jun
15
2020

Ambiente de Negócios no Brasil e a Regulação do Aproveitamento Econômico da Terra

São conhecidas as dificuldades do ambiente de negócios no Brasil, cujas deficiências colocam limites nas perspectivas de crescimento econômico. O Brasil continua sendo o penúltimo pior país no índice do Product Market Regulation (PMR) medido para 39 países pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que mede o grau de barreiras à entrada e concorrência dos vários países. No indicador do Doing Business do Banco Mundial, que mede a facilidade para fazer negócios, o Brasil tem uma posição de 124º num total de 190 países. Finalmente, no índice de competitividade do World Economic Forum, o Brasil ficou na posição 71º em 140 países. Para aumentar sua produtividade e incrementar o padrão de vida da população é fundamental que o Brasil prossiga em várias reformas microeconômicas e muitas delas envolvem revisões do arcabouço regulatório que simplifiquem a burocracia e removam os obstáculos à criação de novos negócios e expansão dos antigos. A crise do covid-19 demonstra cabalmente a essencialidade destas reformas, não apenas para facilitar as condições de retomada do crescimento pós-quarentena, mas também para tornar o país mais resiliente a este tipo de crise no futuro.

Um dos pilares fundamentais de uma economia de mercado é a garantia dos “direitos de propriedade”. Quando se utiliza este termo, na realidade, está se falando de uma “cesta de direitos”, direito de usar para quase qualquer fim um bem ou ativo e excluir outros de usá-lo, direito de vender o bem ou ativo, transferindo-o para quem desejar, direito de auferir renda do bem ou ativo, dentre outros. É esta cesta de direitos que provê incentivos para que empresas façam o melhor uso possível dos ativos, de forma a gerar a maior quantidade de riqueza e empregos possível. Quando se limita a “cesta de direitos” dos direitos de propriedade, limita-se naturalmente a capacidade daquele ativo de gerar a riqueza para a sociedade.

O objetivo deste artigo é discutir os obstáculos regulatórios aos direitos de propriedade na terra no Brasil, o que compromete o aproveitamento econômico da terra, minando a competitividade para vários setores da economia do país. Veremos ainda como vários projetos de lei em discussão poderão remover parte destes limites às “cestas de direitos” na terra, condição necessária para um grande salto de produtividade no setor.

Iniciamos com os empecilhos ao investimento na faixa de fronteira do país[4], que representa percentual significativo do território nacional (cerca de 17%), abrangendo 11 Estados, 588 Municípios e 10 milhões de habitantes. De acordo com estudo do IPEA, a região tem renda per capita inferior à do restante do país. Apesar disso, o marco normativo da atividade econômica nesse local impõe restrições e vedações ao investimento, comprometendo as chances de superação do quadro de maior pobreza.

Nascida de preocupações relacionadas à soberania e segurança nacional e promulgada durante o regime militar, a Lei 6.634, de 1979 proíbe que as atividades de mineração em faixa de fronteira sejam desenvolvidas por empresas de maioria de capital estrangeiro, não administradas por brasileiros e que não tenham mais de dois terços dos trabalhadores brasileiros.

O regramento legal vigente é óbice para investimentos econômicos no setor mineral brasileiro, em que mais de 70% das empresas do país são controladas por estrangeiros. Assim, há um potencial enorme a ser explorado nas regiões de fronteira e manter restrições ao usufruto do direito de propriedade pelos agentes de capital majoritariamente estrangeiro é abdicar das possibilidades de melhoria de bem-estar que os referidos recursos permitem.

Estima-se que de cada mil pesquisas minerais apenas uma resulta na exploração comercial de uma mina e poucos empresários estão dispostos a correr esse risco. Países como Canadá e Austrália adotaram mecanismos para incentivar investimentos para a pesquisa mineral e a equação é simples: mais pesquisa, mais exploração, igual a mais riqueza para a sociedade.

Deve-se levar em consideração no caso brasileiro, ainda, a rigidez locacional, caraterística intrínseca à mineração. Ao se flexibilizarem as restrições ao investimento estrangeiro na região de fronteira, a faixa de 150 km em toda a linha divisória terrestre do território (diga-se, uma das maiores do mundo), passa a constituir um campo amplo de oportunidades de investimento.

Outra parcela do território nacional também sub explorada em termos econômicos por questões regulatórias são as terras indígenas. De propriedade da União, uma vez homologadas, passam a constituir usufruto dos silvícolas. As áreas representam cerca de 13% do território do país, o que supera, por exemplo, a soma dos territórios da França e Inglaterra. A realização de atividades econômicas em terras indígenas é possibilidade prevista constitucionalmente, mas não explorada pelos governos que sucederam à edição da Carta Magna de 1988. Ou sejam, trata-se de direito de propriedade para usufruto da terra não realizado por simples falta de regulamentação.

Em que pesem a magnitude e o potencial econômico das terras indígenas, trata-se de mais um caso de recursos não aproveitados que poderiam ser utilizados para elevar o bem-estar social da população, sobretudo, a local. Outra similitude com a situação da faixa de fronteira é que a comunidade local também enfrenta mais problemas de pobreza do que a média do país.

O contexto do parágrafo anterior foi o que motivou o Poder Executivo a enviar o PL 191, de 2020, para o Congresso Nacional. O projeto possibilita a realização de pesquisa e lavra mineral, bem como o desenvolvimento de empreendimentos no setor de energia das terras indígenas. Ao regulamentar o dispositivo constitucional, o projeto ampara as comunidades indígenas, garantindo a elas participação na renda gerada pela atividade de lavra e produção de energia elétrica. Adicionalmente, o projeto atualiza a Lei no 6.001/1973 (Estatuto do Índio) para permitir que as próprias comunidades indígenas desenvolvam atividades produtivas em suas terras, como a agricultura, a pecuária, o extrativismo e o turismo.

Tanto a participação de resultado na lavra como a possiblidade de exercer atividades produtivas em suas terras são mecanismos do projeto de lei que contribuem para a melhoria das condições econômicas das comunidades indígenas, oferecendo-lhes alternativas de renda e empregabilidade. Ou seja, os índios passam a exercer parte do direito de propriedade de auferir renda de um ativo que, de outra forma, seria um “capital morto”, incapaz de gerar riqueza e melhoria de vida aos locais O projeto amplia as possiblidades de renda para as comunidades indígenas, prevendo o pagamento de indenização pela restrição ao usufruto da terra pelas atividades econômicas realizadas nas mesmas.

Outra característica importante do projeto é que os recursos repassados pelo empreendedor são apropriados diretamente pelas comunidades, sem transitar pelos orçamentos da Administração Pública. Importa registrar que os empreendimentos de geração de energia elétrica e mineração serão realizados apenas se autorizados pelo Congresso e as comunidades indígenas serão consultadas necessariamente sobre a questão.

Outro marco legal antigo que merece ser revisto trata da exploração econômica de terras por empresas brasileiras controladas por estrangeiros. A Lei nº 5.709, de 1971, que trata do tema, por ser anterior à Constituição Federal de 1988, sofreu interpretações distintas. As interpretações têm ocasionado insegurança jurídica nas atividades que envolvem transações com imóveis rurais realizadas por empresas brasileiras controladas por estrangeiros. Se uma empresa com capital majoritariamente nacional possui uma terra para cujo uso ela tem uma capacidade de exploração inferior a de outra empresa brasileira, que tem a particularidade de ser controlada por estrangeiro, aquele não poderá exercer o direito de propriedade usual de alienar o ativo para este. Deixa-se de gerar riqueza pelo que seria o diferencial de produtividade entre o agente que vende e o que compra o ativo, ambos pessoas jurídicas brasileiras e que diferem no fato de um deles ser controlado por estrangeiro e o outro não.

O problema ocorre particularmente no dispositivo legal que equipara empresa brasileira, com controle acionário estrangeiro (pessoa física ou jurídica estrangeira não residente ou não sediada no Brasil), à empresa estrangeira. Desde a edição do Parecer AGU LA-01/2010, a interpretação do Poder Executivo é de que permanece a distinção entre as empresas brasileiras de capital nacional e estrangeiro. Essa interpretação tem criado incertezas em setores diversos da economia brasileira. Por exemplo, nas indústrias de papel e celulose, mineração e agronegócio, as companhias brasileiras controladas por estrangeiros passaram a enfrentar a insegurança jurídica sobre a propriedade dos imóveis rurais onde se localizam seus empreendimentos, pois não podem registrar a propriedade plena desses imóveis.

No setor de energia, foi levantado que a compra da CPFL Energia pela chinesa State Grid, concluída em 2017, provocou problemas no que tange à questão das propriedades rurais. A empresa tinha dezenas de arrendamentos de terras e eles tiveram que ser alterados para contratos que permitem o uso da terra sem que a empresa tenha a propriedade ou a alugue. Já no setor mineral, podem-se citar as dificuldades que as mineradoras encontram na realização de operações imobiliárias, tão frequentes na rotina desse segmento, cujos grandes investidores são em sua maioria estrangeiros. Muito embora o Estado Brasileiro conceda a lavra ao estrangeiro, para atender à compensação ambiental exigida no momento do licenciamento da operação, é comum que o investidor necessite adquirir áreas para reflorestamento. Essa aquisição, feita pelo estrangeiro, fica impossibilitada pela restrição de aquisição de terras do contexto regulatório atual, impedindo, em última análise, a execução do projeto.

A importância de o proprietário da terra ser o mesmo daquele que tem a posse tem a ver com os custos de transação que emergem da possibilidade de comportamentos oportunistas entre proprietário e arrendatário. Como os investimentos em energia elétrica, mineração, dentre outros, são afundados, ou seja, não podem ser realocados em outras atividades, o investidor arrendatário pode acabar sofrendo comportamento oportunista do proprietário quando houver necessidade de alterações na implementação do projeto, por exemplo. Ou seja, só a posse pode não ser suficiente para uma exploração eficiente da terra em várias circunstâncias, cabendo viabilizar o direito pleno de propriedade de usufruir do ativo também.

Desde 2011, a Câmara dos Deputados vem debatendo o tema. Inicialmente, a subcomissão da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, criada para analisar o assunto, aprovou o Relatório 04/2012 que propôs projeto de lei para considerar como brasileira qualquer empresa constituída no Brasil, ainda que controlada direta ou indiretamente por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras. Tramitam diversos projetos a respeito do tema, que propõem a adoção do entendimento do Relatório 04/2012. O PL 2.963, de 2019, é o que se encontra em estágio mais avançado de discussão.

Outra oportunidade de avanço regulatório também em trâmite na Câmara dos Deputados diz respeito à revisão do marco legal das desapropriações por utilidade pública (PL 11.277/2018). São recorrentes os obstáculos enfrentados para a desapropriação de terrenos necessários à execução de investimentos em infraestrutura do governo federal. Independente da modalidade de implementação dos projetos, via regime diferenciado de contratação, contratos por desempenho, parcerias público-privadas ou contratações integradas, os gestores deparam-se com empecilhos significativos ao longo do requerido processo de expropriação de imóveis.

O volume de ações judiciais promovidas pela Advocacia Geral da União, desde 2009, para permitir a continuidade das obras de infraestrutura prioritárias do governo federal motivadas por problemas relativos ao processo de desapropriação das áreas abrangidas no perímetro das obras atinge 60% dos processos tratam do tema. Esses empecilhos impactam negativamente o desenvolvimento da infraestrutura e postergam investimentos necessários ao crescimento do país.

O contexto geral do projeto revisa o arcabouço legal da desapropriação por utilidade pública que é da década de 1940. A expectativa é a adequação da legislação aos atuais modelos de execução de obras, que evoluíram para uma nova formatação de contratos públicos, garantindo maior celeridade aos processos. O projeto de lei propõe avanços significativos no marco regulatório dos setores de infraestrutura, somando-se a outros incentivos do governo federal ao investimento nessas atividades.

A atividade de mineração nuclear é mais um caso que se soma aos anteriores e é igualmente emblemático do descompasso entre a regulação econômica do uso da terra e a dinâmica atual da economia. O Brasil, apesar de possuir uma das maiores reservas de urânio do mundo, com apenas 30% do território prospectado e dominar todo o ciclo da energia nuclear, ainda depende de importações para o desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro. Um dos motivos para isto é o fato do marco legal datar das décadas de 60 e 70, conferindo insegurança jurídica aos agentes do setor, uma vez que persistem dúvidas sobre se os dispositivos presentes no marco legal foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, a qual versa sobre o monopólio da União na pesquisa e lavra de minérios nucleares.

Um dos impactos decorrentes dessa insegurança é não haver interesse das mineradoras privadas de comunicarem ao Ministério de Minas e Energia a existência de minérios nucleares em jazidas nas quais exploram outros tipos de minério. Embora a estatal que detém o monopólio constitucional para explorar os referidos minérios, a Indústrias Nucleares do Brasil (INB), possa formar parcerias com agentes privados para captar recursos e absorver novas tecnologias, o marco regulatório vigente também não confere segurança jurídica para explorar todas essas possiblidades. Outro problema decorrente do marco legal é a governança do setor, uma vez que o Comitê de Desenvolvimento do Programa Nuclear Brasileiro (CDPNB), órgão de assessoramento do Presidente e composto por diversos ministérios envolvidos com o tema, não figura como o órgão superior de orientação e planejamento da atividade nuclear no país. Ademais, os dispositivos impõem restrições à exportação de minério nuclear, em especial urânio, pela INB.

Assim, para reduzir custos de transação e amparar outros incentivos ao investimento no setor nuclear, a atualização do marco legal faz-se necessária. A alteração pode proporcionar racionalização das competências das instituições envolvidas na regulação do setor nuclear, redução da burocracia para exportações e captação de recursos do setor privado para investimentos. São mudanças que possibilitariam ao Brasil ser um player relevante no mercado internacional dos minérios nucleares, bem como a realização de investimentos para desenvolvimento tecnológico e da economia onde estão localizadas as jazidas, o que se traduziria na geração de emprego e renda no interior do país.

As várias restrições ao uso da terra no Brasil aqui discutidas reduzem o alcance da cesta de direitos de propriedade do ativo “terra” no Brasil. É fundamental que se reduza a burocracia e se eliminem as barreiras à entrada para a exploração da terra no Brasil.

A crise do coronavirus nos lembra mais uma vez quais são os custos de não se ter uma economia mais livre de amarras. Os graus de liberdade que o país tem para minimizar o sofrimento da população são menores quanto menor a produtividade. Direitos de propriedade amplos criam incentivos para a maior produtividade, maior renda, emprego e produto. Se o país já vivia uma fase de recuperação de uma crise recessiva entre 2014 e 2017 em que não podia rejeitar as às vezes difíceis reformas microeconômicas que vão criar o arcabouço institucional e incentivos para a produtividade, isto ficou ainda mais verdade na crise do Covid-19. A revisão dos constrangimentos às atividades econômicas na terra constitui reforma a qual o Brasil não pode se dar ao luxo de abrir mão, sob pena de adiar ainda mais a imensa geração de riquezas potenciais.

 

César Mattos é Doutor em Economia e ex-Secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia SEAE/ME.

Claudio Evangelista de Carvalho é subsecretário de Competitividade e Melhorias Regulatórias da Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia SEAE/ME.

Maurício Marins Machado é coordenador-Geral de Desregulamentação e Competitividade da Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia SEAE/ME.

[4] A faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres conforme § 2º do art. 20 da Constituição Federal.

Sobre o Autor:

César Mattos, Claudio Carvalho e Maurício Machado

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