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2020

Passos para a elaboração de um Programa de Crédito Governamental em situações de emergência: o caso do Covid-19

42Este artigo sistematiza os passos percorridos pelo time do qual faço parte na Secretaria de Produtividade, Emprego e Competitividade – SEPEC do Ministério da Economia na elaboração de dois programas de crédito, o Pronampe e o Peac-FGI.

 

Preliminarmente, o primeiro ponto a se ter em mente é que uma pessoa sozinha não elabora e nem põe de pé um programa desses. Mais que isso, um time só também não basta; dois times são necessários: um time político e um time técnico.

 

O time político faz a estratégia, sente a temperatura da sociedade, capta as necessidades, busca oportunidades e influencia os tomadores de decisões. Chamo de tomador de decisão quem tem mandato conquistado pelo voto.

 

Já o time técnico atua no tático-operacional. Recebe a encomenda do time político e constrói o produto. O time político vende o produto aos tomadores de decisões. 

 

Eu sou do time técnico. É a minha praia. Então, os pontos que trago a seguir são relativos a essa dimensão. Não acredito que esgotei todos os passos técnicos necessários, porém, os que trago aqui certamente são fundamentais.

 

Nesse contexto, o time político captou a demanda social e a escassez de crédito no contexto do Covid-19.

 

Não caímos na bobagem do argumento fácil, e que estava muito popular no início da pandemia, de que os bancos simplesmente não queriam emprestar por algum desvio intrínseco de caráter. Os bancos sempre querem emprestar. Os bancos vivem disso: captar recursos de poupadores, emprestar a investidores, consumidores e ao governo. Grosso modo, a diferença entre os juros pagos pelos recursos captados dos poupadores e os juros recebidos dos empréstimos é o que se chama de spread, que é onde o banco ganha dinheiro. Sem empréstimo, não tem spread. Sem spread, não tem lucro. Em síntese, os bancos sempre querem emprestar. É da essência do negócio deles.

 

Assim, partimos para elencar as possíveis razões para os bancos não estarem emprestando: baixa liquidez, insegurança jurídica, cenários incertos, custo do dinheiro etc.

 

Primeira constatação: os bancos estavam emprestando sim e até mais do que vinham fazendo em 2019, quando a economia já dava sinais de aquecimento. De acordo com dados do Bacen, as concessões de crédito Pessoa Física e Pessoa Jurídica em março/2020 foram 33% maiores que em março/2019.

 

Também não havia problema de liquidez. Os grandes bancos estavam com muita liquidez antes do Covid-19, em condições de enfrentar um amplo aumento nas provisões. Além disso, o Bacen adotou diversas medidas de aumento de liquidez do mercado. Assim, liquidez não era o problema. Os bancos tinham dinheiro em estoque para a demanda não atendida.

 

Qual era o problema, então? Se os bancos precisam emprestar, tinham dinheiro para emprestar e clientes querendo tomar crédito, por que a oferta por crédito não acompanhava a demanda?

 

Simples! Os cenários econômicos até então traçados não valiam de mais nada a partir da elevada incerteza gerada pela pandemia. Ademais, a cada momento havia a postergação do retorno à normalidade, no que se refere tanto às atividades econômicas quanto a todas as outras atividades da vida cotidiana. O mercado foi embaralhado e a turma dos cenários futuros não conseguiu contar as cartas.

 

No contexto do Covid-19, podemos dizer com alguma segurança que a incerteza dos cenários futuros foi a principal razão de a oferta pelo crédito não ter acompanhado a demanda. Quem empresta tem dificuldade de aferir as chances de o devedor sobreviver à crise e, consequentemente, de calcular as possibilidades de retorno do crédito.

 

Feito o diagnóstico técnico, passamos a mapear as possíveis intervenções mercadológicas capazes de neutralizar as causas da escassez e que fossem implementáveis no espaço de tempo disponível: “obrigar” os bancos a emprestar, criar programas com funding oriundo do Tesouro Nacional, tabelar juros, proibir a exigência de garantias, proibir consultas aos serviços de proteção ao crédito etc..

 

Todas essas medidas já haviam sido tentadas em algum lugar no tempo e no espaço. Nenhuma deu bons frutos. Fazer o que então? Olhar ao redor do mundo.

 

Os governos de vários países passaram a usar o Tesouro como garantidor das operações de crédito para que os bancos emprestassem com recursos próprios, dado que a liquidez não era problema para a maioria deles desde a crise de 2008. 

 

A garantia soberana tem dois pontos positivos imediatos: afastar incertezas e multiplicar recursos.

 

Afastar incertezas é meio óbvio. Se o cliente não paga, o Tesouro paga. 

 

A multiplicação de recursos é um pouco menos óbvia, mas é simples. Quando o Tesouro empresta com recursos próprios, cada 1 real que sai do orçamento vira 1 real de crédito concedido. Quando o tesouro entra como avalista, cada 1 real que sai do orçamento pode gerar 2, 3, 4 em crédito, a depender da modelagem do programa de garantias.

 

Nos programas dos quais participei da estruturação, optou-se por esse caminho: atuar na redução da incerteza para a instituição financeira avalizando o tomador de crédito. Na prática, o que o governo fez foi dizer aos bancos que “se o empresário não pagar, eu pago”. Pode parecer que a explicação é mais lúdica que fiel aos fatos.

 

O time político se convenceu de que esta era a intervenção adequada. Assim, passamos à modelagem do programa. Qual a origem dos recursos, qual impacto no orçamento da União, quais as regras para os tomadores do crédito, quais as regras para os concessores, quem vai executar o programa, qual o veículo para fazer o programa chegar ao seu público alvo, como incentivar os agentes operacionais para que se comprometam com o sucesso do programa? Estas eram as principais questões que precisávamos endereçar após o diagnóstico realizado com base na incerteza súbita que acometeu a oferta de recursos no sistema financeiro e da linha fundamental de focar na concessão de garantias pelo Tesouro.

 

Na etapa de modelagem dos programas conversamos com as entidades de representação do setor produtivo sobre  a necessidade do crédito: carência, taxa, garantias, prazo de pagamento, documentação etc. Em particular, conversamos com os agentes concessores de crédito sobre  as condições requeridas para haver incentivo a emprestar para as pequenas empresas. Estruturar os incentivos deve incluir coisas como  limite de taxas, como funciona a garantia dada pelo governo, quanto tempo para ser honrada em caso de inadimplência do devedor, quais os procedimentos para liquidação dos débitos remanescentes ao fim do programa etc.

 

Um passo fundamental foi identificar no mercado instrumentos pré-existentes de comercialização de garantias e melhorá-los até o ponto em que se tornassem interessantes neste novo cenário de incerteza muito acima do normal. 

 

Aliás, é uma sugestão que eu faço a todos que se depararem com o desafio de elaborar um programa de ação governamental. Todo mundo quer ser disruptivo. Porém, na imensa maioria das vezes é mais fácil, rápido, econômico, eficaz e eficiente melhorar o que já está pronto. O difícil é superar as resistências e os traumas. Uma expressão legal para descrever isso é path dependence. Daí é diálogo, convencimento, sensibilidade e marketing para lidar com o peso do passado.

 

Para chegar até aqui a) identificamos a raiz da escassez de crédito, b) mapeamos as possíveis intervenções mercadológicas, e c) modelamos a intervenção. 

 

Falta o marco legal. É muito bom ter no time técnico quem conheça duas linguagens: a técnica da área que sofrerá a intervenção governamental e a jurídica. Facilita muito.

 

Assim, após a modelagem, passamos ao desafio de redigir um texto legal que incentivasse os agentes mercadológicos e desse segurança jurídica a todos os partícipes. O processo legislativo, mesmo a elaboração de medida provisória, demanda muito tempo e articulação. De maneira que erros na calibragem do programa que estejam talhados na letra da lei podem ser fatais. Uma estratégia muito valiosa é deixar espaço para a regulamentação infra legal. Foi o que fizemos. É o que eu sugiro que se faça. Assim, o administrador poderá acompanhar o comportamento dos agentes e, caso não estejam a contento, efetuar ajustes de rota nos limites dados pela lei.

 

Por último, temos a regulamentação e o monitoramento infra legal. No caso dos dois programas dos quais tomei parte, muitas questões surgiram durante a modelagem para as quais não havia ainda resposta. Como dito, deixamos espaço para regulamentação infra legal. Na regulamentação infra se fazem as definições mais finas dos programas.

 

O último passo foi acompanhar com os bancos o desenvolvimento das linhas de crédito de cada instituição.

 

Com a lei e a regulamentação, já havia detalhamento suficiente e segurança jurídica para que os bancos desenvolvessem suas linhas de crédito no âmbito desses programas. Isso envolve: precificação da linha, estabelecimento de rotinas contábeis, definições do Bacen quanto à alocação de capital, desenho de modelo de risco de crédito, desenvolvimento de sistemas de tecnologias de informação (TI), elaboração de normas internas, treinamento das pessoas que farão a distribuição dos recursos e planos de marketing. Não é barato para um grande banco desenvolver uma linha de crédito. Sem os incentivos adequados, eles simplesmente não o farão.

 

Quem chegou até aqui pode ter ficado pensando que simplesmente fizemos a vontade dos bancos. Não é bem assim. Trabalhamos com a ideia de garantir a adequada estrutura de incentivos para que os programas dessem certo, ou seja, de descobrir o que incentivaria os bancos a concederem crédito em condições justas. Mas nós também sabíamos que os bancos precisavam de nós. Bancos não querem que seus clientes quebrem. Ninguém quer perder seus clientes. Meio óbvio isso.

 

Dito isso, em um programa de crédito com base em apoio governamental, trabalhamos para que fossem praticados os juros não subsidiados mais baixos da história. No outro, estabeleceu-se uma meta. Caso as taxas praticadas fossem acima da meta, o banco perderia percentual de cobertura da carteira.

 

Foram esses os principais passos percorridos na esfera técnica até o lançamento dos programas para a sociedade.

 

Após o lançamento, monitoramos continuamente o fluxo de crédito aos tomadores, real indicador do sucesso das etapas anteriores, e fizemos a recalibragem de alguns parâmetros, quando necessário.

 

Acredito que os conceitos mencionados aqui possam não ser suficientes para construção de outros programas com foco na facilitação do acesso ao crédito, porém, sugiro que sejam seguidos dado que podem ser facilmente aplicados e produzem bons resultados.

 

 

Conrado Vitor Lopes Fernandes é bacharel em Direito, pós-graduado em Direito Público e mestrando em Economia é Coordenador-geral de Apoio às Micro e Pequenas Empresas da SEPEC do Ministério da Economia

Sobre o Autor:

Conrado Vitor Lopes Fernandes

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