que se considera como pobres merecedores, por isso não há a mesma polêmica em relação ao programa que há em relação ao Bolsa Família. Quantas pessoas com mais de 65 anos e/ou deficientes de famílias com renda per capita menor que um quarto do salário mínimo existem no Brasil? Será que há 1% da população que se encaixa nessa categoria?

    Embora com bem menos recipientes o benefício do BPC é muito maior, e no final o programa é efetivo como um todo, mas é particularmente efetivo em diminuir a miséria do grupo focado. Qual é a porcentagem de miséráveis (menos que um quarto do salário mínimo) entre idosos e deficiente? Quantos brasileiros com direito ao benefício, mas que não o recebem ainda existem? Para saber se a flexibilidade sobre a renda das pessoas com direito a receber o benefício é algo que prejudica os mais miseráveis seria preciso saber quantos miseráveis idosos e deficientes sobre a definição inicial do programa ainda existem e não são beneficiados. Dado que o programa consome apenas 0,60% do PIB o benefício ainda está longe de ser um grande fardo, e as pessoas que possuem o indiscutível direito ao benefício e não o recebem, são prejudicadas não porque o programa se tornou financeiramente insustentável, mas porque por algum motivo elas ainda não se tornaram cientes ou não obtiveram o direito. Se considerarmos que quase todos com o direito ao benefício o recebem, o que não é um absurdo considerando que o número de pessoas com famílias de renda mensal menor que um quarto do salário mínimo estão desaparecendo, principalmente a miséria entre idosos, então o recebimento do benefício por mais pobres não é algo ruim.

    É importante entender que programas como o BPC e o Bolsa Família possuem grande quantidade de beneficiados que embora não se encaixem na restrita renda estabelecida legalmente são ainda muito pobres e ganham apenas pouco mais. É verdade para o Bolsa Família cuja dispersão do benefício é alta, mas que quase todos os beneficiados são muito pobres, e é verdade para o BPC também. Imaginemos que 50% de todos os beneficiados pelo BPC são pessoas idosas ou deficientes com família com renda inferior a um quarto do salário mínimo e os outros 50% são de pessoas com renda familiar maior. Mas quanto maior? Se dos outros 50% a maioria são pessoas com renda familiar entre um quarto e um terço de um salário mínimo o programa ainda está sendo focado nos mais pobres. O limite informal do programa é de meio salário mínimo per capita. Se pararmos para pensar uma pessoa idosa ou deficiente que precise comprar medicamentos regularmente e cuja renda familiar é de metade de um salário mínimo não está exatamente vivendo a vida em luxo. O recebimento do benefício por essas pessoas não é um absurdo desde que os mais pobres estejam sendo devidamente beneficiados também. Mas eu tendo a pensar que a maior parte dos beneficiados do BPC estão entre o limite legal e um terço de um salário mínimo per capita.

    Eu penso que uma boa ideia para reformar o programa seria estabelecer um salário mínimo social menor do que o salário mínimo de mercado e criar regras claras e que não estejam passíveis de litígio sobre quem possui e não possui o benefício ao mesmo tempo em que se amplie o número de pessoas com direito ao benefício, já que provavelmente idosos e deficientes com renda per capita familiar de um quarto de salário mínimo é um grupo que já foi alcançado, assim como aqueles vivendo com apenas um pouco mais do que isso.

    Sobre a atuação do judiciário em si. Eu penso que essa é uma conversa fascinante e complexa. No Brasil o judiciário possui um poder enorme para interferir em políticas públicas, o STF quase que legisla e aplica o que ele quer. Em parte esse poder é dado ao judiciário pela Constituição de 88 que por ser tão abrangente e estabelecer que todo cidadão brasileiro tem direito a tudo, uma constituição que faz o perfil dos países escandinavos, cria uma situação bizarra porque ela estabele direitos sociais muito amplos em um país que simplesmente ainda não possui os recursos para cumprí-los em totalidade. É engraçado como no Brasil as pessoas sempre estão recorrendo ao judiciário para qualquer coisa, para receberem qualquer direito que elas sentem no direito de receberem. É positivo que a Constituição e o judiciário pressionem os governos a realizarem o papel deles, mas é negativo devido a forçada alocação de recursos sem devido análise. Nisso eu concordo com o texto.

    Sobre qual é a ótima intervenção do judiciário. No caso do BPC não há grandes prejuízos, dado que o programa permanece sendo eficiente em comparação com os outros gastos públicos brasileiros em diminuir desigualdade e pobreza. No caso dado em outro texto da escola cheia e do aluno que é obrigado a ser aceito eu não vejo que houve prejuízo também, dado que mais um aluno em uma sala de quarenta alunos, por exemplo, não vai realmente fazer diferença para o professor ou diretor, enquanto que para aquele aluno a entrada na escola pode fazer uma enorme diferença. Ás vezes o judiciário também obriga prefeituras a fazerem coisas básicas como recolher o lixo da cidade, nestes casos eu também penso que a intervenção do judiciário foi positiva porque não há justificativa para que o governo simplesmente abandone tal função essencial e tão importante que deveria ser uma das primeiras coisas a serem feitas.

    Mas quando o judiciário obriga o SUS a fornecer medicamentos caros, por vezes a pessoas não são pobres, aí há um prejuízo.

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