nov
11
2013

O Poder Público deve punir os “crimes de bagatela”?

Há quem sustente que quando os delitos são praticados sem violência nem ameaça grave à vítima (o exemplo mais comum são os crimes contra o patrimônio, como furtos) e o valor da coisa usurpada for baixo, falta à conduta do agente a materialidade do crime (tipicidade material), razão pela qual seria necessária a absolvição1.

Dados coletados no Supremo Tribunal Federal demonstram que o reconhecimento do princípio da insignificância aumentou substancialmente de 2004 a 2009. Em 64,7% dos Habeas Corpus acerca desta matéria no período analisado foi concedida a ordem, reconhecendo-se a insignificância do bem (em regra, fala-se aqui em crimes relacionados a valores de até R$ 700,00, quando contra o patrimônio privado, e até R$ 5.000,00, quando contra a Administração Pública)2.

Ocorre que, sem expressa previsão legal, tais casos continuam a ser submetidos a todo o longo rito processual da justiça criminal. Em tais casos, apenas as despesas do Tribunal já são, na maioria dos casos, suficientes para tornar o processo deficitário em relação ao bem protegido.

A título de exemplo, o valor anual de um processo judicial, para o Tribunal de Justiça do DF e Territórios, fica em torno de R$ 1.613,52, em média, segundo os relatórios estatísticos do CNJ para o ano de 2011/20123. Acrescentados os custos com o Ministério Público (acusação), polícia judiciária e com advogado ou defensoria pública (que, segundo os dados analisados pela pesquisa no STF, chega a atuar em 82,7% desses casos), o valor deve ser substancialmente maior – especialmente quando se leva em consideração que um processo criminal leva, em média, 1.430 dias ou 3 anos e 11 meses, desde os fatos até o trânsito em julgado da sentença – o que facilmente já superaria a marca superior da insignificância4.

E, finalmente, quando se alcança o trânsito em julgado, o resultado final tem chances muito relevantes de ser a impunidade – porque, como já visto, o reconhecimento da insignificância é maior que a sua rejeição. Ainda quando há punição, em virtude da quantidade de pena, dificilmente esta se dará no campo próprio do direito penal (a privação de liberdade), mas provavelmente atingirá a restrição de direitos ou prestação de serviços5.

Assim, há uma situação de dupla ineficiência – na alocação dos recursos e na alocação de responsabilidades.

O custo esperado para o delinquente – obtido como o produto entre a probabilidade de ser pego e a severidade da punição6, nestas situações, é muito baixo, próximo de zero. Isso porque a expectativa de uma condenação efetiva é mínima, justamente devido à aplicação da insignificância, a despeito da pena prevista em abstrato para o delito ser elevada7. Assim, toda a responsabilidade para evitar o delito acaba repousando sobre aquele que, frequentemente, tem menores condições de evitá-lo: a vítima.

Por outro lado, o custo estatal para a prevenção do delito está muito distante do ponto ótimo, já que o sistema penal gasta muito e pune pouco, resultando em prevenção ineficiente a custos altos.

Em outro ponto de vista, vislumbra-se que, estando todos os agentes devidamente informados, a estratégia dominante tanto do delinquente como da polícia serão convergentes.

O potencial criminoso, de fato, tem incentivos para a prática do delito, visto que sua expectativa de punição se aproxima do zero, ainda que seja descoberto. A polícia, por outro lado, sabe que a investigação, nesse caso, não é recompensadora, porque ao fim a Justiça deverá absolver o agente pela insignificância. Dessa forma, sua estratégia dominante é não investigar. Tem-se, assim, um cenário criminal absolutamente desfavorável à punição do delito.

O que fazer, então, com essa espécie de criminalidade? Três cenários, no mínimo, se descortinam.

A primeira possibilidade, e a menos racional, é manter-se o estado de coisas. Há uma pequena contenção da criminalidade, que se supõe dever-se mais à adesão voluntária à legislação, bem como ao custo simbólico do processo penal e da pecha de desonesto que recai sobre o agente, do que propriamente do receio do aprisionamento.

Nessa hipótese, as vítimas que podem organizam-se para prevenir os delitos (como o comércio, que instala alarmes, contrata vigilantes, instala câmeras de CFTV, etc.), repassando os custos do crime para terceiros ou assumindo-os, enquanto as demais apenas contam com a sorte. O Poder Público investiga pouco e, quando investiga, gasta demasiado para, ao final, atingir uma sentença de absolvição, ou, quando muito, de prestação de serviços.

A segunda possibilidade é tornar efetiva a punição dos agentes, abandonando o princípio da insignificância. Tal medida, embora possa ser eficaz para reduzir a ocorrência dos delitos, resultando no aumento da prevenção, tende a tornar-se ainda mais dispendiosa que o processo penal – já que os custos de aprisionamento são elevadíssimos no Brasil8, e a eficácia do sistema (em termos de prevenção especial) é muito baixa.

Finalmente, pode-se cogitar da descriminalização do delito em determinados patamares de valor, aplicando-se sanções como multas, prestação de serviços ou indenizações. As vantagens dessa opção são a provável redução dos custos para apuração da infração e da menor necessidade de lastro probatório (já que não se exigem nestes ramos de direito o mesmo grau de certeza do direito penal), o que resultaria em prevenção mais eficaz e a menor custo – logo, mais eficiente.

A sanção resultaria diminuída, mas essa redução seria compensada pelo aumento da expectativa de ser pego, aumentando o custo esperado para o delinquente.

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1 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. Vol. I. Niterói: Impetus, 2009. pp. 63-69.

2 BOTTINI, Pierpaolo Cruz (coord.) et al. O Princípio da Insignificância nos crimes contra o patrimônio e contra a ordem econômica: análise das decisões do Supremo Tribunal Federal. USP, FAPESP, MJ, 2011. Disponível em http://blogdovladimir.files.wordpress.com/2011/08/pesquisa-sobre-o-princc3adpio-da-insignificc3a2ncia.pdf. Acesso em 13/9/2013.

3 Cálculo aproximado, dividindo-se a despesa total anual do TJDFT pelo número total de processos no período. In: BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números, 2011. Disponível em http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/rel_completo_estadual.pdf. Acesso em 13/9/2013.

4 BOLLMANN, Vilian. Medindo o tempo no processo penal. Monografia. Disponível em http://www2.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/apg_VilianBollmann.pdf. Acesso em 13/9/2013.

5 De acordo com o artigo 44 do Código Penal Brasileiro, desde que a pena não seja superior a quarto anos, entre outras condições, pode-se substituí-la por pena restritiva de direito.

6 BECKER, Gary S. Crime and punishment: an economic approach. Essays in the Economics of Crime and Punishment. UMI, 1974. Disponível em http://papers.nber.org/books/beck74-1. Acesso em 13/9/2013.

7 Pena de um a quatro anos na modalidade simples, e de dois a oito anos na modalidade qualificada do delito.

8 Informações divulgadas recentemente na imprensa dão conta da cifra de R$ 40.000,00 anuais por preso no Brasil. Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/numeros-espantosos-revelam-que-alem-de-pessimo-nosso-sistema-carcerario-nao-recupera-ninguem-e-custa-muito-caro-governo-gasta-mais-com-detento-do-que-com-estudante-de-universidade/ Acesso em 13/9/2013.

Sobre o Autor:

Hugo Souto Kalil

Mestrando em Direito Constitucional no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado do Senado Federal

5 Comentários Comentar

  • “O potencial criminoso, de fato, tem incentivos para a prática do delito, visto que sua expectativa de punição se aproxima do zero, ainda que seja descoberto. A polícia, por outro lado, sabe que a investigação, nesse caso, não é recompensadora, porque ao fim a Justiça deverá absolver o agente pela insignificância. Dessa forma, sua estratégia dominante é não investigar. Tem-se, assim, um cenário criminal absolutamente desfavorável à punição do delito.”

    Isso resume, infelizmente, perfeitamente a acomodação atual dos “corruptos” do alto escalão Brasileiro!

    Parabéns pelo artigo!

  • sobre a terceira hipótese: como se aplicaria multa ou pena de prestação de serviços comunitários sem um processo e uma sentença, com todos os custos envolvidos? a melhor solução, portanto, é abandonar o princípio da insignificância e, o mais importante de todos, dar celeridade ao processo penal dando autoridade ao juiz de primeira instância e acabando com essa miríade de recursos que só fazem aumentar o custo do processo e sequer oferecem mais justiça aos suspeitos.

  • Prezados Fabiano e Sergio,

    Muito obrigado por seus comentários e, particularmente ao Fabiano, pelo elogio, certamente imerecido.

    Com relação ao seu comentário, Sergio: entendo que a segunda opção possa se revelar vantajosa – se a eficácia da prevenção de novos delitos obtiver um aumento significativo, resultando em maior benefício geral – nesse caso, o custo do encarceramento de poucos poderia ainda ser economicamente viável em decorrência da economia proporcionada pela prevenção de novos delitos.

    A terceira opção, no entanto, poderia sim fugir dos custos processuais, no caso de instalação de instâncias administrativas. O custo do processo penal decorre justamente da qualificação exigida dos atores (juiz, promotor, advogado, delegado, etc). Em caso de um procedimento administrativo simplificado (decidido por uma autoridade qualquer, quem sabe um juiz de paz), os custos cairiam sensivelmente.

    Em Portugal fala-se bastante no direito de mera ordenação social como substitutivo do processo penal em casos mais simples. Quem sabe não possa ser uma resposta?

  • Primeiramente, parabéns pelo artigo! É uma excelente análise!

    Mas me suscitou duas dúvidas:

    1. “O custo esperado para o delinquente – obtido como o produto entre a probabilidade de ser pego e a severidade da punição”, sei que esta fórmula veio de renomados estudiosos da economia do crime, mas não faltaria para a caracterização do crime o elemento do custo simbólico do processo penal (fator indicado adiante neste texto) somado ao tempo e esforço demandados demandados por um processo, junto ao custo emocional de litigar (tudo isso multiplicado pela probabilidade de ser instaurado um processo, claro)?

    2. Não seria interessante, ou até mesmo necessário, diante de alternativas tão absurdamente contrapostas, fazer considerações de justiça? Concordo com o caminho adotado tanto por questões pragmáticas (baseadas em sua impecável análise econômica do direito) tanto por questões de justiça, mas estas estão ofuscadas dentre as opções. No final, não creio que devamos escolher criminalizar ou não indivíduos somente pelos custos ou por nossa habilidade em efetivar a prisão. O custo moral para os envolvidos chega muito além da condenação. Claro que o risco dessas considerações é a perda da pureza científica da análise, mas de que adianta a eficiência em cumprir o injusto?

    De modo algum desestimo seu trabalho, que é de primeiríssima qualidade. Inclusive, como já afirmei, endosso a alternativa indicada. Os questionamentos vieram mais para tentar contribuir com este bom trabalho que para criticá-lo. Se possível gostaria de receber a resposta também por email.

    Grato!

  • Discussão bem interessante, parabéns.
    Na minha opinião, o estado não pode simplesmente ignorar um delito, se bem que na prática muitas vezes isso acontece atualmente.
    Por outro lado, quem foi pego atuando em pequenos delitos deveria ter penas diferenciadas, prestação de serviços comunitários por exemplo, e apenas em caso de reincidência ir ao sistema prisional, que na melhor das hipoteses deveria ter um setor separado de crimes graves.

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