out
14
2013

Dívida líquida do setor público decrescente significa política fiscal sob controle?

A dívida líquida do setor público (DLSP) como proporção do PIB prossegue em sua longa trajetória de queda, ainda que com momentos de estabilidade ou aumento. Isso significa que a política fiscal está sob controle e que não há necessidade de correção? A resposta é negativa. A DLSP não está caindo por causa da política fiscal. Na verdade, há pelo menos dois anos que a política fiscal é fator de pressão de alta sobre a DLSP. O indicador só continua caindo por conta da ação de outros fatores os quais mais que compensam o efeito da política fiscal.

A afirmação acima pode ser comprovada recorrendo-se à trajetória de outro indicador de endividamento público. Trata-se da dívida fiscal líquida (DFL), como proporção do PIB. Esse indicador mostra qual seria a trajetória da dívida líquida do setor público caso ela fosse afetada apenas pela política fiscal. A expressão quantitativa da política fiscal é o déficit público, entendido como as despesas menos as receitas do setor público. A variação da DFL em certo período corresponde ao déficit público desse período, pois exclui qualquer outro fator que não tenha relação com a condução da política fiscal, mas afeta o endividamento público. Aferida em relação ao PIB, a DFL depende ainda da evolução do produto da economia. Caso o crescimento da economia seja positivo, a estabilidade do indicador é compatível com algum déficit público, mas quanto menor o crescimento, menor esse déficit.

O Gráfico I abaixo mostra a evolução da DLSP e da DFL desde dezembro de 2010, ambas como proporção do PIB. Os números são do Bacen (http://www.bcb.gov.br/?COMPDLSP). Conforme visto, a DLSP manteve a trajetória de queda em todo o período considerado, ainda que intermediada por momentos de estabilidade ou aumento. Já a DFL atingiu o seu menor número em julho de 2011, com 31,6% do PIB. Daí em diante deixou de cair e, a partir de maio de 2012, ingressou em clara tendência de aumento, chegando a 33,4% do PIB em agosto de 2013, último dado disponível.

Qual a razão da trajetória oposta dos dois indicadores? A resposta no caso da DFL só pode ser uma, tendo em vista a definição dada acima: a evolução do déficit do setor público.

Essa variável costuma ser dividida em duas partes: juros líquidos devidos e superávit primário (receitas não financeiras menos despesas não financeiras). Dado o tamanho da dívida líquida e o nível de taxa de juros, o esforço fiscal representado pelo superávit primário costuma ser inferior aos juros líquidos devidos pelo setor público, resultando em déficit público. Ocorre que nos últimos dois anos, o esforço fiscal como proporção do PIB vem caindo, sem que os juros devidos caiam na mesma proporção. O resultado é o aumento da dívida. O Gráfico II mostra as três variáveis no acumulado dos últimos doze meses, como proporção do PIB. O superávit primário aparece como número negativo.

Em julho de 2011, o déficit público estava em cerca de 1,9% do PIB, resultado de superávit primário de 3,7% do PIB e de juros líquidos devidos de 5,6% do PIB, situação que pode ser considerada satisfatória. Entretanto, em agosto de 2011, houve uma guinada da política fiscal e monetária sem razões aparentes. No âmbito da política fiscal, o superávit primário passou a cair (no Gráfico II, tornou-se menos negativo), ainda que com algumas interrupções.

Como parte relevante da dívida pública é corrigida pela taxa Selic, os juros líquidos devidos acompanham em boa medida os ajustes promovidos na referida taxa no âmbito da execução da política monetária. Em agosto de 2011, teve início um período de sucessivas reduções na taxa Selic, que caiu de 12,5% ao ano para o piso histórico de 7,25% ao ano, em outubro de 2012. A evolução dos juros líquidos devidos no Gráfico II reflete com clareza essa mudança na política monetária.

Assim, o déficit público subiu, acompanhando o superávit primário, mas amortecido pela trajetória dos juros líquidos devidos. O problema é que a taxa Selic voltou a subir em abril de 2013, como resposta ao recrudescimento da inflação. Em consequência, a evolução dos juros líquidos deixou de compensar parte da redução do superávit primário, podendo inclusive se somar a esse como fator de aumento do déficit público.

A situação em agosto de 2013, último mês com dado disponível, é de déficit público de 3,12% do PIB, aumento de 1,26 ponto percentual do PIB em relação a julho de 2011, fruto da redução de 1,91 ponto do superávit primário e da queda de 0,65 ponto percentual dos juros líquidos devidos.

A DFL subiu, acompanhando esse movimento do déficit público. Conforme visto, esse indicador alcançou o seu menor nível em julho de 2011 e, com a guinada da política econômica no mês seguinte, ingressou em trajetória de elevação daí em diante.

Mas o que explica que a DLSP tenha continuado a cair, mesmo dois anos após a mudança da política econômica? É que a DLSP, além de influenciada pela política fiscal, depende também de outros fatores, notadamente eventos patrimoniais e cambiais.

Os chamados fatores patrimoniais incluem, por exemplo, a venda de um ativo ou o reconhecimento de uma dívida. Quando o setor público amortiza dívida com a venda de um ativo ou então quando a dívida sobe porque o setor público reconhece certo passivo, a dívida líquida muda, mas não por razões estritamente fiscais.

Já os fatores cambiais refletem os efeitos de alterações na taxa de câmbio na parcela do passivo e do ativo do setor público denominada em moeda estrangeira, notadamente o dólar. Quando, por exemplo, um ente deve ao exterior, em dólar, a sua dívida em reais aumenta quando há desvalorização cambial (aumento do preço do dólar). Já quando o ente é credor em dólar, como ocorre no caso da União, em função do excesso de reservas internacionais em relação à sua dívida externa, o valor em reais do ativo aumenta quando há desvalorização cambial. Nesse último caso, a dívida líquida cai, pois corresponde à dívida bruta deduzida do ativo. No caso de valorização cambial, há o movimento inverso. Assim, as variações cambiais afetam a dívida líquida não por razões estritamente fiscais, tal como ocorre com os ajustes patrimoniais.

O Gráfico III mostra a variação acumulada da DLSP em pontos percentuais do PIB, desde dezembro de 2010 até agosto de 2013, em três situações: 1) a situação que de fato ocorreu; 2) a situação caso não tivesse sofrido a ação das mudanças cambiais; e 3) a situação caso não tivesse sofrido a ação das mudanças cambiais, nem dos ajustes patrimoniais. Essa terceira situação retrata, na verdade, a evolução da DFL, pois esse indicador corresponde justamente à DLSP sem a ação dos dois fatores.

O Gráfico III mostra que, sem o efeito das mudanças cambiais, a trajetória da DLSP teria sido muito próxima da trajetória da DFL. No período considerado, a DLSP teria subido 0,6 ponto e não caído 5,3 pontos, como de fato ocorreu. Já a DFL subiu 0,9 ponto percentual. Dito de outro modo, as mudanças cambiais explicam 5,9 pontos da diferença de 6,2 pontos entre a variação da DLSP e a variação da DFL.

O que explica a importância da variação cambial como fator determinante da trajetória da DLSP nos últimos dois anos? A presença de uma situação inédita: grande volume de reservas internacionais e desvalorização do real frente ao dólar. As reservas passaram de US$ 37 bilhões em dezembro de 2002 para um saldo cerca de dez vezes maior dez anos depois. Na maior parte do período, entretanto, houve valorização cambial. A tendência de desvalorização do real começou em setembro de 2011, o que, ao elevar o valor em real das reservas internacionais, diminuiu a dívida líquida. No Gráfico III, pode-se ver que no referido mês as trajetórias da DFL e da DLSP começaram a se distanciar.

É claro que a dívida externa do setor público, mensurada em reais, aumenta com a desvalorização cambial, mas o aumento das reservas foi de tal monta que o setor público passou a ser credor externo em termos líquidos já em setembro de 2006.

Em síntese, a partir da guinada em agosto de 2011, a política fiscal tem atuado para elevar a DLSP, e não reduzi-la. Esse indicador, contudo, continua caindo por conta do efeito da desvalorização cambial sobre o valor em real das reservas externas. Ao mesmo tempo, a DFL sobe, por retratar apenas o efeito da política fiscal sobre o endividamento público.

O efeito da desvalorização cambial sobre a DLSP não é ruim. Trata-se de algo similar a um ganho de capital que eleva o valor do ativo frente ao passivo existente. Mas o tamanho do ganho depende do nível em que a taxa de câmbio se acomodará no Brasil, o que é muito difícil de prever. É possível que ela fique bem acima dos atuais R$ 2,20 ou que fique nesse patamar por um bom tempo. Nesse último caso, a manutenção da atual política fiscal elevará a DLSP, a exemplo do que já faz com a DFL.

De qualquer modo, não parece razoável que a trajetória do endividamento público fique a mercê de uma variável tão fora do controle como a taxa de câmbio. O superávit primário é o instrumento adequado para controlar o endividamento público, em que pese a resistência política em utilizá-lo. Ademais, além de contribuir para a sustentabilidade das contas públicas, a política fiscal atua sobre a demanda agregada da economia e, por esse meio, ajuda a controlar a inflação e o déficit nas transações com o exterior.

Pode-se argumentar que o efeito da política fiscal sobre o aumento do endividamento nos últimos dois anos não foi elevado, já que a DFL subiu 1,8 ponto percentual do PIB desde julho de 2011. É preciso observar, entretanto, os acontecimentos nos últimos meses. A taxa Selic voltou a subir e ainda não está claro onde chegará frente aos desequilíbrios macroeconômicos do país. Um novo período na trajetória do déficit público pode estar se iniciando, de coexistência entre superávit primário decrescente e juros líquidos devidos crescentes, algo pouco comum na série disponível.

As expectativas quanto ao futuro da economia brasileira estão sendo negativamente afetadas por conta de inflação elevada, baixo crescimento econômico e déficit crescente nas transações correntes. O pessimismo aumentaria ainda mais se a esses indicadores se juntasse a reversão da tendência de queda da DLSP, o que não acontece desde o final de 2002.

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Sobre o Autor:

Josué Pellegrini

Doutor em Economia pela Universidade de São Paulo. Consultor Legislativo do Senado Federal.

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2 Comentários Comentar

  • […] Sobre o indicador Dívida Líquida do Setor Público, DLSP, há uma clara tentativa de ludibriar que houve uma redução da Dívida Pública brasileira. Não houve! A Dívida Pública mais que triplicou nesse período indicado na tabela, de R$ 0,7 trilhão para R$ 2,7 trilhões aproximadamente. Para entender como o PT conseguiu essa “mágica” deve-se saber o conceito da DLSP. Para ser bem sucinto, usamos a definição do Tesouro Nacional: “DLSP refere-se ao total das obrigações do setor público não financeiro, deduzido dos seus ativos financeiros“. Ou seja, a trajetória de queda da DLSP não está relacionada à uma suposta austeridade nos gastos do governo, mas em outros fatores que o índice captura como câmbio, por exemplo. Tudo está mais explicado e esmiuçado no post do prof. Josué Pellegrini. […]

  • […] DFL, segundo demonstra o economista Josué Pelligrini, vem crescendo continuamente desde abril de 2011. Como o PIB tem tido uma expansão cada vez menor […]

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