dez
24
2021

Um retrocesso no transporte rodoviário de passageiros

Um retrocesso no transporte rodoviário de passageiros

Por Felipe Freire da Costa*

Raras vezes se presenciou um retrocesso tão grande em matéria de Direito Administrativo Econômico e direito dos usuários quanto se viu recentemente com o Projeto de Lei 3819/2020, aprovado no dia 16/12/2021 no Senado Federal, nos exatos termos em que fora aprovado pela Câmara dos Deputados no dia anterior.

Refiro-me especificamente ao art. 2º do PL 3819, que traz consigo um enorme conjunto de equívocos, de natureza técnica, econômica e política.

Desde a intervenção na autonomia técnica da autoridade reguladora, até o estabelecimento de uma chancela legal para criação de uma reserva de mercado em favor dos atuais operadores do serviço de transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros, TRIP, a hipótese de que o art. 2º do PL 3819 seja sancionado se revelaria em um completo contrassenso aos avanços recentemente positivados em setores como o transporte ferroviário e por cabotagem, ou em marcos regulatórios comemorados, como o Marco do Saneamento e a Nova Lei do Gás.

A incompreensão cresce na medida em que o texto do PL 3819 teria contado com a chancela do Ministério da Infraestrutura, mesma pasta responsável pela aprovação do Marco Legal das Ferrovias e da BR do Mar, iniciativas que contaram com o voto do Congresso Nacional na mesma semana do projeto que favorece as tradicionais oligarquias do setor de transporte rodoviário de passageiros.

Independentemente do regime – civil ou militar – e da orientação política – de esquerda ou de direita, liberal ou conservadora –, as oligarquias empresariais que controlam o setor de TRIP nunca deixaram de contar com a chancela estatal para manter o status quo na exploração da rede de mobilidade interestadual de transporte rodoviário de passageiros.

A aprovação do PL 3819 comprova essa tese. A mesma pasta ministerial que defende que duas ferrovias que ligam o mesmo par O/D (origem/destino) podem concorrer entre si, vê óbice na concorrência entre duas empresas de ônibus por uma mesma ligação, ao arrepio de qualquer bom senso intelectivo.

Muito embora o texto tenha sido desidratado na tramitação na Câmara dos Deputados, ele foi aprovado nos exatos termos que interessavam aos grupos econômicos que controlam o setor de TRIP há mais de 50 anos, sempre em parceria com o Estado.

O exame das emendas do relator da Comissão Mista da Medida Provisória 906/ 2019 não deixa dúvida quanto a esse aspecto. Àquela ocasião, o relator da comissão mista – não coincidentemente o mesmo autor do substitutivo do PL 3819 aprovado no Senado Federal no final de 2020 – tentou se aproveitar da tramitação da medida provisória da Política Nacional de Mobilidade Urbana para positivar na Lei 10.233/2001 os conceitos de inviabilidade técnica e econômica para as outorgas de TRIP.

O comando do art. 2º do PL 3819 vem sendo perseguido desde o fim de 2019, momento em que a agência reguladora reconhecera sua incompetência para impor óbices concorrenciais em desacordo com a legislação de regência.

Muito embora a apresentação do parecer do deputado Hugo Motta tenha sido comemorada por eliminar aspectos negativos da proposta oriunda do Senado Federal, o fato é que esses aspectos – vedação à intermediação, anistia e redução do valor máximo das multas, fixação de um valor percentual de frota própria, exigência de estudo de viabilidade econômica e revogação de mais de 16 mil novas ligações outorgadas posteriormente à edição da Deliberação 955/2019 – dificilmente seriam aprovados na Câmara dos Deputados.

Ou seja, não é desarrazoado supor que esses elementos acessórios do PL 3819 constavam do projeto para serem suprimidos na tramitação da matéria, criando uma falsa sensação de avanço legislativo, quando o que de fato interessava aos grupos econômicos que controlam o setor seria mantido no texto final – inviabilidade técnica e econômica –, como de fato ocorreu.

Idealmente, deve-se vetar o inteiro teor do art. 2º do PL 3819, posto que ele nada acrescenta de positivo à realidade setorial, pelo contrário. De forma resumida, o mencionado art. 2º equivaleria à seguinte alteração na Lei de Liberdade Econômica, LLE:

Art. 2º A Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 4º …………………………………………

I – criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes, salvo no transporte rodoviário coletivo regular interestadual e internacional de passageiros;

II – redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado, exceto no transporte rodoviário coletivo regular interestadual e internacional de passageiros;

……………………………………….”(NR)

Em outros termos, o Congresso Nacional aprovou, com a anuência do Ministério da Infraestrutura, registre-se, e, tudo indica, sem oposição formal do restante do governo, a possibilidade de se criar – em verdade, que se continue a criar, o que nunca deixou de ser feito – reserva de mercado para favorecer grupo econômico em detrimento dos demais concorrentes, bem como que continuem a ser redigidos enunciados que impeçam a entrada de novos competidores no mercado de transporte rodoviário coletivo regular interestadual e internacional de passageiros.

Simbolicamente, é como se a LLE deixasse de ser aplicável ao setor de TRIP.

Não se trata de demonizar a narrativa política, que é válida e legítima, mas apenas de constatar que essa não pode se distanciar da realidade setorial, incluído aí o substrato técnico que dá suporte à concretização dessa realidade.

A qualidade do debate legislativo depende, pois, da diminuição das assimetrias informacionais entre o que se diz defender e o que está sendo efetivamente defendido.

Uma das formas de estimular isso – diminuição de assimetrias – é dar publicidade às análises de resultado legislativo das iniciativas aprovadas pelo Congresso Nacional.

Por essa razão, caso o texto seja sancionado da forma com que foi aprovado, buscarei jogar luz sobre os efeitos da alteração promovida no caput do art. 47-B da Lei 10.233/2001, tanto sobre o setor como um todo, como sobre as realidades regionais que serão afetadas pela imposição de óbices concorrenciais chanceladas pelas casas legislativas.

Isso posto, passa-se ao exame das necessidades de veto de dispositivos do art. 2º do PL 3819/2020:

Art. 2º A Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, passa a vigorar com as seguintes alterações:“

Art. 13. ……………………………………………………………………

V – ………………………………….

1.a) prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros, vedada a venda de bilhete de passagem;

……………………………………….”(NR)

“Art. 47-B. Não haverá limite para o número de autorizações para o serviço regular de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, salvo no caso de inviabilidade técnica, operacional e econômica.

Parágrafo único. (Revogado)

O Poder Executivo definirá os critérios de inviabilidade de que trata o caput deste artigo, que servirão de subsídio para estabelecer critérios objetivos para a autorização dos serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros.

2º A ANTT poderá realizar processo seletivo público para outorga da autorização, observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência, na forma do regulamento.

3º A outorga de autorização deverá considerar, sem prejuízo dos demais requisitos estabelecidos em lei, a exigência de comprovação, por parte do operador de:

I – requisitos relacionados à acessibilidade, à segurança e à capacidade técnica, operacional e econômica da empresa, de forma proporcional à especificação do serviço, conforme regulamentação do Poder Executivo;

II – capital social mínimo de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais).”(NR) [grifos acrescidos]

O art. 2º como um todo se notabiliza pela técnica legislativa inadequada, sobretudo quanto à topografia dos comandos que busca inserir no texto da Lei 10.233/2001.

Cito como exemplo o § 3º da nova redação do art. 47-B, que não possui relação com o caput do comando normativo, seja como aspecto complementar ou como exceção à regra por este estabelecida, conforme preconiza a Lei Complementar 95/1998.

Na medida em que o § 3º da nova redação do art. 47-B trata de requisitos da outorga de autorização, o comando deveria constar como parágrafo único do art. 44 da Lei 10.233/2001, que disciplina o termo de autorização.

A disciplina em si é desnecessária, vez que as exigências trazidas no corpo do PL 3819 já constam do art. 29 da própria Lei 10.233/2001, a saber:

Art. 29. Somente poderão obter autorização, concessão ou permissão para prestação de serviços e para exploração das infraestruturas de transporte doméstico pelos meios aquaviário e terrestre as empresas ou entidades constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País, e que atendam aos requisitos técnicos, econômicos e jurídicos estabelecidos pela respectiva Agência. [grifos acrescidos]

Como se nota, além de reproduzir uma norma já existente, a redação proposta ao § 3º ainda consta equivocadamente do art. 47-B, em vez do art. 44 da Lei 10.233/2001.

O mesmo ocorre com a expressão “vedada a venda de bilhete de passagem” da nova redação do art. 13, V, “a” da Lei 10.233/2001. O acréscimo redacional, desnecessário, só geraria os efeitos esperados se constasse como parágrafo do art. 26 da Lei 10.233/2001.

Na intenção de inviabilizar os modelos de fretamento colaborativo o autor do substitutivo do PL 3819 aprovado no Senado inseriu a vedação à intermediação e à venda de bilhete de passagens no art. 13, V, “a”, sem se dar conta que a prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo de passageiros não se confunde com o transporte por fretamento.

Por não se tratar de atividade econômica titularizada pelo Estado, a prestação de serviço de transporte por fretamento não é outorgada pela ANTT. Não estamos a falar de uma autorização regulatória do art. 21, XII, “e” da Lei Maior, mas de mera autorização administrativa de polícia, de que trata o parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal.

Por se tratar de medida inócua, vez que inexistem outorgas de prestação não regular de serviços de transporte terrestre coletivo no âmbito da ANTT, a alteração proposta ao art. 13, V, “a” deveria ser vetada.

Continuando com as necessidades de veto, refiro-me ao § 1º e ao inciso I do § 3º da nova redação proposta ao art. 47-B da Lei 10.233/2001. Conforme grifado no texto, ambos os comandos fazem referência ao Poder Executivo, em vez de a agência reguladora, ou a ANTT, como já faz a redação vigente dos arts. 47-A, 47-B e 47-C da lei.

Como não existem expressões inúteis na lei e a própria nova redação do art. 47-B faz menção à ANTT e ao Poder Executivo, inexiste dúvida que não se trata de um recurso estilístico de sinonímia, recurso que inclusive deve ser evitado, conforme a alínea “b” do inciso II do art. 11 da Lei Complementar 95/1998.

Ou seja, segundo o texto aprovado – § 1º e inciso I do § 3º da nova redação proposta ao art. 47-B da Lei 10.233/2001 –, e para o qual defendo o veto, caberia ao Poder Executivo, por meio de decreto, definir os critérios de inviabilidade e os requisitos relacionados à acessibilidade, segurança e capacidade técnica, operacional e econômica das empresas.

Tal proposição representaria uma intervenção na autonomia da autoridade reguladora para disciplinar o setor de transportes rodoviário interestadual e internacional de passageiros, expressamente prevista no corpo da Lei 10.233/2001:

Art. 14.  Ressalvado o disposto em legislação específica, o disposto no art. 13 aplica-se conforme as seguintes diretrizes:…

III – depende de autorização:…

1. j) transporte rodoviário coletivo regular interestadual e internacional de passageiros, que terá regulamentação específica expedida pela ANTT;

[…]

Art. 26. Cabe à ANTT, como atribuições específicas pertinentes ao Transporte Rodoviário:

VIII – autorizar a prestação de serviços regulares de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros.

IX – dispor sobre os requisitos mínimos a serem observados pelos terminais rodoviários de passageiros e pontos de parada dos veículos para a prestação dos serviços disciplinados por esta Lei. […]

[grifos acrescidos]

Conforme comando expresso da Lei 10.233/2001, cabe à ANTT a competência para editar a regulamentação específica para disciplinar as outorgas autorizativas de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, atribuição essa que prescinde da edição de um decreto regulamentador.

Aos trechos em destaque reproduzidos acima, soma-se o já referido art. 29 da Lei 10.233/2001, que atribui à ANTT a competência para estabelecer os requisitos técnicos, econômicos e jurídicos necessários à obtenção das outorgas autorizativas para prestação de serviço de TRIP.

Do que aparenta ser uma antinomia jurídica entre a redação proposta ao art. 47-B e outros comandos da Lei 10.233/2001 sobressai a seguinte questão: a quem interessa fragilizar as atribuições de regulação técnica – de segurança, de qualidade – e econômica da ANTT?

Por esse conjunto de razões, que envolve a fragilização da autonomia técnica da agência reguladora, um caminho que pode não ter volta, defendo a proposição de veto ao § 1º e ao inciso I do § 3º da nova redação do art. 47-B da Lei 10.233/2001, conforme trazidos pelo art. 2º do PL 3819.

O inciso II do § 3º da nova redação do art. 47-B da Lei 10.233/2001, que traz a exigência de capital social mínimo, e especifica esse valor, também deveria ser objeto de veto.

O legislador ordinário já havia conferido a competência para a ANTT fixar requisitos necessários às outorgas autorizativas no corpo do art. 29 da Lei 10.233/2001, não havendo razão para replicar essa obrigação no texto acrescido e muito menos para limitar o espaço de atuação normativa da agência reguladora dispondo em lei sobre esse valor.

Engessa-se desnecessariamente a regulação setorial, em sentido oposto ao modelo de atuação estatal em outros mercados regulados, nos quais a legislação setorial possui baixa densidade normativa, de forma a propiciar que as agências reguladoras possam tentar fazer frente à dinamicidade dos mercados por elas regulados.

Note-se que o Marco Legal das Ferrovias e a BR do Mar não trazem qualquer exigência de capital social, quiçá um valor definido em lei, razão pela qual a exigência trazida pelo inciso II do § 3º da nova redação do art. 47-B da Lei 10.233/2001 deveria ser vetada.

Não somente cria-se uma exigência inexistente em outros marcos legais, como positiva-se em lei uma matéria de natureza regulatória, a ser definida em âmbito técnico e não político.

Chega-se, enfim, à nova redação do “caput” do art. 47-B, com a inserção dos conceitos de inviabilidade técnica e econômica. Existem duas leituras possíveis ao novo texto proposto, e ambas são negativas, principalmente aos usuários do setor, notadamente de baixo poder aquisitivo.

A primeira delas se daria no sentido de que o acréscimo de uma nova outorga poderia inviabilizar técnica ou economicamente a competição no setor, ensejando a realização de um processo seletivo público.

A inviabilidade técnica à competição ocorreria em casos de monopólio natural, o que de pronto afastaria sua incidência sobre o setor de TRIP. Seria estranho admitir a existência de inviabilidade técnica à competição no setor de TRIP ao mesmo tempo em que o parlamento decidiu que o transporte ferroviário não se constituiria em um monopólio natural clássico.

A inviabilidade econômica à concorrência não somente conflita com o ambiente de livre e aberta competição, como carece de fundamentação matemática. Parte-se de uma lógica de que as receitas oriundas da exploração de uma outorga em específico deveriam ser suficientes à remuneração do capital da empresa operadora daquela ligação.

Essa lógica, que é válida em disciplinas contratuais – outorgas de concessão ou permissão –, é inaplicável no setor de TRIP. O conceito é falho por desconsiderar que as receitas das autorizatárias não advêm de uma única ligação (mercado), mas do conjunto delas. Soma-se a isso a exploração de receitas acessórias, não contabilizadas nesse fictício cálculo de viabilidade.

Adicionalmente, trata-se de uma outorga sem prazo de vigência e com liberdade tarifária, inviabilizando eventuais cálculos de viabilidade de negócio, os quais teriam que ser feitos sob premissas incompatíveis com os contornos legais da outorga autorizativa.

Como se nota, a leitura no sentido de uma inviabilidade técnica ou econômica à competição não se sustenta, e levá-la à cabo implicaria em estabelecer uma reserva de mercado em favor dos atuais operadores, criando um monopólio empresarial com chancela estatal, em que essas empresas poderiam operar com liberdade tarifária, estabelecendo preços em patamares bem superiores aos seus custos marginais de produção, em prejuízo dos usuários do setor.

A outra leitura possível se daria no sentido que os conceitos de inviabilidade técnica e econômica se prestariam ao estabelecimento de requisitos mínimos ao ingresso de novos entrantes.

Essas exigências, contudo, já são requeridas pela autoridade reguladora previamente à outorga de novos mercados, por meio da verificação de 35 requisitos de ordem jurídica, financeiro, trabalhista, técnico e operacional.

Ao reforçar essa exigência – já prevista no art. 29 da Lei 10.233/2001 –, contudo, o legislador ordinário transparece a intenção de que sejam impostos ônus adicionais ao ingresso de novos entrantes, medida injustificável, mormente ante os efeitos positivos que o incremento da concorrência vem trazendo ao setor e seus usuários.

Como se percebe, de forma muito evidente, o art. 2º do PL 3819 deveria ser objeto de veto pelo Presidente da República, seja por fragilizar a atuação da ANTT na regulação setorial, limitando o espaço de atuação normativa da agência e positivando em lei aspectos de regulação técnica, seja por criar reserva de mercado em favor dos grupos econômicos que ditam os rumos do setor de TRIP por décadas a fio, sempre sob o beneplácito estatal.

Sancionar o PL 3819 como ele foi aprovado se constitui em um duro golpe à rede de mobilidade interestadual, que retomará a trajetória de perda de atratividade e, sobretudo, aos usuários do setor de TRIP, cada vez mais cativos, reféns das oligarquias empresariais que comandam o transporte rodoviário de passageiros.

 

* Felipe Freire da Costa é especialista em Regulação de Serviços de Transportes Terrestres e assessor na Diretoria da Agência Nacional de Transportes Terrestres.

Sobre o Autor:

Felipe Freire da Costa

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