mar
24
2020

Setor elétrico: caso britânico mostra baixa adesão de cliente residencial ao mercado livre

 

Por Victor Ribeiro*

(*) Victor Ribeiro é fundador da consultoria Spoudaios, especializada no setor elétrico, e mestrando em Engenharia Elétrica pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Acumula passagens na área regulatória em energia de empresas como Vale, Queiroz Galvão e Brookfield Energia Renovável. Contato: victor.ribeiro@spoudaios-br.com.

 

O Projeto de Lei nº 232/16 (PLS 232), que trata da modernização do marco regulatório do setor elétrico, passou pela Comissão de Infraestrutura do Senado e segue agora para a Câmara dos Deputados, onde deve ser apensado ao PL 1917 e analisado em Comissão Especial. A redação proposta contém avanços importantes que colocam o setor elétrico brasileiro em consonância com o século 21.

Para esclarecer algumas das principais mudanças previstas no PLS, publicaremos neste espaço uma série de artigos comentando a reforma do setor vis à vis a experiência internacional. Neste artigo, discutiremos alguns aspectos da abertura do mercado de energia elétrica na Grã-Bretanha.

O texto aprovado no Senado prevê o estabelecimento de um cronograma para abertura total do mercado até 2024, por meio da redução gradual dos requisitos mínimos de carga para a migração ao mercado livre dos consumidores atendidos em baixa tensão (ex.: pequenos comércios e residências).

O plano de abertura do mercado prevê: 1) a realização de campanhas de comunicação para conscientização dos consumidores visando a sua atuação em um mercado liberalizado; 2) o aprimoramento da infraestrutura de medição, faturamento e modernização das redes elétricas, com foco na redução de barreiras técnicas e dos custos dos equipamentos, além da possibilidade de aplicação de tarifas variáveis; e 3) a regulamentação para o chamado “suprimento de última instância”, inclusive no que se refere às condições econômico-financeiras para a viabilidade e sustentabilidade dessa atividade.

A experiência internacional sinaliza que esses tópicos – campanhas de comunicação, tarifas, serviços de medição e de informação e o supridor de última instância – são fundamentais para o êxito da abertura de mercado, o qual se mede por meio de três parâmetros: (i) nível de engajamento do consumidor ao livre mercado; (ii) alternativas de escolha do fornecedor de energia elétrica; e (iii) redução de custos para o consumidor.

Na Grã-Bretanha, os consumidores têm a opção de escolher seu fornecedor de eletricidade desde 1999.

Apesar da cultura britânica pró-mercado e liberdade econômica, somente 20% dos consumidores haviam trocado de fornecedor para reduzir seus custos com energia elétrica pouco mais de 10 anos depois da abertura do mercado, em 2011, segundo pesquisa conduzida pelo OFGEM (regulador britânico). Esses 20% que migraram foram subdivididos em “proativos” (10%) e “reativos” (10%). Consumidores proativos são aqueles que conscientemente analisaram e trocaram de fornecedor de eletricidade no ano anterior. Os reativos são aqueles que trocaram de fornecedor somente por meio da ação de agentes comerciais.

Os demais 80% que permaneceram no mercado cativo foram classificados na pesquisa como “totalmente desengajados” (30%), “desengajados” (30) e “passivos” (20%). Os consumidores totalmente desengajados são aqueles nunca mudaram de fornecedor e que provavelmente não mudariam no futuro. Consumidores desengajados são aqueles que nunca trocaram de fornecedor, mas não descartariam a troca no futuro. Consumidores passivos são aqueles já trocaram de fornecedor em algum momento no passado, mas não no ano anterior.

O OFGEM realiza essa pesquisa anualmente, e os resultados publicados em 2017 mostram uma pequena evolução. No ano em questão, os números obtidos foram os seguintes: 25% dos consumidores alteraram de fornecedor nos últimos doze meses, e 15% compararam tarifas, mas não trocaram. E 59% eram consumidores desengajados, ou seja, nunca migraram. Na pesquisa de 2019, foi identificada uma mudança mais acentuada no mercado: 33% dos consumidores alteraram de fornecedor nos últimos doze meses; 16% compararam tarifas, mas não trocaram. E 51% eram consumidores desengajados.

O aumento do engajamento dos consumidores, cuja migração passou de 20%, em 2011, para 33%, em 2019, foi alcançado a partir de 2017, após o início da execução de campanhas de comunicação chamadas “nudge”(empurrãozinho): breves mensagens por celular ou e-mail, perguntando se o consumidor havia feito comparações de fornecedores ou se informando sobre o quanto de economia poderia ter tido no ano anterior se tivesse migrado.

A estratégia da campanha de nudge foi estruturada após o OFGEM ter conduzido um estudo com os consumidores em 2012 sob a ótica do Behavioral Economics: Quais vieses cognitivos estariam limitando a participação dos consumidores residenciais no mercado livre de energia?

Na pesquisa, foram identificados e analisados quatro vieses cognitivos. A tabela a seguir explica como cada um deles afetava a decisão dos consumidores residenciais britânicos:

 

A conclusão do estudo foi que as empresas se comunicavam de forma muito complexa com os consumidores. Além disso, a maioria dos usuários não tinha tempo para avaliar as alternativas favoráveis, e os poucos que avaliavam escolhiam a primeira opção (não se dedicavam a explorar outras opções que poderiam lhe ser mais favoráveis).

Apesar do diagnóstico e do esforço em melhorar a comunicação com os clientes, percebe-se que, mesmo após duas décadas de liberação do mercado de energia elétrica, em torno de 51% dos consumidores britânicos continuavam desengajados, não fazendo comparações entre os preços dos fornecedores de energia elétrica e não trocado de supridor.

Na realidade britânica, a percepção é que o grupo de consumidores desengajados é composto por dois perfis distintos de clientes, que ocupam extremos do espectro social: os de alta renda, cuja migração não proporcionaria uma economia relevante na conta de luz e, por isso, não buscam a troca de fornecedor, e os classificados como vulneráveis. Este é um tema importante para o caso brasileiro, tendo em vista que os clientes de baixa renda representam uma parcela importante da base de consumidores das concessionárias daqui.

Os consumidores vulneráveis foram definidos no ato legal de abertura do mercado (Section 3A (3) of the Electricity Act 1989) como sendo aqueles com doenças crônicas, pensionistas, baixa renda e moradores de áreas rurais, e são denominados pelo OFGEM como os que necessitam de serviços prioritários – Priority Service Registers (PSR). A participação de consumidores PSR na Grã-Bretanha vem aumentando gradativamente ao longo dos anos. Em 2006, eram menos de 5% do número total de consumidores. Atualmente, entre 20% e 25%, dependendo do país.

 

Os consumidores PSR representam um grande desafio regulatório tanto para as distribuidoras como para os comercializadores varejistas. Por um lado, as distribuidoras, que são as fornecedoras de última instância, devem aplicar tarifas subsidiadas. Para efeito de comparação, essa política social custou cerca de 2,5 bilhões de libras em 2018 pagos pelos contribuintes britânicos. Além disso, devem cumprir uma série de medidas setoriais e sociais, tais como, por exemplo, cadastrar todos os consumidores classificados como PSR, conduzir campanhas de eficiência energética e executar políticas de faturamento diferenciadas (medidores pré-pagos, leituras trimestrais, etc), contexto que se assemelha significativamente à realidade das distribuidoras brasileiras.

Por outro lado, os consumidores varejistas não podem rejeitar o acesso ao mercado livre pelos consumidores PSR. Inclusive, o OFGEM enxerga a migração como sendo uma ferramenta para a redução no custo com energia elétrica destes clientes sem mais depender de subsídios. Dois dentre os diversos programas existentes de inclusão dos consumidores PSR ao mercado livre são o Big Energy Savings Network (BESN) e Energy Best Deal Extra run by Citizens Advice (EACA), os quais auxiliaram mais de um milhão de consumidores PSR no ano de 2013.

A experiência britânica mostra que os desafios de engajamento dos consumidores de baixa tensão ao mercado livre no Brasil serão enormes, especialmente se for levado em conta que, hoje, os consumidores já têm dificuldade em compreender o que paga na conta de luz pela grande complexidade do setor elétrico brasileiro. Contudo, o Brasil tem a favor um grande histórico de experiências e aprendizados em outros mercados que poderão auxiliar no êxito da abertura de mercado livre brasileiro para garantir que a liberdade de escolha se traduza, de fato, em um benefício para toda a sociedade brasileira.

Arttigo publicado originalmente pelo Broadcast da Agência Estado em 18/03/2020.

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Victor Ribeiro

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