set
1
2014

Os conflitos federativos na democracia brasileira

Introdução

As regras de relação federativa no Brasil são em parte herdadas do período militar e em parte construídas ou adaptadas após a redemocratização. A parcela herdada do passado não–democrático – como o arranjo do CONFAZ para gerir o ICMS – simplesmente perdeu funcionalidade, porque pressupunha centralização de poder nas mãos do Executivo federal (no caso do CONFAZ, poder do Ministro da Fazenda e submissão dos secretários estaduais). A parcela criada ou reformulada no período democrático padece dos problemas vividos por nossa democracia que, como argumentado adiante, estimula forte conflito distributivo entre diferentes grupos de interesse, organizados em bases sociais, profissionais, ideológicas, religiosas, entre outras. Os problemas federativos são mais uma dimensão desse conflito, tendo as regiões, estados e municípios como núcleo de organização dos interesses conflitantes.

A democracia brasileira está sendo construída em uma sociedade bastante desigual. A desigualdade não se restringe às dimensões de renda e patrimônio, mas também de acesso a serviços públicos e à justiça, de nível educacional e também das condições econômicas e possibilidades de desenvolvimento regional.

Ao transitar de um regime fechado, sem espaço para pressões políticas por redistribuição, para um regime aberto, com ampla representação política, a sociedade brasileira viu explodir as demandas de diversos grupos de interesse. O Congresso Nacional tem representantes declarados ou ocultos de inúmeros grupos profissionais, sociais e ideológicos, oriundos de todos os níveis de renda: bancada ruralista, bancada da bola, movimento negro, bancada da saúde, bancada da educação, bancada municipalista, etc. O nosso sistema eleitoral permite esse tipo de representação, ao adotar o voto proporcional com distritos eleitorais amplos.

Embora não caiba aqui uma detalhada análise do sistema político eleitoral, o que inclusive exigiria que se explicitassem os benefícios que esse sistema traz; o que é relevante ressaltar é que cada um dos inúmeros grupos de interesse tem uma agenda que busca não apenas aumentar o gasto público em favor da sua causa ou grupo social, mas também criar regras que lhes concedam novos privilégios ou protejam os antigos. Por exemplo, subsídios ou proteção comercial criados no passado são renovados independentemente de terem sido bem-sucedidos ou não, porque criaram clientes que deles auferem renda e se mobilizam para perenizá-los.

A combinação de grande heterogeneidade social com ampla liberdade de reivindicação e de representação política acaba levando a forte conflito distributivo. Tal conflito, ao resultar na expansão do Estado, tanto pela via do gasto (e da tributação) quanto pela via da regulação econômica ineficiente (que busca proteger renda de grupos); acaba minando a eficiência da gestão pública e a produtividade da economia. O resultado é o baixo crescimento econômico. O bolo de renda a ser dividido fica menor do que poderia ser, o que reforça o conflito original, colocando o país em uma armadilha de baixo crescimento e limitada capacidade de fazer reformas que quebrem privilégios e sejam capazes de aumentar a eficiência e o crescimento.

O restante deste texto apresenta os principais problemas de relação federativa no Brasil, mostrando como eles se situam nesse modelo geral de democracia conflituosa e de herança de instituições do período autoritário.

ICMS e CONFAZ

O ICMS é um imposto sobre o valor agregado pertencente aos estados. Como forma de incentivo para atração de empresas, vários estados passaram a conceder isenção de impostos. Para evitar essa guerra fiscal, instituiu-se o Confaz como instância deliberativa, em que a isenção fiscal oferecida por determinado estado somente seria permitida caso os Secretários de Fazenda de todas as unidades da federação, por unanimidade, aprovassem tal isenção. Ocorre que esse modelo só funcionava em um ambiente político centralizado, no qual o poder central, representado pelo Ministério da Fazenda, impunha as regras, e os representantes estaduais não tinham poder para desafiá-las. A partir do momento em que houve democratização e descentralização do poder, tornou-se inviável a gestão consensual do ICMS.

Tampouco parece haver espaço para uma solução cooperativa, com a redução da alíquota interestadual do ICMS para coibir a guerra fiscal, simplesmente porque o Governo Federal não tem credibilidade para oferecer compensações aos perdedores.

Essa falta de credibilidade decorre, em primeiro lugar, do fato de que a real compensação seria a implantação de infraestrutura de transportes e logística que efetivamente integrasse as áreas mais distantes do país aos centros consumidores e aos pontos de exportação. Ocorre que o Governo Federal não consegue oferecer tal infraestrutura a curto e médio prazo, pois os investimentos no setor se tornaram presa do conflito distributivo em torno das verbas orçamentárias. Para gerar benefícios que representam renda no bolso dos diversos segmentos sociais (remuneração do funcionalismo, aposentadorias e pensões, assistência social, crédito subsidiado em bancos públicos, perdão de dívidas agrícolas, etc.) foi necessário não apenas elevar a tributação, mas também cortar os investimentos em infraestrutura.

Sem as necessárias artérias de transportes, os estados de economia mais atrasada não conseguem se integrar ao polo dinâmico da economia e perdem a oportunidade de utilizar suas vantagens comparativas (mão de obra e custo de terrenos mais baratos, por exemplo) para atrair investimentos e empregos. Resta o caminho conflituoso da guerra fiscal, que não só distribui custos de maneira aleatória (quem paga o custo do incentivo é o estado de destino das mercadorias), como incentiva a alocação ineficiente dos investimentos (que se baseia nos custos tributários e não nos custos de produção). Ademais, o excesso de regulação federal na área de portos, voltada a proteger a renda dos empregados do setor e o mercado dos operadores, impede que os estados litorâneos disponham de plataformas eficientes de comércio internacional.

Também contribui para a baixa credibilidade das ofertas federais de compensação a posteriori a experiência da Lei Kandir, em que alguns estados argumentam que não foram plenamente compensados pela desoneração de exportações, conforme estabelecido naquela lei. O fato é que, com o gasto público sempre crescente, decorrente do conflito distributivo acima referido, há sempre o risco de promessas de futuras compensações financeiras serem frustradas pelo próximo contingenciamento orçamentário.

Somente a ameaça de uma medida drástica, como a declaração de ilegalidade dos benefícios com efeito retroativo, pode forçar as partes a negociar e chegar a um acordo. Isso, contudo, não se fará sem impor perdas a alguns estados e deixar cicatrizes nas relações políticas.

Royalties de Petróleo e CFEM

A disputa aberta travada entre os estados acerca das regras de distribuição dos royalties do petróleo é um exemplo típico do conflito distributivo que impera no país. Não há argumentos tecnicamente convincentes para que os royalties se concentrem nos estados e municípios próximos aos locais de produção. Tampouco existem argumentos para sustentar a transferência desses recursos aos estados e municípios, em vez de concentrá-los nas mãos da União. Há robustas evidências empíricas de que os estados e municípios que “enriqueceram” com as receitas de royalties desperdiçaram parte significativa dos recursos, que somem sob a forma de captura pela burocracia, desperdício ou corrupção1. Apesar de tudo, continua o debate pela descentralização e redistribuição dos recursos. Quem fala mais alto leva!

Note-se que se está discutindo a distribuição das rendas de um petróleo que sequer saiu do fundo do mar e que enfrentará grandes desafios tecnológicos para chegar à superfície e ser transportado até o continente. Somos incapazes de nos concentrar na discussão sobre a forma mais eficiente de produzir e vender o petróleo, ou seja, de como aumentar a arrecadação total decorrente da extração do óleo. A discussão é essencialmente distributiva. E é assim porque o conflito é alto e acirrado. Quem cochilar perde tudo para o vizinho.

Por que não se discute a possibilidade de os recursos dos royalties de petróleo financiarem a tão necessária infraestrutura que integraria o país e daria competitividade aos estados e municípios mais distantes? Mais uma vez surge a falta de confiança entre as partes. Cada prefeito e governador prefere ter o dinheiro na mão, ainda que seja para fazer um investimento com menor impacto para o desenvolvimento local, quando comparado a grandes investimentos de âmbito nacional, com medo de que o governo federal simplesmente não faça investimento algum. Há também o risco de as obras federais, por mais importantes que sejam para o País como um todo, trazerem pouco benefício para determinado estado ou município. Por exemplo, a construção de uma rodovia interligando as áreas produtoras de soja do Mato Grosso ao Porto de Paranaguá pouco contribui diretamente para o bem estar de um morador da Bahia. Além disso, também existe, no âmbito estadual e municipal, o mesmo conflito distributivo, em que grupos demandam emprego público, subvenções e outros benefícios localizados. Portanto, a demanda de primeira ordem para governantes estaduais e municipais é ter dinheiro na mão para atender as pressões políticas locais.

Zona Franca de Manaus e Fundos de Desenvolvimento Regional

A Zona Franca de Manaus (ZFM), recentemente renovada por mais 50 anos, é um exemplo típico de incentivo que sobrevive graças ao seu fracasso. Seus beneficiários não querem perder o privilégio, e lutam para perpetuá-lo. A ideia original era dar incentivos fiscais temporários para que a indústria se instalasse naquela região e, com o tempo, adquirisse escala de produção suficiente para se tornar viável e capaz de competir com indústrias do restante do país e do mundo.

Passados 47 anos desde a implantação da ZFM, ela continua dependente de isenção tributária para sobreviver. O total de gastos tributários federais com a ZFM é da ordem de R$ 22 bilhões por ano. Cada um dos 500 mil empregos diretos e indiretos gerados na região custa ao país, em termos de benefícios fiscais, algo como R$ 44 mil por ano. No limite, seria mais eficiente pagar esse valor a cada pessoa hoje empregada na ZFM, o que corresponde a R$ 3,7 mil por mês, para que ela ficasse em casa, transferindo a produção para outra região do país que tenha competitividade para produzir sem precisar de incentivos fiscais2. Mantido o mesmo nível de gasto tributário, o País teria ganhos em termos de produtividade e redução de custos de logística e transportes, ficando em situação melhor que a atual, na qual, além dos custos fiscais, incorre nos custos de eficiência!

Porém, é politicamente inviável acabar com o incentivo e deixar um vazio demográfico e econômico em Manaus. O custo político é alto, e a pressão dos grupos beneficiados sobre o Congresso muito alta.

Raciocínio similar aplica-se aos fundos constitucionais de financiamento do setor produtivo. Apenas os fundos constitucionais absorvem 3% da receita de Imposto de Renda e IPI. A inadimplência dos tomadores desses recursos é alta, os custos operacionais dos bancos públicos que gerem os recursos são elevados (e consomem boa parte da verba orçamentária destinada aos financiamentos). Não há evidências de que, após décadas de financiamentos dessa natureza, tais instrumentos tenham sido capazes de fechar significativamente o hiato de desenvolvimento entre o Sul-Sudeste e o Norte-Nordeste. No entanto, os mecanismos seguem intocados, e sempre que possível as partes interessadas batalham por mais recursos e novos fundos.

Não há, no âmbito dos debates federativos, qualquer estudo mais detalhado de impacto, que mensure os custos e benefícios desses mecanismos e que abra um debate sobre como melhor usar esses recursos em prol do desenvolvimento regional. Faz-se hoje o que se fazia no passado, ainda que os resultados sejam medíocres. Qualquer possibilidade de reforma é bloqueada pelo medo de se perder recursos. Há um viés a favor do status quo.

O mesmo ocorria com os royalties, que durante anos foram canalizados para alguns poucos estados e municípios sem que os demais reclamassem. A perspectiva de aumento no valor total distribuído a partir da descoberta do pré-sal, contudo, aumentou o custo da inação política. E o debate sobre a redistribuição foi aberto.

No caso da ZFM, talvez os demais estados não se tenham dado conta do elevadíssimo custo. No caso dos fundos constitucionais, por beneficiarem estados de três regiões, é possível que haja, no parlamento, maioria favorável à sua continuidade. Afinal, rediscutir maior eficácia na aplicação desses recursos sempre gera o risco de se perder as verbas para outros grupos de pressão, localizados fora das áreas hoje beneficiadas pelos fundos. Não se pode esquecer, ademais, do grande incentivo que têm os atuais beneficiários de ambos os mecanismos para criar mobilização política em favor da manutenção de seus privilégios.

Criação de Obrigações aos Estados e Municípios sem o Respectivo Suporte Financeiro

Outra manifestação clara das consequências do conflito distributivo sobre as relações federativas são o que em inglês se chama de “unfunded mandates”: o legislador federal cria uma obrigação de ação ou gasto para os estados ou municípios sem, contudo, lhes fornecer os recursos necessários para cumprir a nova lei. Há abundantes exemplos de legislação recentemente aprovada no Congresso com essas características. Por exemplo, o piso nacional para a remuneração do magistério, a absorção dos agentes comunitários de saúde como servidores públicos com plenos direitos, as obrigações decorrentes da nova legislação de coleta e tratamento de lixo. Há mais demanda na fila, como a famosa PEC 300, que cria piso nacional para os policiais militares e bombeiros.

De uma hora para outra o prefeito ou governador descobre que tem mais metas a cumprir, mais gastos a fazer, e tem que encontrar dinheiro no orçamento para custear isso. Por que tais leis são aprovadas? Exatamente porque os grupos de pressão interessados nos benefícios que elas proporcionam (professores, agentes comunitários de saúde, organizações de defesa do meio-ambiente,etc.) conseguem se fazer ouvir e, sobretudo, conseguem fazer aprovar legislação sem um adequado estudo de seus custos e benefícios. Trata-se de clara expressão do conflito distributivo, em uma sociedade com interesses diversos e fragmentados, onde há ampla representação classista e setorial.

É preciso evoluir no sentido de se colocar restrições institucionais que impeçam o legislador federal de criar obrigações para os estados e municípios sem, concomitantemente, fornecer os meios financeiros para viabilizar a implantação de novas políticas. Isso certamente irá gerar legislação mais consequente, e abrirá caminho para soluções negociadas. Por exemplo, ainda que seja ótimo termos uma legislação muito avançada de coleta e processamento de lixo, é preciso analisar os seus custos fiscais. A eventual adoção de métodos mais avançados que os atuais não significa que precisamos ir para a fronteira tecnológica. É preciso balancear benefícios e custos, poupando-se recursos e adequando-se a ação pública às restrições fiscais dos estados e municípios. Ou seja, é bom sonhar em ter um Jaguar ou uma Mercedes, mas a realidade da conta bancária nos leva a comprar um carro mais modesto. No nosso sistema político atual, o legislador federal ordena aos prefeitos e governadores que comprem uma Mercedes, porque é isso que um grupo de pressão pediu ao Congresso. Mas não dá um tostão para ajudar a comprar o carrão.

O FPE e o FPM  e a lógica da Ação Coletiva

O Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) fornecem dois bons exemplos de como o conflito distributivo generalizado impede que se melhore a alocação dos recursos públicos.

Comecemos pelo FPE. Como é sabido, no passado recente alguns estados se sentiram prejudicados pelo fato de as cotas do FPE a que tinham direito estarem congeladas desde a década de 1990, e não mais obedecerem à regra de partilha anterior, em que se levava em conta a população e o inverso da renda per capita. Pois bem, seguindo a regra de cada um lutar pelo seu pedaço de orçamento, os estados prejudicados pela regra vigente ingressaram no Supremo Tribunal Federal com ação questionando a legislação. Pretendiam, com isso, aumentar o seu quinhão no FPE em prejuízo de outros estados, que perderiam participação.

O Supremo, como é sabido, decidiu pela inconstitucionalidade da lei e determinou ao Congresso a substituição da norma por outra cujos critérios contemplassem a variação das condições socioeconômicas dos estados ao longo do tempo. Tal norma deveria ser aprovada até 31 de dezembro de 2012. A obrigatoriedade de se discutir novos critérios, em que não havia como gerar ganhos para todos, e alguns estados certamente perderiam, abriu forte conflito. Jamais se chegou próximo a um acordo para uma solução que distribuísse os recursos de forma eficiente, que transferiria mais verbas para os estados com maior hiato entre a capacidade de arrecadação e os gastos obrigatórios.

Uma característica importante da decisão do Supremo era a de impor o risco de elevada perda a todos os estados, caso não se aprovasse uma nova legislação. Findo o prazo, o FPE deixaria de ser distribuído a todos. O correr do tempo sem se chegar a um consenso redistributivo levou os estados a se unirem em torno de uma solução para evitar a perda para todos, mantendo tudo como estava antes. Simplesmente aprovou-se uma lei que reproduzia a regra já existente, com uma transição para o novo critério que é tão lenta que vai durar mais de um século para que os novos critérios passem a valer.

A lição e o incentivo transmitidos aos estados nesse episódio é a seguinte: é muito perigoso para um ou alguns poucos entes federativos agirem sozinhos, contra o interesse dos demais, por mais justas que sejam as suas reivindicações. Abrir uma disputa entre entes federados torna todos mais vulneráveis. O risco de perder o FPE enquadrou os estados “rebeldes” e os fez aceitar a manutenção do status quo.

Com esse tipo de incentivo, fica muito difícil propor qualquer mudança de critério na partilha dos recursos que vise aumentar a equidade ou a eficiência na alocação das verbas. Esse tipo de debate coloca estado contra estado e enfraquece o grupo frente a suas disputas com o Governo Federal e com os demais grupos de pressão. Até porque, em outras disputas, em que a recompensa é tão alta que vale a pena partir para o conflito (como nos royalties e na guerra fiscal) já há grande tensão entre estados. Por isso, é preciso evitar conflito quando a recompensa não é alta, como no caso do FPE.

Situação similar ocorre com o FPM. Há muito o que melhorar na partilha desse Fundo. Atualmente, os pequenos e micromunicípios são excessivamente beneficiados, em prejuízo das cidades médias nordestinas e dos municípios situados nas periferias das regiões metropolitanas. Esse viés na distribuição dos recursos cria muita ineficiência e má alocação de recursos.

Há, por exemplo, um evidente incentivo à criação de pequenos municípios: três municípios de cinco mil habitantes recebem mais dinheiro que um município de quinze mil habitantes. Isso acaba gerando multiplicação das estruturas administrativas e perda de escala na oferta de serviços públicos.

Quando se olha a atuação das instituições representativas dos municípios no plano federal, o que se percebe é uma forte resistência a se discutir a ineficiência dos critérios de partilha do FPM. E isso é compreensível. Esse tipo de discussão vai colocar município contra município, e enfraquecer a capacidade de todos os municípios, de forma unida, participarem da luta por mais recursos junto ao governo federal. Há o justificado temor de o grupo perder força e perder espaço em uma encarniçada luta em que inúmeros grupos de pressão disputam recursos federais.

E há motivos para isso. Nos anos recentes, parte substancial do FPM (e do FPE) foi corroída pela concessão de incentivos fiscais no âmbito do IPI. O lobby dos contribuintes do IPI ganhou do lobby dos prefeitos e governadores. Gastar energia discutindo a redistribuição interna do FPM e do FPE significa ter menos tempo, energia e união para enfrentar, de forma unida, as ameaças que outros grupos de pressão colocam sobre as verbas estaduais e municipais.

Assim, o que se vê como demanda em relação ao FPM, no âmbito do Congresso Nacional, é a elevação do tamanho do bolo, aumentando-se a parcela do Imposto de Renda e do IPI destinados ao Fundo, em detrimento da parcela desses tributos destinada à União. Evita-se discutir as grandes distorções nos critérios de partilha, e o país como um todo segue perdendo com a alocação ineficiente dos recursos, sobretudo com a grande carência de verbas das cidades médias nordestinas e das periferias metropolitanas, onde se acumulam problemas sociais e faltam serviços públicos. Ao mesmo tempo, micromunicípios interioranos transformam a sua folha de pagamento na principal fonte de renda das cidades, criando legiões de pensionistas, com baixa produtividade e pouca prestação de serviço público.

Quem Ganha com a Renegociação das Dívidas junto à União?

É bem sabido que os grandes ganhadores com a renegociação proposta para a dívida refinanciada junto à União são cinco estados e um município: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Alagoas e Município de São Paulo. No entanto, há quase unanimidade entre os estados na pressão pela aprovação da renegociação. Por que estados que não estão entre os maiores ganhadores também se interessam e pressionam pela renegociação? Não seria mais razoável colocar as fichas políticas em outros temas que lhes dessem maior retorno?

A resposta pode estar em um dos argumentos já apresentados acima. Em primeiro lugar, como os custos da renegociação vão ser pagos por toda a sociedade, cada administração estadual daquelas não tão beneficiadas pela renegociação irá pagar uma parcela pequena do custo. Portanto, não há preocupação com o custo fiscal ou macroeconômico da renegociação.

Em segundo lugar, há a lógica da ação coletiva e da reciprocidade. O estado A apoia o estado B na questão da dívida, e recebe o apoio de B quando tiver uma pendência de seu interesse junto à União. Por exemplo, a autorização para a contratação de uma operação de crédito.

Em terceiro lugar, ainda que não levem a maior parte dos benefícios, os outros estados levam “algum” benefício. E pouco é melhor do que nada. Esse argumento se torna mais relevante porque o benefício de uma não renegociação seria muito indireto. O impacto imediato da renegociação é transferir recursos da União para os estados. Sem renegociação, portanto, a União passa a dispor de mais recursos. Tais recursos podem ser utilizados em obras, mas nada garante que essas obras iriam beneficiar diretamente aquele estado que está pouco endividado. Alternativamente, esses recursos podem ser poupados, melhorando o ambiente macroeconômico. Para o governador de um estado, contudo, os benefícios de uma melhora do ambiente macroeconômico são mais difíceis de serem quantificados e, pelo menos do ponto de vista de propaganda eleitoral, devem trazer menos votos (para o governador) do que a realização de determinada obra, como  uma estrada ou escola.

Esta é, mais uma (com perdão pela insistência no argumento) manifestação de uma sociedade em estado de forte conflito distributivo. Cada um tira para si o que pode, prevalece o interesse individual (de cada estado ou município) e fenece o interesse coletivo.

A falta de disciplina fiscal gera alívio de curto prazo, mas piora o cenário de longo prazo

Nos últimos anos houve evidente redução da disciplina fiscal dos estados e municípios. O Governo Federal afrouxou os controles sobre a contratação de novos empréstimos, inclusive liberando aval da União para estados e municípios com classificação de crédito muito baixa, segundo os critérios de avaliação da própria Secretaria do Tesouro Nacional. Entre 2011 e 2014, foram nada menos que R$ 23 bilhões em dívidas autorizadas para estados e municípios com classificação de crédito “C”e “D”. Autorizações que foram ratificadas pelo Senado.

Com mais acesso a crédito, os governos subnacionais precisaram fazer menor esforço fiscal para gerar os excedentes necessários ao pagamento de juros e amortização de suas dívidas vincendas. Ou seja, passaram a ter caixa não só para pagar as dívidas anteriores, como para expandir despesas. O resultado foi a queda do superávit primário de estados e municípios, de 1,15% do PIB em 2007, para 0,34% em 2013.

Isso certamente melhora a situação de curto prazo para o gestor que está no poder. Mas em nada contribui para melhorar a qualidade da gestão pública ou gerar incentivos à boa gestão fiscal.

O enfraquecimento da restrição orçamentária e a expansão do endividamento subnacional, muitas vezes estimulado pelo Governo Federal, não é bom para a gestão pública. O histórico dos anos 70 e 80 mostra que isso acaba em sobre-endividamento, governos despreocupados com qualidade de gestão e crise fiscal. Governos locais que têm uma porta aberta para conseguir mais um espaço fiscal por concessão administrativa do Governo Federal acabam relaxando na busca de eficiência e qualidade de gestão. É sempre mais fácil manter um programa ineficiente e financiar isso via dívida, do que fazer cortes em funções comissionadas, extinguir secretarias, contrariar interesses estabelecidos, cancelar programas que apresentam baixos resultados e altos custos.

A qualidade de gestão só se tornou assunto importante em governo estadual e municipal no Brasil a partir da forte restrição orçamentária imposta pelas condicionalidades da renegociação da dívida de 1997-98 e pela aprovação da lei de responsabilidade fiscal em 2000. Quando deixou de existir a facilidade de acumular dívidas impagáveis e se exigiu efetivo desembolso para pagar os débitos existentes, é que os gestores tiveram incentivos para buscar eficiência, contrariar interesses e ajustar a máquina pública.

Nesse sentido, o afrouxamento das regras de endividamento, no passado recente, prejudica a qualidade da gestão fiscal e sinalizam para mais problemas futuros e mais conflitos para alocar, no futuro, os custos do endividamento excessivo.

O que fazer?

A agenda de negociações federativas teve, ao longo de 2012 e 2013, grande oportunidade de buscar uma negociação envolvendo os principais pontos de conflito: redistribuição do FPE, renegociação da dívida com a União, redução das alíquotas interestaduais do ICMS com regulamentação dos incentivos concedidos à revelia do CONFAZ e redistribuição dos royalties. Não foi viável, porém, costurar esse acordo. No parlamento, deu-se prioridade a negociar os assuntos em separado. No espírito do aguçado conflito distributivo, cada grupo vetava ou colocava em banho-maria a reforma que lhe prejudicava, ao mesmo tempo em que tentava fazer andar a que lhe beneficiava. Ao final chegou-se a uma não-reforma do FPE, a uma proposta de renegociação da dívida com alto custo fiscal para a União e com prejuízos à segurança jurídica, que o Executivo teme em bancar. Nada se avançou na questão do ICMS e os royalties viraram questão judicial.

Não parece haver, portanto, condições políticas para um amplo pacto federativo. Até porque, como já afirmado acima, há grande insegurança acerca da credibilidade de qualquer proposta da União no sentido de compensar os perdedores. Há, também, muita insegurança em torno dos números: quem serão os perdedores? Quanto efetivamente eles perderão?

É preciso, pois, buscar uma agenda que seja responsável em termos fiscais e que una interesses dos três níveis de governo, para que se comece a gerar resultados concretos. Um bom começo seria uma emenda à constituição que proíba a criação, no plano federal, de obrigações financeiras a estados e municípios (unfunded mandates). Isso não só daria previsibilidade e segurança financeira para os gestores estaduais e municipais, como também seria um escudo contra o poder de fortes lobbies  em busca de subsídios, rendas ou privilégios salariais e previdenciários.

Outro tema que poderia unir o interesse dos três níveis de governo seria a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Afinal, os estados e municípios, por serem responsáveis pelas áreas de educação, segurança e saúde, empregam largos contingentes de servidores altamente sindicalizados. As longas greves de professores, médicos, policiais e outras categorias relevantes impõem perdas administrativas e de credibilidade aos prefeitos e governadores, ao mesmo tempo em que exigem esforço financeiro dos três níveis de governo.

Como é sabido,  há um vácuo legal na regulamentação do direito de greve no setor público, em que os servidores têm o direito constitucional de paralisarem atividades, mas não estão submetidos a regras explícitas de desconto dos dias parados, restrições a greves em áreas estratégicas ou demissão. O resultado é que greves no setor público ocorrem com mais frequência e duram mais que as do setor privado. De acordo com dados do DIEESE, em 2012 74% das horas paradas por greve corresponde a movimentos paredistas de servidores públicos (embora eles representem apenas 25% da força de trabalho total). Em média, uma greve do setor público dura o equivalente a 172 horas de trabalho, contra apenas 46 horas no setor privado.3

Os gestores públicos ficam refém desse poder desproporcional, o que tem dado aos servidores grande vantagem no conflito distributivo, garantindo remuneração elevada, além de barrar outras experiências de gestão como a terceirização da gestão de unidades de saúde, ou diferenciação de pagamento de professores em função do mérito e desempenho, por exemplo.

Da parte do Governo Federal é preciso rever a política do enfraquecimento das normas da Lei de Responsabilidade Fiscal no que diz respeito à autorização de novas operações de crédito. É preciso que haja forte restrição orçamentária para induzir estados e municípios a buscar a economia de gastos e melhora nos processos de gestão.

Em contrapartida, pode ser feito um ajuste nos contratos de dívida com a União, porém em termos menos benevolentes que os propostos no PLC 99/2013, que estipula a revisão dos contratos das dívidas de forma retroativa. Além de ser um grande prejuízo para a segurança jurídica do país, essa revisão retroativa de indexadores soa a casuísmo, visto que concentra benefícios em um único ente federado.

A substituição de indexadores, de IGP-DI por IPCA é bastante defensável, visto que as receitas estaduais e municipais têm maior correlação com o segundo que com o primeiro. A redução dos juros fixos também é admissível, visto que a faixa de 6% a 9% ao ano supera a taxa de juros de equilíbrio do passado recente. Porém nada inferior a 5% ou 4,5% deve ser buscado, visto que o país ainda tem perspectiva de um longo período de elevados juros reais pela frente. O uso da Selic como balizador dos juros, substituindo-os quando for menor que a taxa fixa contratual também é um bom seguro para os estados e municípios, porém prejudicial para a União.

Outro ponto relevante a se renegociar é a forma de pagamento do resíduo da dívida. Quando a dívida dos estados foi renegociada nos anos 1990, fixou-se um limite de até 15% da Receita Corrente Líquida dos estados para o pagamento de juros e amortizações. O que excedesse esse limite seria pago posteriormente. Por esse motivo, havia a possibilidade de, findo o prazo de 30 anos para o pagamento da dívida, parte dela ainda não teria sido quitada. Os contratos previam então que, nesse caso, haveria 10 anos adicionais para se pagar o resíduo. Em vez de um prazo fixo de 10 anos para quitação do passivo, poder-se-ia migrar para uma regra em que o ente subnacional comprometeria um percentual fixo de sua receita com o pagamento do resíduo e o pagamento se estenderia pelo prazo necessário à quitação do passivo. Com isso evitar-se-ia a situação que parece estar se configurando para alguns estados e para o Município de São Paulo de, ao final dos trinta anos da renegociação, ter um resíduo muito elevado, que consumiria mais de 20% de sua receita corrente para pagamento em dez anos. A mudança dessa regra tornaria todas as dívidas sustentáveis e reduziria o alto grau de incerteza que hoje paira sobre a saúde fiscal de longo prazo dos entes mais endividados.

A pressão gerada pela aprovação da nova regulamentação para criação de municípios, cujos projetos aprovados no Congresso foram duas vezes vetados pelo Executivo, forçará a discussão sobre os critérios de partilha do FPM. Se não houver um requisito de população mínima acima de, pelo menos, 15 mil habitantes para criação de nova jurisdição, haverá nova onda de criação de micromunicípios financeiramente inviáveis. O projeto recentemente vetado propunha limites populacionais baixos: 6 mil habitantes para o Norte e o Centro-Oeste e 12 mil habitantes para o Nordeste. Somente no Sul e Sudeste, onde são requeridos pelo menos 20 mil habitantes, é que os estímulos à fragmentação administrativa serão menos intensos.

Ainda que ao custo de divisão interna entre seus representados, as associações representativas de municípios terão que discutir os problemas das regras atuais de partilha do FPM. Há no Congresso, em estado avançado de tramitação, um projeto que corrige o problema mais básico, que é a divisão dos municípios em faixas populacionais, e que faz com que as receitas de FPM subam ou caiam muito quando um município muda de faixa. Uma mudança simples como essa, que gera evidente ganho de eficiência e equidade, tem sofrido resistência daqueles municípios que se veem como potenciais perdedores. Parece ser hora de aceitar a racionalização do FPM, sobretudo de reduzir o viés a favor dos micromunicípios, para que o municipalismo não seja enfraquecido junto à opinião pública, que não mais aceita a criação de cidades dedicadas a receber transferências.

Se as grandes reformas (do ICMS, dos royalties, etc.) estão travadas, então deve-se buscar avanço nas microrreformas, como a dos critérios do FPM e de ajustes pontuais da dívida. Com relação às grandes reformas, parece que um critério importante é garantir aos estados alguma prerrogativa de ter política fiscal própria. A viabilidade do modelo centralizado, consensual e unânime morreu com o fim do regime militar. O novo ICMS terá que dar espaço à concorrência entre estados, ainda que isso gere algum grau de ineficiência alocativa. O importante é evitar que, como ocorre hoje, um estado jogue o custo da sua política de incentivos sobre outro estado.

Ademais, o Governo Federal precisa avançar na agenda da infraestrutura, para garantir que cada estado e município possa explorar plenamente as suas vantagens comparativas. É preciso aproximar os estados mais distantes dos centros consumidores e de exportação. Para ter recursos para investimento, o Governo Federal precisa conter os gastos correntes, feitos em favor de inúmeros grupos de pressão. Um agenda comum com os estados e municípios, como a acima proposta, de limitação do poder das corporações e de grupos de pressão que pleiteiam a criação de unfunded mandates seria um bom começo.

___________________

1 Vide: Mendes, M.J. (2002) Descentralização fiscal baseada em transferências e captura de recursos públicos nos municípios brasileiros. Universidade de São Paulo. Faculdade de Administração, Contabilidade e Economia. Departamento de Economia. Tese de Doutorado; e Caselli, F., Michaels, G. (2009) Do oil windfalls improve living standards? Evidence from Brazil. NBER Working Paper Series w15550.

2 Vide Miranda, R.N. (2013) Zona Franca de Manaus: desafios e vulnerabilidades. Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal – Texto para Discussão nº 126.

3 DIEESE (2013) Balanço das greves em 2012. – Estudos e Pesquisas nº 66, maio.

 

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Sobre o Autor:

Marcos Mendes

Doutor em economia. Consultor Legislativo do Senado. Foi Chefe da Assessoria Especial do Ministro da Fazenda (2016-18). Autor de “Por que o Brasil cresce pouco?”.

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1 Comentário Comentar

  • Concordo com o autor sobre as deficiências da federação brasileira. Aliás, vou mais longe: não existe, na prática, federação, embora o preâmbulo da Constituição a consagre.
    Infelizmente, não tenho competência para comentar os detalhes técnicos em que ele se alonga.
    Mas tenho competência para afirmar o seguinte: ele está enganado quando diz que o Brasil é uma sociedade democrática. Não o é. Democracia exige liberdade, igualdade e controle do governante pelo povo, incondicionalmente. Isto não existe na Constituição do Brasil. Ela, contrariamente, suprime liberdades (de propriedade, de opinião, de trabalho, de associação, de votar e ser votado etc), protege desigualdades (de cor da pele, de idade, de gênero, de profissão, de local onde mora etc) e obriga o povo a se submeter à vontade do governante. O que a Constituição implantou foi um regime autocrático opressor. Não nos surpreende, pois foi inspirada na Constituição fascista de 1937. O fato de se votar periodicamente não configura por si só uma democracia. E, no caso do Brasil, vota-se para escolher quem será autorizado a fazer o que quiser e bem entender com o dinheiro e a liberdade do povo impunemente. Então, sugiro ao autor que passe a usar um outro qualificativo para o sistema político do Brasil. Qual? Vale tudo, menos democracia, a não ser que ele queira, na contramão do senso comum, dar definição diferente à palavra democracia.

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