set
24
2012

O que é desenho de mecanismos e qual a importância de seu estudo?

Em 1994, a Comissão Federal de Comunicações dos Estados Uni­dos (órgão regulador das telecomu­nicações) iniciou uma revolução em sua forma de alocar licenças para faixas de frequências de telefonia móvel, passando de um sistema baseado em loterias para o uso de leilões. O novo mecanismo, concebido por acadêmicos da área da teoria dos jogos, gerou, na época, US$ 20 bilhões em receitas para o governo norte-americano e foi considerado, pela revista Fortu­ne, “o mais dramático exemplo do novo poder da teoria dos jogos”. O modelo foi seguido por outros paí­ses, gerando uma receita de US$ 34 bilhões em 2000 para os cofres pú­blicos britânicos, naquele que foi considerado, pela imprensa internacional, como “o maior leilão de todos os tempos”.

Leilões para telecomunicações são apenas uma aplicação da teoria de desenhos de mecanismos. De forma geral, essa teoria busca entender os incentivos com os quais se defrontam os agentes tomadores de decisão (sejam eles consumidores, empresas, países, organizações não gover­namentais, políticos etc.) e, levando em conta esses incentivos, construir regras de alocação de recursos, de forma a atingir um objetivo previa­mente estabelecido, como a maxi­mização das receitas, no caso de um leilão.

As aplicações dessa teoria são amplas, desde as mais sofisticadas, como as citadas acima, até as mais cotidianas, como o conhecido problema da divisão do bolo. Suponha que você queira dividir um bolo de chocolate entre seus dois filhos. Cada um quer a maior parcela pos­sível da iguaria, e você quer evitar que as crianças se desentendam, além de desejar induzir uma parti­lha equitativa do bolo. O que fazer?

Que tal o seguinte mecanismo: um dos filhos corta o bolo em dois pedaços, e o outro, em seguida, es­colhe que pedaço ele quer? Dessa forma, o primeiro filho será incen­tivado a cortar o bolo exatamente pela metade, pois, caso contrário, fi­cará necessariamente com o menor pedaço.

A teoria por trás desse e de outros exemplos foi desenvolvida especial­mente a partir da década de 1960 por um grande número de pesqui­sadores, em um projeto de pesquisa que teve seu caminho iluminado pelas contribuições dos três acadê­micos norte-americanos agraciados com o prêmio Nobel de Economia em 2007: Leonid Hurwicz, Roger Myerson e Eric Maskin.

Em sua formulação abstrata, um mecanismo consiste de uma regra de comunicação entre dois indivíduos (ou grupo de indivíduos). Um grupo é formado pelo principal, que tem algum objetivo e, para alcançá-lo, contratará um agente para executá-lo. Ocorre que existe algum tipo de assimetria de informação que impede que o principal garanta que o agente executará o serviço na forma desejada. O mecanismo é o conjunto de incentivos que faz com que o agente atue de forma a maximizar a utilidade do principal. No exemplo do bolo, a mãe (principal) tem o objetivo de evitar brigas entre os filhos e contrata um agente (filho) para que parta o bolo. O mecanismo, no caso, é a regra: quem parte escolhe por último. No problema de telecomunicações, o governo (principal) tem o objetivo de oferecer o melhor serviço e arrecadar mais recursos. A forma de estimular os agentes (concessionárias telefônicas) a trabalharem de forma a atingir o objetivo do governo é por meio do leilão de concessões (mecanismo). Por envolverem principais e agentes, os desenhos de mecanismo são parte do que se denomina teoria do principal-agente.

A questão fundamental dessa teoria é que tipo de decisão se deseja implantar com o mecanismo. Considere, por exem­plo, três amigos (A, B e C) que alu­gam um apartamento em conjunto e devem decidir sobre a compra de uma TV que custa R$ 1,8 mil. Um possível mecanismo para decidir se compram ou não a televisão é perguntar a cada amigo quanto vale para ele ter a TV. Se a soma dos três valores atingir, pelo menos, R$ 1,8 mil, então a TV é comprada, e cada amigo paga uma quantia proporcional ao valor que atribui à TV. Por exemplo, se os amigos A e B atribuírem valor R$ 600, e o amigo C, R$ 1,2 mil, então a soma é R$ 2,4 mil, que é maior que o custo da TV. Logo, o aparelho é comprado, e cada um dos amigos A e B paga (600/2.400) x 1.800 = R$ 450, enquanto o amigo C paga (1.200/2.400) x 1.800 = R$ 900.

A decisão que se quer implantar, nesse caso, é a decisão eficiente, qual seja, comprar a TV se e somen­te se o benefício agregado para os três amigos for pelo menos igual ao custo da TV. Nesse exemplo, se os três amigos comunicarem a verdade sobre o valor da TV para cada um deles, a decisão eficiente de comprar o aparelho será tomada.

A fundamental contribuição de Hurwicz foi chamar a atenção para o fato de que as pessoas respondem a incentivos, ou seja, tomam suas decisões de forma estratégica. No exemplo dos três amigos, se o amigo A tiver uma boa estimativa de quan­to vale a TV para os demais amigos (e achar que eles comunicarão seus verdadeiros valores), então pensará: “se eu disser que a TV não vale nada para mim, então a soma dos valores dos demais amigos ainda será R$ 600 + R$ 1,2 mil = R$ 1,8 mil, a TV será comprada e não terei que pagar nada por ela!” Isso levará o amigo A a mentir sobre quanto vale para ele a TV. Mas, se o amigo B também pensar assim, dirá igual­mente que a TV nada vale para si, e, então, mesmo que C diga a verdade, a TV não será comprada.

O que ocorre é que esse simples mecanismo não é compatível com os incentivos, ou seja, não induz os jogadores a comunicarem verdadei­ramente seus valores. Uma conse­quência desse mecanismo é a pos­sível perda de eficiência: a TV não é comprada, apesar do benefício que ela traria para os três amigos ser maior que seu custo. Esse fenô­meno é comum e explica por que a provisão de serviços públicos é, em geral, insuficiente: todos querem os serviços, mas preferem que outros paguem por eles.

Pode-se argumentar que o mau funcionamento do mecanismo aci­ma se deve à regra de comunicação utilizada. Talvez, se a pergunta fosse “quantas horas por dia você assistirá à TV?”, então o problema seria resolvido. Uma contribuição fundamental de Myerson foi provar, de forma bastante geral, o chamado princípio da revelação, que garante que, para determinar se existe um mecanismo que imple­menta um resultado desejado (como a decisão eficiente, no caso dos amigos), basta estudar os mecanismos diretos reveladores. Nesses mecanismos, pergunta-se aos agen­tes diretamente a informação de interesse (também chamada ‘tipo’ do agente, no exemplo, um tipo de agente é aquele que assiste muito à televisão, outro tipo é o que assiste pouco) e se constrói a regra de tomada de decisão de forma que cada agente tenha incentivo a res­ponder a verdade, revelando seu verdadeiro tipo, garantindo assim a compatibilidade de incentivos. Esse resultado simplifica sobrema­neira a procura do mecanismo óti­mo. Ademais, a metodologia usada por Myerson fundamentou grande parte dos estudos sobre leilões que se seguiram.

No exemplo dos amigos, um mecanismo revelador pergunta a cada um quanto vale para ele a TV, e o aparelho é comprado sempre que o valor agregado for maior que seu custo, como antes. No entanto, o pagamento de cada amigo será definido como a diferença entre R$ 2,2 mil e a soma dos valores da TV para os demais amigos. Ao desvincular o pagamento de um agente do valor que ele comunica, o meca­nismo cria um incentivo para que ele diga a verdade, tornando-o com­patível com os incentivos. No novo mecanismo, os amigos A e B pagam 2.200 – (600 + 1.200) = R$ 400 cada, e o amigo C paga 2.200 – (600 + 600) = R$ 1 mil. O montante R$ 2,2 mil foi determinado de formaa garantir que as contribuições dos três amigos atinjam o valor neces­sário para a compra da TV.

Um mecanismo direto revelador determina um tipo de equilíbrio (tecnicamente, denominado equilí­brio de Nash bayesiano) em que todos os jogadores dizem a verdade, e uma decisão ótima é gerada. No entanto, podem existir comporta­mentos alternativos dos agentes envolvidos (outros equilíbrios) que levem a outras decisões, não neces­sariamente ótimas. Uma das prin­cipais contribuições de Maskin para a área foi determinar uma condição (batizada de monotonici­dade de Maskin) que essencialmente determina sob que condições é possível desenhar mecanis­mos para os quais todos os equilí­brios existentes induzem a decisões ótimas. Esse resultado tem impor­tantes ramificações nas mais varia­das áreas da economia e vem aju­dando mercados e instituições privadas e governamentais no mundo inteiro a funcionarem melhor.

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Sobre o Autor:

Maurício S. Bugarin

PhD em Economia pela Universidade de Illinois. Professor Titular do Departamento de Economia da Universidade de Brasília e Diretor do Centro de Investigação em Economia e Finanças, CIEF/UnB.

6 Comentários Comentar

  • Parabéns ao autor e aos organizadores do portal!

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  • Muito bom, o texto! Já tinha lido algo a respeito, mas nunca tinha visto um material tão didático e esclarecedor!
    Parabéns ao autor e aos organizadores desse site.
    Abs

  • Mauricio,
    Como estas? Espero todo bien. Cuando regreses a Nueva Yor tengo una escuela Charter que me gustaria que visitaras. Es una escuela excepsional !

    Recuerdos,
    Evelyn

  • Muito didatico. A abordagem deixa claro o rol de possibilidades para diversos usos do desenho de mecanismos sobretudo em sistemas complexos. Parabens!

  • Excelente artigo: exemplos super bem selecionados!

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