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2
2015

Quem deve ficar com as receitas do ISS incidente sobre cartões magnéticos?

Introdução

O Imposto Sobre Serviços (ISS) é de competência municipal, sendo arrecadado pela cidade onde está registrada a empresa prestadora do serviço. Ocorre que novas tecnologias têm ampliado o alcance dos serviços prestados por organizações empresariais, o que tem gerado discussões em torno da competência tributária para arrecadação do ISS sobre vários serviços elencados na “Lei do ISS” (Lei Complementar nº 116, de 2003).

Empresas registradas em um determinado município acabam prestando serviços em várias outras cidades. Assim, por exemplo, uma empresa de locação de veículos com sede no município A, que alugue carros que circulam no município B, acaba por usar serviços públicos providos por este último, mas só paga impostos ao município A. Os casos mais notórios têm envolvido serviços relativos a operações de leasing e à administração de planos de saúde, na busca da repartição do tributo com base onde o serviço é de fato demandado, adquirido e usufruído.

Há preocupação também com a repartição do imposto sobre cartões magnéticos, calculado com base no preço do serviço de intermediação financeira – este, via de regra, um percentual sobre os gastos comandados por meio do cartão. Hoje, a arrecadação do ISS imponível a esses serviços está concentrada em alguns poucos Municípios, diante do pequeno número de administradoras e credenciadoras de cartões, que transferiram seu domicílio fiscal para municipalidades cuja cobrança do ISS fosse mais favorável. São poucas, portanto, as unidades federativas que se beneficiam do uso generalizado de cartões como meio de pagamento ocorrendo em todos os Municípios do País – e também fora, no caso de uso de cartões no exterior.

Daí a natureza justa e distributiva das proposições em análise pelo Congresso Nacional. Basicamente, propõem repartir o ISS com base no local “onde for efetuada a operação”, ou “onde esteja instalado o terminal de vendas (POS)”, para as operações realizadas com o uso de cartões. É a mesma ótica da proposta de redistribuição do ICMS em consonância com o “princípio do destino”, que estabelece o local de consumo do bem ou serviço, e não sua origem atrelada à sede da empresa fornecedora, como critério para definição da competência tributária.

Uma alternativa crível seria considerar ocorrido o fato gerador do imposto quando estiver sendo utilizado o cartão, mas observando-se que o imposto será devido ao Município de domicílio fiscal do titular do cartão de crédito ou de débito e congêneres.

 

É viável alterar o critério de incidência tributária sobre serviços relativos a cartões magnéticos?

Como regra, o ISS é devido onde são consumadas as situações necessárias e suficientes à ocorrência do serviço.  Todavia, o ganho de escala empresarial tornou o alcance da organização ofertante do serviço, muitas vezes, muito mais amplo do que os limites da jurisdição de um só Município. Também é comum a oferta de um serviço envolver uma série de atividades encadeadas ocorrendo em mais de um local físico.

Esse é especialmente o caso em que, para a consumação do serviço, há ingerência de uma organização administrativa e de suporte tecnológico concentrada em um ou poucos locais, mas associada a outras estruturas laborais conectadas para alcançar os clientes nos mais diversos Municípios – como, por exemplo, as maquininhas leitoras de cartões espalhados pelos estabelecimentos comerciais, ou na oferta de serviços de TV a cabo.

Daí surge o arbítrio legal do fato gerador tributário, especificando o que é necessário e suficiente à consumação do tipo tributário, à luz do Código Tributário Nacional (CTN). É natural a arbitragem do momento temporal para determinar o fato gerador. É quando o titular do cartão efetua o pagamento de uma compra com o cartão que se materializam as condições para o surgimento do ISS. O ISS surge nesse momento pelo simples motivo de que o serviço já está prestado: é uma questão de segundos para se ter o serviço realizado. Assim, o fato gerador se concretiza quando os dados são capturados e transmitidos à administradora/instituição financeira, com imediato retorno de informação para a maquininha. Nesse sentido, a execução dos fluxos de pagamentos, gerados com o uso dos cartões nas maquininhas, é o cerne do serviço prestado, objetivo da empresa administradora de cartões. É tão somente para concretizar cada operação financeira que existe toda a estrutura por trás dos sistemas de pagamentos com cartões, e que produzem todos os lançamentos contábeis e transferências financeiras derivadas.

Por sua vez, uma série de atividades acessórias é executada nas agências bancárias espalhadas pelo País, até porque as administradoras de cartões são integrantes de conglomerados financeiros. Os bancos centralizam o contato com os clientes, fornecendo o cartão, geralmente com as duas funções de crédito e de débito. É a instituição financeira responsável pela relação com o titular do cartão, quanto à habilitação, identificação e autorização; liberação de limite de crédito ou saldo em conta corrente; fixação de encargos financeiros; cobrança de fatura, e definição de programas de benefícios. São atividades realizadas, precipuamente, dentro das dependências dos estabelecimentos bancários, por meio do gerente de contas, constituindo etapa integrante do serviço prestado de cartão magnético como meio de pagamento.

Sob essa ótica, o negócio cartão magnético já possui, per se, uma territorialidade muito mais ampla do que apenas a jurisdição do Município eleito como domicílio fiscal centralizador do ISS recolhido pelas administradoras de cartões. É clara a necessidade de contatar os clientes nas agências bancárias em que possuem conta, onde o limite de crédito é analisado e acompanhado, e onde também é feito o monitoramento do risco de crédito envolvido.

Para caracterizar o serviço contratado, não basta, portanto, a administradora possuir equipamentos e pessoal concentrados num endereço, como em sua sede ou no Município onde está formalmente registrada para exercer sua atividade laboral. É preciso que ocorra o início do serviço pelo acionamento do cartão pelo titular, em qualquer lugar fora de sua sede administrativa. Ali também não ocorre nem a atividade de suporte aos usuários, pois call centers são estruturas remotas terceirizadas pelas empresas. Por isso, é plausível que se adote o momento de uso do cartão pelo titular como parâmetro determinante do fato gerador do ISS. É nesse instante que ocorre a quitação financeira da transação comercial subjacente. As atividades administrativas de suporte a todo o sistema de pagamento com cartões magnéticos são apenas acessórias, não podendo caracterizar per se o momento e, por conseguinte, o local de consumação do fato gerador do tributo.

De forma didática, além do serviço de administração de cartões (item 15.01), a lista anexa à LC nº 116, de 2003, leva à identificação de mais duas tipologias de serviços relacionados a cartões. O serviço de administração de cartões (item 15.01) e o de transmissão de dados para pagamentos com cartões (item 15.16) guardam grande similaridade com o grupo de serviços imponíveis do ISS cuja prestação ocorre basicamente fora do estabelecimento prestador, ou da sede da empresa, conferindo competência para exigir o ISS ao Município onde os serviços são executados. Sob esse prisma, não importa se a sede ou escritório da empresa (onde se executem diversas atividades para a prestação efetiva daquele serviço), ou se seu domicílio fiscal esteja em outro Município. É essencial apenas observar que o serviço é concretizado precipuamente fora do estabelecimento fiscal do prestador de serviço.

Por sua vez, os serviços relativos a fornecimento e reemissão de cartões magnéticos (item 15.14) constituem atividades acessórias para viabilizar o sistema de pagamento com cartões. Por isso, e pelo fato de constituir serviço cuja receita é muito marginal às administradoras (quando cobram pela emissão do cartão), é oportuno adotar o mesmo critério aplicável aos demais serviços relativos a esse setor de pagamentos financeiros, o que já proporciona uma distribuição mais equânime dos recursos, a nosso ver. O mesmo raciocínio se aplica a serviços de captura e transmissão de dados, para pagamento com cartões (item 15.16). A captura e transmissão de dados é a situação concreta, e o local onde é realizada correspondente à consumação desse tipo tributário. Os dados magnéticos, armazenados nos cartões, somente podem ser capturados onde estão fisicamente, e também somente são transmitidos a partir de onde se encontram originalmente. Nesse caso, pode-se desprezar o aparato tecnológico que as empresas credenciadoras possuem em suas sedes, para fins de incidência tributária. Mesmo importantes, constituem atividade preparatória ou auxiliar do serviço de captura e transmissão de dados.

 

Competência tributária sobre serviços relacionados ao uso de cartões no exterior e em pagamentos em sites domésticos e estrangeiros

A descentralização tributária deve considerar o uso crescente de cartão de crédito no exterior. Logo, não se pode eleger o local do uso do cartão como critério de determinação do sujeito tributário ativo, pois significaria a delegação de competência tributária a entes estranhos ao federalismo brasileiro. Isso prejudicaria todos os Municípios brasileiros, pois nenhum receberia receitas derivadas do uso de cartão no exterior. Diante da crescente representatividade dos gastos externos na base de cálculo do ISS, não se pode desonerar as receitas provenientes da prestação de serviços relativos ao uso de cartões internacionais, sob pena de redução expressiva da base de cálculo do ISS. Isso aponta que a alternativa crível é adotar como critério da competência tributária o domicílio fiscal não do prestador do serviço (a administradora ou credenciadora de cartões), mas do titular do cartão.

A atribuição do ISS ao Município onde estiver sendo efetuada a operação com o cartão acaba também por se deparar com dificuldades técnicas no caso de compras na internet. Não há simplesmente como identificá-lo. Não apenas pela importante questão da preservação da privacidade do usuário na rede, mas também pela própria dificuldade de identificação de computadores por meio de endereços IPs – que é o que hackers mais objetivam. É impossibilidade tecnológica. Esse também é o caso de compra em sites estrangeiros, não hospedados no Brasil e que vendem produtos em moeda estrangeira, com alcance por meio do computador de qualquer residente.

A alternativa para desconcentrar o ISS sobre serviços relativos a pagamentos com cartões na internet também é considerar o domicílio do titular do cartão, como meio para determinar a competência tributária, identificando o sujeito ativo da relação e melhor distribuindo a arrecadação do tributo.

Essa prescrição também é mais ampla do que a proposta corrente apresentada pelo PLP nº 34, de 2011, em trâmite na Câmara dos Deputados, que acabaria reduzindo o universo do fato gerador do ISS apenas ao uso dos cartões nas maquininhas terminais de vendas (POS). Não parece conveniente desonerar grande parte das receitas correntes das administradoras e credenciadoras de cartões, derivadas de serviços relativos a cartões na internet, cuja tendência de uso é crescente.

 

Custos operacionais e a centralização do recolhimento do ISS:

Qualquer redistribuição de ISS sobre serviços relativos a cartões esbarra na questão do grande universo esperado de sujeitos ativos potenciais, de mais de cinco mil Municípios. Isso requer abordagem específica.

Por um lado, não é intuito da lei onerar as empresas administradoras e credenciadoras de cartões para aumentarem suas estruturas administrativas para executar o pagamento desconcentrado do ISS – inclusive para atender as demandas de fiscalização dos mais diversos Municípios brasileiros. Impor-se-ia custo regulatório que aumentaria o chamado “custo-Brasil”, gerando ineficiência econômica e reduzindo a produtividade doméstica. Nesse caso, é conveniente a centralização do recolhimento do ISS no âmbito da União, a exemplo de outros impostos como o ITR e o IRPF, e como as obrigações tributárias das micro e pequenas empresas.

A Secretaria da Receita Federal (SRF) já possui estrutura tecnológica e administrativa suficiente para gerenciar o ISS sobre serviços relacionados a cartões, o que faz muito sentido no caso de recolhimento por poucas empresas com prestação de serviço em âmbito nacional. A operacionalização da cobrança do tributo não ficará mais complexa, já que o recolhimento continuará sendo feito de forma centralizada, mas agora junto à SRF e não mais ao Município eleito domicílio fiscal. A medida também não gerará confusão aos departamentos jurídicos das empresas, que não terão de lidar com a legislação de ISS de todos os municípios do País – mas apenas uma, unificada, com abrangência nacional. Isso também beneficia os Municípios, especialmente os menores, que prescindirão de novas estruturas próprias para administrar essa nova arrecadação.

 

Considerações finais

Como regra, parte essencial do serviço de pagamentos com cartões apenas se concretiza no momento em que o titular paga algum bem ou serviço – geralmente por meio da leitura dos cartões nos terminais POS, hoje disseminados pelo comércio. Todavia, o crescente uso de cartões para pagamentos na internet aponta estipular o domicílio do comprador, titular do cartão, como critério mais adequado para repartição do ISS. É também o único critério aplicável a serviços relacionados a uso de cartões no exterior, como alternativa à regra corrente. Os serviços intermediários de transmissão de dados dos cartões, providos pelas credenciadoras e pelas facilitadoras de pagamentos, também requerem comando legal mais abrangente do que a prestação do serviço junto dos estabelecimentos comerciais, ou uma referência a maquininhas leitoras de cartões – sob pena de redução da base tributária.

Deve-se mencionar, por fim, que a visão apresentada pode ser considerada polêmica para alguns Municípios, pois qualquer reconfiguração de distribuição de tributos não é neutra. Todavia, a efetiva implantação de um novo padrão tributário – mais moderno, simples e eficiente – tende a contribuir para reduzir desigualdades sociais e fortalecer o pacto federativo. Mas, a nosso ver, faz muito sentido de ser perseguido, especialmente para serviços com abrangência espacial ampla, envolvendo valores crescentes e não desprezíveis.

 

(Este texto é baseado no estudo “Prestação de Serviços com Alcance Nacional na Agenda de Reforma Tributária: Considerações sobre a Repartição do ISS imponível a Cartões Magnéticos” – Boletim do Legislativo nº 162 do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado, disponível em: http://www.senado.gov.br/estudos)

 

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Sobre o Autor:

Cesar van der Laan

Engenheiro, Doutor em Economia (UFRGS). Consultor Legislativo do Senado Federal (Política Macroeconômica e Sistema Financeiro).

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4 Comentários Comentar

  • Caro amigo, não há incidência do ISS sobre serviços de locação.

    • Caro Marcos,
      Obrigado pelo retorno, e pela leitura atenta.
      Na Lei complementar 116, de 2003, que rege o ISS, há previsão expressa de autorização de imposição de ISS sobre locação, conforme o item 3.04, da lista anexa à lei. O 15.03 também, no caso de serviços financeiros. Dá uma olhada lá, ou abaixo.
      Agora, pode ocorrer que alguns municípios não estejam cobrando, apesar da autorização legal.
      Um abraço,
      Cesar
      Lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.
      3 – Serviços prestados mediante locação, cessão de direito de uso e congêneres.
      15.03 – Locação e manutenção de cofres particulares, de terminais eletrônicos, de terminais de atendimento e de bens e equipamentos em geral.

  • É obvio que há ocorrência do iss quanto a locação. Quando a locadora aluga maquinas e equipamentos com operador, ocorre fato gerador de serviços.

  • Prezado Cesar,

    Me permita discordar de um argumento basilar de sua tese.

    O fato gerador do ISS na operação em que se utiliza o cartão de crédito diz respeito aos serviços envolvidos na contratação do crédito, os quais estão relacionadas desde a secretaria da bandeira em questão (por exemplo a VISA) até o motoboy dessa instituição. Podemos também considerar os serviços notariais daquela empresa ou as contratações dos advogados por parte dela para a resolução de um conflito eventual. Ou seja, o serviço ocorre no local onde se toma a decisão acerca da aprovação do financiamento, onde se concentra o poder decisório, onde se situa a direção geral da instituição. Dessa forma, acredito que sua afirmação de que o ISS surge “…quando o titular do cartão efetua o pagamento de uma compra com o cartão…” distorce a noção do fato gerador do tributo. Não é o serviço prestado na pizzaria ou na padaria que constitui o serviço fato gerador do imposto. Sendo assim, o pilar da sua tese está, acredito eu, equivocado. Nesse caso, sugiro uma análise do REsp 1.060.210/SC (STJ).

    Ressalto, novamente, que o serviço da instituição é integralmente prestado na sede desta, localizada em determinado Município, onde se encontram todos os meios essenciais para tal prestação (como avaliação do histórico de crédito do cliente, processamento, custos notariais, transporte de documentos, honorários advocatícios e todos os serviços envolvidos na operação), incluindo todos os seus funcionários, sistemas e estrutura física.

    Abraço,

    Marconi Borges

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