fev
11
2011

O fator Previdenciário deve acabar?

Por ocasião da discussão da primeira reforma da previdência social, o Congresso Nacional rejeitou a imposição de idade mínima para habilitação à aposentadoria por tempo de contribuição no regime geral de previdência social (embora a tenha aceito para o regime do servidor público), o que foi um duro golpe para o Executivo, que considerava essa a principal medida de contenção das despesas do INSS.

Ocorre que, embora a Emenda Constitucional nº 20, de 1998, não tenha estabelecido um limite de idade, ela retirou do texto da Constituição a regra de cálculo da aposentadoria, o que abriu caminho para substancial inovação em sua metodologia: a aplicação do fator previdenciário, introduzido mediante a Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999.

Mas o que é exatamente o fator previdenciário?

É um índice utilizado para definir o valor da aposentadoria. Ele multiplica o valor médio das contribuições à previdência social de cada segurado do seguinte modo:

Valor da aposentadoria = (valor médio das contribuições) x fator previdenciário

Esse índice (diferente para cada segurado) está estruturado de forma a incluir a idade, a expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição do segurado ao se aposentar (além da alíquota de contribuição), nos seguintes termos:

Fator previdenciário =  Tc x a x   (1 + Id + Tc x a) onde:

Es                       100

Tc = tempo de contribuição do segurado

a = alíquota de contribuição do segurado = 0,31 (20% da empresa + 11% do empregado)

Es = expectativa de sobrevida do segurado na data da aposentadoria (fornecida pelo IBGE)

Id = idade do segurado na data da aposentadoria

Na primeira parte da equação, busca-se uma proporção entre o total de contribuições pagas pelo indivíduo e o tempo que se espera que ele receberá a aposentadoria. Suponha-se, por exemplo, um empregado que tenha trabalhado durante 30 anos. Como a contribuição mensal paga ao INSS correspondeu a 0,31% do seu salário de contribuição (11% do empregado mais 20% do empregador),a contribuição total acumulada seria suficiente para pagar sua aposentadoria por 9,3 anos (30 x 0,31). Portanto, se sua expectativa de sobrevida também for 9,3 anos, a primeira parte do fator estará equilibrada (corresponderá à unidade): suas contribuições foram suficientes para pagar sua aposentadoria ao longo do período esperado de sobrevida. Se ele estiver se aposentando ainda jovem, a sua expectativa de sobrevida será alta, o que reduz o valor da primeira parte da equação, reduzindo o fator previdenciário e, consequentemente, o valor mensal da aposentadoria. Se ele vai viver mais tempo, terá que receber menos por mês, para que a sua contribuição durante o período ativo seja suficiente para financiar sua aposentadoria. Efeito similar ocorrerá se o tempo de contribuição for baixo.

Na segunda parte, está sendo pago um prêmio para os segurados que permanecerem mais tempo em atividade, de modo que a aposentadoria é maior para aquele que permanece trabalhando por mais tempo e vice-versa.

Fundamental entender que o fator previdenciário é uma forma de fazer um “regime de repartição” funcionar de modo similar a um “regime de capitalização”.

No regime de capitalização o indivíduo faz contribuições mensais que, capitalizadas, serão depois retiradas na forma de uma renda mensal de aposentadoria. No regime de repartição são os trabalhadores ativos que financiam os benefícios dos aposentados e pensionistas, pressupondo que, no futuro, seus benefícios previdenciários serão custeados pela nova geração de trabalhadores.

O problema do regime de repartição é que, com o envelhecimento da população e ampliação da expectativa de vida, há cada vez menos trabalhadores na ativa para remunerar aposentados e pensionistas. Assim, uma transição para um regime de capitalização torna o sistema previdenciário menos deficitário.

Com o fator previdenciário, cria-se um estímulo para que o trabalhador permaneça mais tempo na ativa para ter uma aposentadoria maior. Tudo se passa como se ele estivesse mais tempo na ativa para acumular mais contribuições em uma conta de capitalização.

Além disso, o resultado final da aplicação do fator atende plenamente ao princípio de equidade que deve reger o sistema de previdência social, conforme dispõe o art. 194 da Constituição. Afinal, é razoável considerar que aquele que opte por se aposentar por tempo de contribuição (35 anos para homens e 30 para mulheres) em idade precoce receba benefício inferior a de outro que prefira se aposentar com idade mais elevada. Esse último, além de ter contribuído por maior período, deverá receber o benefício por menos tempo, sendo, justo, pois, que aufira uma renda mensal mais elevada que o primeiro.

Outra qualidade do fator previdenciário é que ele tende a equilibrar o fluxo de caixa do sistema previdenciário no curto e médio prazo, já que o segurado que sai mais cedo, provocando desembolso antecipado, recebe, em contrapartida, aposentadoria de menor valor. Ademais, possui o mérito de ajustar automaticamente os valores das aposentadorias ao contínuo aumento da expectativa de sobrevida da população brasileira, o que é essencial num sistema previdenciário de repartição como o nosso.

Diante de tantas qualidades, cabe questionar se ainda há necessidade de impor idade mínima para concessão de aposentadoria por tempo de contribuição. A resposta é sim. O necessário equilíbrio financeiro da previdência social continua a demandar o estabelecimento de uma idade mínima para concessão de qualquer tipo de aposentadoria.

Isso ocorre porque a incidência do fator previdenciário teve um efeito moderado em termos de incentivo à postergação da aposentadoria, sendo razoável supor que muitas pessoas prefiram se aposentar cedo, com menores aposentadorias. Assim fazendo podem complementar seus rendimentos mensais com a concessão de benefício complementar (no caso daquelas vinculadas a um regime privado de previdência) ou, mais frequentemente, com a renda proveniente de novo trabalho, já que não se proíbe que o aposentado volte a trabalhar.

Com efeito, a idade média de aposentadoria por tempo de contribuição ainda é muito baixa (54 para homens e 52 anos para mulheres), especialmente quando comparada à experiência internacional. Confrontando essas idades com as respectivas expectativas de sobrevida (Tábua de Mortalidade 2009/IBGE), nos deparamos com a seguinte situação: os homens que se aposentam aos 54 anos de idade deverão receber aposentadoria por mais 23,7 anos; as mulheres que se aposentam com 52 anos de idade, por mais 29,2 anos (quase o mesmo tempo mínimo de contribuição, que é de 30 anos).

É fácil perceber a inconsistência existente e o quanto se agravará, em face do irrefutável envelhecimento da nossa população. Há que se considerar, ainda, que a contribuição representa 31% do salário, enquanto a aposentadoria corresponde a 75% e 61%[1] desse valor, respectivamente para homens com 54 e mulheres com 52 anos (se o fator não fosse aplicado, a deficiência atuarial seria ainda mais grave, já que o benefício reporia 100% do salário para ambos os sexos).

O distanciamento entre as regras vigentes no Brasil, um dos seis únicos países do mundo que ainda concede aposentadoria sem limite de idade, e as aplicadas nos países desenvolvidos aponta para a relevância de introduzir tal limite para a aposentadoria por tempo de contribuição.

Enquanto no Brasil o fator previdenciário permite que alguém se aposente com 53 anos de idade, 35 de contribuição e benefício em torno de 70% da média dos salários de contribuição; nos países da OCDE, não apenas a idade de aposentadoria é muito mais elevada, como são requeridos 40 anos de contribuição e 70% do salário é o valor máximo do benefício.

Isso significa que no Brasil, não obstante a aplicação do fator previdenciário, ainda se recebe aposentadoria por mais tempo e com maior valor em relação ao salário médio de contribuição do que o verificado nos países desenvolvidos. Mesmo assim, há atualmente significativa pressão política em favor da eliminação do fator previdenciário.

Esse índice utiliza as informações sobre expectativa de sobrevida da população brasileira por sexo e faixa etária fornecidas pelo IBGE, que, em face do paulatino envelhecimento da população brasileira, é maior a cada ano.

Isso significa que os trabalhadores passaram a se deparar com a seguinte escolha: ou aceitam receber benefícios cada vez menores ou contribuem por cada vez mais tempo para fazer jus a proventos de aposentadoria de valor idêntico ao dos segurados já aposentados. Muitos argúem que tal situação não é justa, em especial porque impede o trabalhador de conhecer antecipadamente sua situação quando da aposentadoria, em vista dos constantes aumentos anuais da expectativa de sobrevida da população.

Diante da pressão política, o Congresso Nacional tentou extinguir o fator previdenciário em várias ocasiões. Na mais recente, aprovou a Lei nº 12.254, de 2010, que continha dispositivo que o eliminava, mas que acabou sendo vetado pelo Presidente da República.

Com isso, nos deparamos hoje com a ameaça de nem com o fator previdenciário contarmos no futuro, o que significaria caminhar na contramão do que ocorre no mundo, onde cada vez mais países utilizam fatores de cálculo que permitem a capitalização virtual das contribuições ao sistema previdenciário, de forma a aproximar os fluxos de contribuições passadas e de renda futura de benefícios.

A Suécia e a Itália, por exemplo, não obstante possuam sistemas previdenciários enormes e com graves restrições demográficas, conseguiram reduzir sobremaneira os efeitos do envelhecimento de suas populações a partir da criação de vínculos mais estreitos entre contribuições e benefícios. Isso foi possível mediante a instituição das chamadas “contas nocionais de previdência” (também adotadas pela Polônia e por mais três pequenos países), que consideram fatores demográficos e macroeconômicos no cálculo do benefício previdenciário, de forma similar ao nosso fator previdenciário.

Tomando como exemplo o sistema sueco, quando o indivíduo chega à idade de se aposentar (61 anos), o valor do seu benefício corresponde ao valor de suas contribuições acumuladas mais os juros nocionais (calculados de acordo com parâmetros estabelecidos pelo governo), dividido pela expectativa de sobrevida aos 61 anos. Se ele decide se aposentar um ano mais tarde, suas contribuições durante o ano adicional de trabalho são também acumuladas à taxa de juros nocional e o resultado final é dividido pela expectativa de sobrevida média aos 62 anos de idade e assim sucessivamente.

É fácil perceber que esse sistema de contas nocionais aproxima-se da sistemática que rege a aplicação do fator previdenciário no Brasil, com diferenças, dentre as quais a de que, ao contrário do caso brasileiro, no europeu se impõe uma idade mínima para habilitação ao benefício previdenciário.

A experiência desses países ensina que não deveríamos  extinguir o fator previdenciário. Pelo contrário, deveríamos, sim, refletir sobre a necessidade de impor idade mínima para a concessão de aposentadoria por tempo de contribuição, bem como sobre o aperfeiçoamento desse índice e ampliação dos benefícios previdenciários cujo cálculo utilize sua metodologia.

É inquestionável que o fim do fator dificultará muito mais o necessário controle do desequilíbrio financeiro e atuarial da previdência social brasileira. De acordo com estimativa da Consultoria de Orçamentos da Câmara dos Deputados, o impacto orçamentário e financeiro de tal extinção teria correspondido a cerca de R$ 1,2 bilhão, em 2009, R$ 2,5 bilhões, em 2010, e R$ 3,9 bilhões em 2011[2].

Por fim, cabe destacar que as aposentadorias por tempo de contribuição são majoritariamente concedidas aos trabalhadores melhor qualificados e com maior rendimento. Prova disso é que tal aposentadoria é o benefício mais alto da previdência social. Seu valor médio equivale a R$ 1.205,83, mais do dobro da média dos valores recebidos pelos trabalhadores que se aposentam por idade (R$ 521,58), que representam o maior contingente de beneficiários do sistema.

E quem paga por isso é toda a população brasileira, direcionando cerca de 34% da renda nacional para pagar tributos, enquanto continua a conviver com uma péssima saúde pública, baixíssima qualidade do ensino e níveis assustadores de violência.

Downloads:

  • veja este artigo também em versã o pdf (clique aqui).

Para ler mais sobre o tema:

AMARO, Meiriane N. Terceira Reforma da Previdência: até quando esperar? Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, fev/2010 (Texto para Discussão nº 84). Disponível no site: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm


[1] Na aplicação do fator previdenciário, são somados 5 anos ao tempo de contribuição das
mulheres e dos professores do ensino básico (10 anos se forem mulheres).

[2] CAMBRAIA, Túlio. Os Efeitos da extinção do fator previdenciário e do retorno à média curta. COFF/CD. Estudo Técnico nº 02, abr 2009. http://www.camara.gov.br/internet/orcament/principal/.

A estimativa também leva em consideração a diminuição do período de cálculo da contribuição média do segurado.

Sobre o Autor:

Meiriane Nunes Amaro

Mestre em Economia pela UnB e pós-graduada em Direito Legislativo.

Recomendações de artigos:

6 Comentários Comentar

  • Olá, Meiriane!

    Excelente artigo, é uma análise consistente e rara de se ver… Obrigado por escrevê-lo!

    Aliás, queria aproveitar o ensejo para perguntar algo que tem me inquietado. Geralmente a mudança da idade mínima para aposentadoria está ligada à expectativa de vida média da população. Entretanto, categorias profissionais diferentes podem ter expectativas de vidas diferentes. Não é algo que se devesse levar em conta? Existe algum modelo que considere isso? Não é possível aumentar a idade mínima em função da categoria do profissional?

    Até!

  • Adam,
    O mais importante nessa questão é a diferenciação entre a expectativa de vida ao nascer, bastante afetada pelas condições socioeconômicas da população considerada, e a de sobreviver depois de superados os riscos da infância. No caso do Brasil, o que se leva em consideração para calcular o fator previdênciário e mesmo quando se discute a imposição de limites de idade para aposentadoria é a expectativa de sobrevida por faixa etária. Um exemplo: nos dias atuais, enquanto a expectativa de vida ao nascer está em torno de 73 anos, a de sobrevida para aqueles que atingiram 60 anos de idade é de mais 23 anos, o que representa uma expectativa de vida de 83 anos.

  • O fator previdenciario é um grande golpe no trabalhador brasileiro e não desconsidera as diferenças regionais quanto à idade dos segurados. Sabe-se que moradores do sudeste vivem mais que os do norte por razões óbvias.O fator, além de complexo e de difícil compreensão para as pessoas, é inconstitucional por introduzir elementos de cálculo que influem no próprio direito ao benefício. Também, na Constituição Federal não há qualquer previsão de elementos como a expectativa de vida para que o benefício seja concedido. Os legisladores esqueceram de rever a vergonha que são seus vencimentos e mordomias em detrimento da grande maoiria do povo. Falta moral ética ao político brasileiro e enquanto formos esse povo dito alegre que gosta de futebol e carnaval e ri da própria miséria, continuaremos vendo essas distorções e achando graça. Reagir é a palavra de ordem!

  • Infelizmente precisamos acabar com fator previdenciário e também a aposentadoria por tempo de contribuição…. como tá ocorrendo no mundo (sério) todo… a Grécia o pessoal se aposenta com 50 anos, Itália um pouco mais…enfim estes países quase ruíram a Europa… nos países sérios como a Alemanha, Inglaterra foi pra 67 anos…no Brasil precisamos aposentar todos entre 60 e 65 anos…igualando inclusive os sexos… a mulher hoje tá independente, tem pouco filhos e dura 7 anos mais que os homens, por isto ambos tem que se aposentar com a mesma idade, a pensão por morte só se não tiver outra aposentadoria ou se a mulher tiver filhos menores de 18 anos, como ocorre nos países sérios, mulheres jovens não podem ganhar aposentadoria se casar com homens velhos, a previdência pública deve seguir as regras do INSS e se passar do teto…. ir pra aposentadoria complementar. Mas esta aposentadoria complementar precisa ser igual ao da iniciativa privada, o que eu vejo é que a prev. complementar pública também é uma farsa, ajuda demais o funcionário público porque o governo também participa da previdência, dando uma parte da contribuição. Este país é tudo injusto, não é um país sério, como dizia o De Gaulle, aquele filme Macunaína é tudo verdade….

  • Simplesmente excelente, a matéria. Apesar de não concordar com a redução de 0,31%, deixa eu ver se entendi: Quem cumpriu 35 anos de trabalho e tenha 53 anos, o INSS calcula a expectativa de vida (acrescente-se) 27,3 anos (prevendo que o aposentado, neste caso morreria, portanto cessaria o direito aos oitenta anos e três meses, diga-se de passagem um absurdo, pois com tanta insegurança, e desgoverno, se o individuo chegar aos 53 anos, já teria sorte demais. Ademais trabalhar no Brasil é uma façanha, a economia do Brasil é super instável, tem muita corrupção, e pasmem, agora com a terceirização vai piorar. O patronado vai “deitar e rolar”. Voltamos ao tempo dos escravos, aliás eles estavam privilegiados pois poderiam comprar a própria carta de alforria, mas nós não teremos dinheiro, agora salve-se quem puder. O governo não tem dinheiro para as contas públicas, de onde é que você acha que vão tirar dinheiro para pagá-las. “Ganha um doce quem adivinhar” (expressão usada, quando a resposta é fácil demais), melhor explicar pois, estou desempregado, idade avançada. No Brasil você é considerado velho e imprestável para o trabalho muito cedo, portanto, não tenho dinheiro nem para a sobrevivência minha e da minha família (aliás é texto constitucional, está no artigo 5º da nossa Constituição cidadã, outra coisa que me deixa profundamente chateado. Morro mas não deixo o osso”, afinal, aqui é Brasil. A esperança virou descrença para sempre, afinal você acreditaria se eu dissesse que viriam dias melhores. SÓ ESTAMOS POR DEUS!!!!!!

  • ÓTIMA MATÉRIA, POREM ACHO QUE ESTA TUDO ERRADO, SE ALGUÉM DE 20 ANOS CASA COM UMA PESSOA APOSENTADA DE 65 ANOS, O QUE ACONTECE SE ESSE APOSENTADO FALECER?
    O GOVERNO MISTURA O TRABALHADOR URBANO COM O RURAL, PORQUE?
    ACHO QUE SÓ PODE USAR DINHEIRO DO SISTEMA PARA PAGAR QUEM REALMENTE CONTRIBUIU, OUTROS TIPOS NORMALMENTE ELEITOREIROS DE BENEFÍCIO TINHA QUE SAIR DE OUTRAS FONTES, NA PREVIDÊNCIA PRIVADA NÃO É ASSIM?

Inscreva-se

Publicações por data