mar
31
2014

As regras do FGTS e a segurança jurídica

O FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, regido pela Lei nº 8.036, de 11/05/90, foi instituído, em 1966, em substituição à estabilidade no emprego, direito restrito aos trabalhadores que permaneciam mais de dez anos na mesma empresa. É por isso que seu objetivo estrito é prover o trabalhador de uma poupança em caso de desemprego; embora, desde sua instituição, também tenha sido muito utilizado na aquisição da casa própria.

Conforme a legislação em vigor, os empregadores depositam, em contas abertas na CAIXA, em nome dos seus empregados e vinculadas ao contrato de trabalho, o valor correspondente a 8% do salário de cada funcionário.

Tais recursos, além de configurarem uma poupança do trabalhador, constituem os pilares básicos da política habitacional, de saneamento básico e de infraestrutura urbana do Estado, em especial no caso da habitação popular.

Assim, na concepção original do Fundo, fica fácil perceber o caráter social duplo do FGTS: patrimônio do trabalhador para fazer face ao desemprego e principal fonte de financiamento da política habitacional, de saneamento básico e de infraestrutura urbana brasileira.

Apesar da motivação ser louvável, existem várias distorções rondando o FGTS. A mais grave é o baixo rendimento dos depósitos que permanecem guardados no FGTS. A remuneração das contas vinculadas do Fundo corresponde à Taxa Referencial de Juros (TR) mais juros de 3% ao ano, ou seja, menos do que rende a Caderneta de Poupança. Isso torna o FGTS um dos investimentos com a mais baixa remuneração do mercado financeiro brasileiro, quase sempre abaixo da inflação.

Esse equacionamento do FGTS cria vários incentivos adversos. Como a remuneração do FGTS é baixa para o empregado e é um custo para o empregador, há incentivo para a informalidade. Os empregados e os empregadores preferem contratos informais nos quais estes pagam diretamente àqueles o valor que seria depositado no FGTS. Também há o caso em que a informalidade pode não ser completa: é comum haver contratos registrados em carteira, mas especificando uma remuneração menor do que a efetivamente paga, gerando menores recolhimentos ao FGTS.

Outra distorção vem do fato de que o empregado formal irá buscar um meio de sacar seus recursos depositados na conta vinculada o mais rápido possível, para evitar sua corrosão pela inflação. Uma maneira é provocar sua demissão, de forma a ter acesso ao dinheiro (principalmente em épocas de crescimento econômico, em que o mercado de trabalho fica aquecido). Outra pode ser adquirir imóveis, mesmo que não seja aquele que o trabalhador adquiriria caso dispusesse dos recursos em outra aplicação.

Dessa maneira, patrões e empregados não esperam que os contratos durem muito tempo. A consequência é uma alta rotatividade no mercado de trabalho. Em consequência, a força de trabalho é renovada constantemente. Dado que os trabalhadores ficarão pouco tempo no emprego, diminui o incentivo para investir no treinamento dos trabalhadores. Isso reduz a produtividade individual do empregado, o que certamente prejudica a produtividade da economia, reduzindo o potencial de crescimento econômico.

A baixa remuneração do Fundo também faz com que surjam vária iniciativas legislativas no sentido de flexibilizar as regras de saque. A movimentação da conta vinculada do trabalhador no FGTS é disciplinada pelo art. nº 20 da Lei nº 8.036 de 1990, e prevê as seguintes situações, muitas delas agregadas ao longo do tempo por novas leis:

  • aposentadoria do empregado pelo INSS;
  • falecimento do empregado, sendo o saldo pago a seus herdeiros;
  • idade igual ou superior a 70 anos;
  • despedida sem justa causa, seja unilateral, por culpa recíproca ou por força maior da empresa ou empregador individual;
  • pagamento de parte das prestações do financiamento da casa própria no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação – SFH, desde que o empregado conte com o mínimo de 3 anos de trabalho sob o regime do FGTS, que o valor bloqueado seja utilizado, no mínimo, no prazo de 12 meses, e que o valor do abatimento atinja, no máximo, 80% do montante da prestação;
  • liquidação ou amortização do saldo devedor de financiamento da casa própria, observadas as condições estabelecidas pelo Conselho Curador do FGTS – CCFGTS, dentre elas a de que o financiamento seja concedido pelo SFH e haja intervalo mínimo de 2 anos entre cada movimentação;
  • pagamento total ou parcial da casa própria ou de lote urbanizado de interesse social, não construído, desde que o empregado conte com o mínimo de 3 anos de trabalho sob o regime do FGTS e que a operação seja financiável nas condições do SFH;
  • permanência do empregado por 3 anos ininterruptos fora do regime do FGTS, podendo o saque, nesse caso, ser efetuado a partir do mês de seu aniversário;
  • extinção do contrato a termo, inclusive o dos empregados temporários regidos pela Lei nº 6.019 de 1974;
  • suspensão total do trabalho avulso por período igual ou superior a 90 dias, comprovada por declaração sindical;
  • aplicação em quotas de Fundos Mútuos de Privatização, regidos pela Lei n° 6.385, de 1976, permitida a utilização máxima de 50% do saldo disponível da conta vinculada;
  • acometimento, pelo empregado ou qualquer de seus dependentes, de neoplasia maligna, se for portador do vírus HIV, ou estiver em estágio terminal, em razão de doença grave;
  • necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural em áreas comprovadamente em situação de emergência ou            em estado de calamidade pública, formalmente reconhecidos pelo Governo Federal;
  • integralização de cotas do Fundo de Investimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FI-FGTS, criado pela Lei n° 11.491 de 2007, permitida a utilização máxima de 30% do saldo disponível da conta vinculada.

Não defendemos a existência do FGTS (como já argumentado em outro texto publicado neste site: “O FGTS traz benefícios para o trabalhador?”), uma vez que o salário efetivamente percebido pelo trabalhador poderia ser maior e, em vez de ele ser obrigado a manter seu dinheiro no Fundo, poderia utilizar o dinheiro da forma que melhor lhe aprouvesse, inclusive escolhendo uma aplicação financeira mais rentável. Se fosse dada a opção para os trabalhadores, muitos prefeririam receber, em dinheiro, uma quantia até inferior aos 8% pagos pelos empregadores, desde que pudessem aplicar livremente seus recursos.

No entanto, apesar de todas as falhas intrínsecas ao Fundo, há que se comentar outra distorção no FGTS: a interferência do Poder Judiciário nessa questão, sem que tenha havido modificação legislativa para tanto.

No dia 21 de março de 2014, foi publicado acórdão proferido pela Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência (TNU) dos Juizados Especiais Federais, no qual se declarou possível o saque do saldo do FGTS para o pagamento de pensão alimentícia, vez que se considera o rol do artigo 20 da Lei 8.036/90 “de caráter meramente exemplificativo”1, seguindo a jurisprudência do STJ. O embasamento jurídico da decisão se vinculou ao princípio da proporcionalidade e ao da dignidade da pessoa humana.

No âmbito jurídico, o FGTS foi contemplado pela Constituição de 1988 na condição de direito social, sendo, pois, um direito fundamental, que, no caso, visa à proteção do empregado.

Para proceder a essa proteção, o legislador, como já exposto, fixou regras para o saque do valor depositado pelo empregador no art. 20 da Lei 8.036/1990 e determinou que tal montante seria absolutamente impenhorável (art. 2º, §2º), o que é reforçado pelo do artigo 649, inciso IV, do Código de Processo Civil, que proíbe a penhora sobre qualquer quantia proveniente do trabalho.

Portanto, permitir tal penhora para pagamento de pensão alimentícia é um entendimento que extrapola o sentido literal da lei, em uma verdadeira interpretação contra legem (contra a letra da lei), revelando-se como mais uma expressão do ativismo judicial.

Como já apresentado em outro texto neste site (“Qual a quantidade ótima de intervenção judicial nas políticas públicas?”), a intervenção do Poder Judiciário nas opções políticas dos demais Poderes pode ser benéfica para a sociedade se os benefícios marginais decorrentes da decisão judicial não superarem os custos marginais dessa. Caso contrário, o bem-estar da sociedade se reduzirá, não sendo, portanto, aconselhável a intervenção.

No presente caso, a consolidação da jurisprudência quanto à possibilidade de saque do FGTS para pagamento de pensão alimentícia aumentará o bem-estar dos alimentandos (credores de alimentos), mas, ao mesmo tempo, diminuirá a disponibilidade de recursos do Fundo, possivelmente em grandes proporções. A questão, então, é se, ao menos, a utilização desses recursos pelo Estado tem trazido benefícios à sociedade maiores do que os aludidos acima com relação aos alimentandos, já que as repercussões diretas do FGTS sobre o mercado de trabalho não têm sido tão boas assim, como já se demonstrou.

Feita tal análise, o órgão julgador estaria apto a decidir. O grande problema se encontra no fato de não ter havido satisfatória reflexão a esse respeito. Pelo contrário, a presente uniformização de jurisprudência se pautou na recorrente e individualizada decisão de casos concretos, em jurisprudências oscilantes do STJ e em conceitos abstratos, como proporcionalidade e dignidade da pessoa humana.

Além disso, decidir que o rol do art. 20 é exemplificativo, sem qualquer indicação expressa dessa natureza na lei, significa desconsiderar todo o intrincado processo legislativo que envolve a inserção ou a retirada de incisos que contenham hipóteses para o referido saque. Por seu relevante interesse público, tal tema requer deliberação democrática, ainda que seja para reduzir a importância de cada um dos incisos que descrevem detalhadamente as possibilidades de saque do FGTS (como parece ser a consequência de se considerar o rol exemplificativo, uma vez que aumenta o incentivo para que haja mais saques).

Por outro lado, justamente sobre a ótica dos incentivos, a consolidação de tal hipótese pode gerar incentivos indesejados. A jurisprudência claramente se destina a casos em que o devedor de alimentos realmente não tem condições de arcar com o dever de pagar a pensão, ou, nas palavras da Ministra Eliana Calmon, trata-se de “medida drástica ultimada após a realização de inúmeras outras tentativas de obtenção de bens penhoráveis, diante da inexistência de bens passíveis de penhora”.2 Mas o que provavelmente ocorrerá será saques do Fundo sem a devida comprovação da incapacidade financeira, até porque a fase de busca de rendas e bens penhoráveis é desgastante, tanto para o autor quanto para o magistrado, que deseja resolver o processo mais rapidamente.

Além desse, outros desvios de comportamento tenderão a ocorrer, na medida em que os devedores com capacidade econômica tentarão fazer incidir a pensão alimentícia sobre o FGTS, pois esta seria uma forma de evitar a redução da sua renda mensal, retirando de um fundo com pouca rentabilidade os valores para pagar sua obrigação. Ou, ainda, os contribuintes do Fundo poderão simular situações de obrigação de pagamento dos alimentos para que possam fazer o saque.

Ademais, vale asseverar que o âmbito da segurança jurídica também acaba por ser afetado, diante da consideração do rol do art. 20 como exemplificativo, permitindo-se o saque em qualquer hipótese que justificável pela dignidade da pessoa humana (STJ).

Muitas outras leis podem ter sua eficácia afetada se essa decisão, relativa ao FGTS, vier a ser considerada como base jurídica para argumentar que qualquer rol de condições listados em lei sejam meramente exemplificativos. De fato, as consequências jurídicas e econômicas de tal interpretação são incalculáveis. Trata-se de significativo abalo à segurança jurídica, com impactos negativos sobre o investimento, o crescimento econômico e a geração de emprego e renda.

Um efeito colateral positivo dessa jurisprudência poderia ser a indução à extinção do FGTS (e, portanto, de todos os seus efeitos negativos sobre o mercado de trabalho) em função da descapitalização do Fundo, decorrente do uso indiscriminado para pagamento de pensões alimentícias e outras despesas que vierem a ser agregadas pelo Judiciário. Porém, o custo a ser pago pelo país, sob a forma de insegurança jurídica, parece ser muito alto.

________________

1 Processo nº 5000194-75.2011.4.04.7211 no Conselho da Justiça Federal

2 Recurso em Mandado de Segurança nº  26.540/SP, relatora Min. Eliana Calmon.

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Sobre o Autor:

Fernando B. Meneguin e Débora Costa Ferreira

Fernando B. Meneguin é Doutor em Economia, Mestre em Economia do Setor Público e editor do Brasil, Economia e Governo. Débora Costa Ferreira é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado.

3 Comentários Comentar

  • Eu só gostaria de ver algum estudo empírico testando essas hipóteses. Para nós, que conhecemos bem o problema e comparativos de rendimentos, até podemos colocar o FGTS e nossa função utilidade, mas o agente comum não sabe ao menos o que é a TR, quanto mais o rendimento do FGTS e as suas alternativas de investimento. Não me parece um fator de grande negociação salarial a arbitragem FGTS vs outros investimentos.

    • João.
      A informação de que o FGTS remunera menos que a caderneta de poupança é amplamente divulgada. Por mais que as pessoas não tenham conhecimento teórico, todos sabem quando seu dinheiro é afetado.
      Podemos também fazer uma analogia com a Física: não precisamos saber exatamente a distância em que um carro se encontra de nós, a velocidade com que ele se aproxima e sua aceleração para decidir se podemos ou não atravessar a rua com um risco mínimo de ser atropelado.
      Acredito ser o mesmo com os trabalhadores, eles têm uma noção razoável para saber que o FGTS está impondo um custo de oportunidade alto a eles e vão tomar suas decisões com base nisso! Tanto que a primeira reivindicação dos trabalhadores quando deixam um emprego é como sacar o montante acumulado na sua conta vinculada do FGTS.
      Obrigado pelo comentário.
      Abraço.

  • […] O papel dos incentivos, como sempre, destaca-se na análise e é por isto que eu recomendo o texto e…. Mas há mais lá. Há bons motivos para você acreditar que o melhor seria não existir mais FGTS, conforme está aí no título. […]

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