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12
2013

Como promover a renovação das cidades?

As grandes cidades brasileiras apresentam um padrão de desenvolvimento urbano bastante conhecido: de um lado, expansão horizontal excessiva, de baixa densidade e com pouca infraestrutura; de outro, degradação e decadência das áreas centrais, que perdem população apesar de estarem dotadas de infraestrutura.

Praticamente todos os estudiosos de questão urbana e planejadores urbanos afirmam que esse quadro deve ser revertido, procurando-se fazer com que as cidades cresçam “para dentro”, de modo a reduzir os custos de urbanização, tornar os centros históricos menos perigosos e aumentar a densidade demográfica da cidade, condição indispensável para viabilizar economicamente o transporte coletivo e o deslocamento a pé ou de bicicleta.

Políticas voltadas para a revitalização de áreas degradadas têm sido adotadas em diversos municípios pelo menos desde a década de 1980 e diretrizes nesse sentido constam de todos os planos diretores, cuja adoção foi tornada obrigatória a partir da Constituição.

A fim de viabilizar esse tipo de intervenção, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), principal lei federal disciplinadora da política urbana, criou a figura da “operação urbana consorciada”, definida como “conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental” (art. 32, § 1º).

Instituída a operação, proprietários podem se beneficiar de alterações nas normas de uso do solo, em troca de contrapartidas a serem pagas ao Poder Público. A lei criou uma forma inovadora de contrapartida, que é o certificado de potencial adicional de construção (CEPAC), título emitido pela prefeitura e que tem que ser adquirido pelo proprietário interessado em aumentar o aproveitamento de seu lote. Os recursos arrecadados têm que ser obrigatoriamente investidos na área da operação.

Os Municípios de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba já fizeram uso do CEPAC, cuja emissão tem que ser registrada perante a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e arrecadaram acima de R$ 5 bilhões de reais, o que demonstra a adesão do mercado a esse mecanismo.

Apesar de todos esses esforços, o fato é que os resultados ficam sempre muito aquém do necessário. As cidades apresentam extensas áreas devidamente urbanizadas, mas com densidades muito baixas e esse quadro não se altera mesmo quando se oferecem incentivos urbanísticos, tributários e financeiros aos proprietários e empreendedores. Ao contrário do que muitos imaginam, essa baixa densidade não se deve majoritariamente aos chamados “vazios urbanos”, ou seja, glebas e lotes ociosos, mas a um padrão de ocupação de lotes por casas isoladas ou “unifamiliares” ou por prédios sem adequada conservação.

A explicação para essa permanência do status quo reside na dificuldade que tem o mercado de reunir os lotes necessários para fazer uso de índices construtivos mais elevados. Via de regra, a construção de um prédio depende da formação de um novo lote a partir do remembramento de diversos lotes unifamiliares, pois quanto maior a altura da edificação, maiores devem ser os recuos desta com relação às divisas do lote. Esse tipo de exigência decorre da necessidade de assegurar adequada ventilação e insolação aos apartamentos, aos vizinhos e à rua.

Nessas situações, cada proprietário de imóvel a ser remembrado tem poder de veto sobre todo o empreendimento, o que aumenta seu poder de barganha perante possíveis incorporadores, que precisam adquirir um conjunto de imóveis contíguos como condição para o remembramento. Ante a dificuldade de concluir negociações tão complexas, eles preferem buscar terrenos maiores, ainda que mais distantes, o que explica, em grande medida, a prevalência do crescimento urbano horizontal sobre o vertical.

Os economistas estudam esse tipo de situação como um “problema de retenção” (holdout problem), cuja solução mais comum é a desapropriação. Para promover operações de urbanização ou reurbanização, o Poder Público teria que desapropriar amplas áreas a serem renovadas, para remembrar e relotear seus terrenos e em seguida revender os novos lotes a empreendedores interessados em construir as edificações previstas no planejamento urbanístico da região.

Um caso conhecido de reurbanização, realizado pela Empresa Municipal de Urbanização (EMURB), empresa pública do Município de São Paulo, ocorreu na década de 1970, no entorno das estações Santana e Jabaquara do Metrô. Na época, houve polêmica quanto ao emprego da desapropriação como instrumento para a produção de imóveis que não são incorporados ao patrimônio público, mas revendidos a terceiros (denominada de “desapropriação urbanística”). Em apertada votação (6 a 5), o Supremo Tribunal Federal acabou por confirmar sua constitucionalidade (RE 82.300).

Mais comuns que as reurbanizações são as urbanizações. Um tipo comum de urbanização promovida pelo Poder Público são os chamados “distritos industriais”, que nada mais são que loteamentos projetados para o uso industrial. Para realizá-los, os municípios desapropriam glebas e posteriormente alienam os lotes para empresas interessadas em instalar fábricas no local.

Uma dificuldade inicial desse tipo de iniciativa, especialmente quando realizada em áreas já urbanizadas, reside na maneira como se pratica a desapropriação no Brasil. Apesar de a Constituição condicionar a transferência do imóvel ao pagamento de uma indenização “prévia e justa”, o Decreto-Lei 3.365, de 1941, que disciplina a desapropriação por utilidade pública, admite a “imissão provisória na posse”, mediante o depósito de um valor avaliado unilateralmente pelo Poder Público, para que só depois se discuta em contraditório entre as partes a avaliação do bem, que acaba sendo invariavelmente mais alta. Os proprietários desapropriados não só correm o risco de não receber o valor correto por seus imóveis, como ainda incorrem no custo de transação envolvido na disputa com o Poder Público. Some-se a isso o fato de que o recebimento da diferença entre o depósito inicial e a avaliação final depende não apenas do trânsito em julgado do acórdão, mas também da disposição do Estado em pagar o chamado “precatório”, que é o título resultante do trânsito em julgado, o que pode levar décadas.

Para compensar o prejuízo em que incorre o desapropriado, a jurisprudência criou os conceitos de “juros compensatórios” e de “juros moratórios”, que são calculados sobre a diferença entre o depósito inicial e a avaliação final e aplicados retroativamente ao momento da imissão provisória na posse. Na prática, a desapropriação dá origem a um “esqueleto”, ou seja, uma dívida não contabilizada, de valor impreciso, que terá que ser paga em um futuro distante.

Em razão dessas distorções, projetos que envolvam desapropriações costumam ser intensamente combatidos pelos proprietários de imóveis, tanto política quanto judicialmente, o que muitas vezes os inviabiliza.

A ironia desse quadro reside no fato de que, na maioria dos casos, empreendimentos desse tipo são lucrativos, pois os novos lotes são muito mais valiosos que os antigos. Haveria condições financeiras, portanto, para pagar aos proprietários indenizações atrativas, que poderiam ser aceitas amigavelmente, economizando os vultosos recursos necessários ao pagamento de juros compensatórios e moratórios. Isso desafogaria o Judiciário e aumentaria a aceitação política e a segurança jurídica dos empreendimentos.

Note-se, ainda, que, por serem auto-sustentáveis financeiramente, esses empreendimentos não dependem de recursos públicos, mas de um modelo institucional que viabilize seu financiamento pelo mercado financeiro e de capitais. Sua viabilidade econômica é ainda maior quando associados a projetos de infraestrutura capazes de gerar valorização imobiliária para o seu entorno, como as estações de Metrô. A incorporação do reparcelamento do solo a projetos de infraestrutura urbana permitiria ao Poder Público recuperar grande parte dos recursos públicos despendidos, além de viabilizar um melhor aproveitamento urbanístico dos equipamentos construídos. No Japão e em Hong Kong, por exemplo, grande parte dos custos do transporte ferroviário de passageiros é financiada dessa maneira.

Em muitos países, operações desse tipo, denominadas “land readjustment” ou “reparcelamento” são realizadas por meio da permuta consensual de imóveis antigos por outros novos, a serem produzidos no âmbito do empreendimento. Ainda que estes possam ser menores que aqueles, serão mais valiosos, o que torna o empreendimento atrativo para os proprietários. Em geral, a legislação exige a adesão de uma maioria qualificada de proprietários, que é obtida no decorrer de extensas negociações, como condição para o prosseguimento da operação. Obtida essa maioria, os que se recusarem a aderir serão desapropriados.

O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 2001) prevê um instituto jurídico semelhante, denominado “consórcio imobiliário”, que é definido como “forma de viabilização de planos de urbanização ou edificação por meio da qual o proprietário transfere ao Poder Público municipal seu imóvel e, após a realização das obras, recebe, como pagamento, unidades imobiliárias devidamente urbanizadas ou edificadas” (art. 46, § 1º). Exige-se, no entanto, que o imóvel original seja avaliado segundo seu valor venal para efeito de IPTU, que tende a ser subestimado, o que torna o instrumento completamente ineficaz.

Alguns países oferecem aos proprietários, alternativamente à permuta de imóveis, uma sociedade no empreendimento, valendo a entrega do imóvel como aporte de capital. Observe-se que sociedades de propósito específico (SPE) são muito empregadas no financiamento de projetos de infraestrutura, pois permitem uma clara segregação dos riscos e da contabilidade do negócio,  sendo sua constituição facultada no caso de concessões (art. 20 da Lei nº 8.987, de 1995) e exigida no caso de PPPs (art. 9º da Lei nº 11.079, de 2004).

Nada impede que modelo semelhante seja adotado na área do desenvolvimento urbano, sob a forma de sociedade anônima ou de fundo de investimento imobiliário, facultando-se aos os proprietários a participação no seu capital mediante entrega dos imóveis necessários à operação.

Além dos proprietários, também poderiam participar do capital dessas entidades o Poder Público, por meio de logradouros desafetados, dinheiro, CEPACs e títulos públicos, e investidores externos, inclusive mediante abertura de capital em bolsa de valores. Outros meios de financiamento seriam a venda ou locação de imóveis futuros “na planta” e a securitização de recebíveis, técnicas de financiamento de projetos amplamente praticadas no mercado.

Essas entidades devem ter o poder de desapropriar os imóveis de que necessitem, condição indispensável à resolução do problema da retenção. Para isso, deverão assumir a condição de sociedade de economia mista, criada por lei, ou de concessionária, selecionada por licitação. O importante é a desapropriação, inerentemente conflituosa, seja utilizada apenas em último caso, preferindo-se sempre soluções consensuais.

A fim de que essas soluções sejam alcançadas, é preciso romper com o preconceito que qualifica qualquer forma de favorecimento aos proprietários de imóveis como “especulação imobiliária”. Acordos têm que ser benéficos para todas as partes. A proibição de que se pague, permute ou indenize um imóvel por valor superior ao de mercado resulta na impossibilidade de uma solução amigável. Nos países em que se pratica o “land readjustment”, as pessoas ficam felizes quando recebem a notícia de que haverá um projeto de renovação urbana nos bairros em que moram. No Brasil, essa mesma notícia seria recebida como tragédia.

Já avançamos muito na concessão de infraestruturas à iniciativa privada. É chegada a hora de fazer o mesmo na área do desenvolvimento urbano.

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Sobre o Autor:

Victor Carvalho Pinto

Doutor em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo; consultor legislativo do Senado Federal; e autor do livro “Direito Urbanístico: Plano Diretor e Direito de Propriedade”, em 4ª edição (Revista dos Tribunais, 2014).

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