nov
21
2019

Economia da Privatização

César Mattos é ex-Secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia.

 

“Smith observou que não há personagens mais distantes do que o soberano e o empreendedor no sentido que as pessoas tendem a ser mais generosas com os recursos de terceiros do que com os seus próprios, e de que a administração pública poderia levar ao uso ineficiente dos ativos dado que os servidores públicos não têm um interesse direto em seu desempenho econômico. De acordo com Smith (1776), a venda de propriedade pública (a qual naquele tempo era a própria terra) também tinha um outro efeito: as receitas podem ser alocadas para a redução da dívida pública; e a redução das despesas com juros alivia as finanças públicas em maior medida que a propriedade da terra. Com a privatização, portanto, a eficiência é ampliada. … Como frequentemente acontece, intuições simples possuem um toque de verdade … após vinte anos de experiência, a intuição de Adam Smith tem sido amplamente confirmada. Graças à transferência de direitos de propriedade, as companhias privatizadas têm melhorado amplamente sua eficiência. E os países que têm privatizado, têm reduzido suas dívidas e déficits públicos”.

 

Bortolotti, B. e Siniscalco, D. The Challenges of Privatization: An International Analysis, 2004.

 

  1. I) Introdução

 

A agenda de privatização voltou com carga total ao Brasil após ter “hibernado” desde o final do governo FHC. Enquanto houve alguma atividade de concessão de infraestruturas de rodovias, aeroportos, setor elétrico e portos nos governos Lula e Dilma[1], a venda permanente de ativos do Estado ao setor privado, como foram os casos dos setores siderúrgico, mineral (CVRD), fertilizantes, aeronáutico, entre outros, foi simplesmente interrompida.

 

O Governo Temer enviou ao Congresso o Projeto de Lei nº 9.463, de 2018, que trata da autorização para a alienação do controle da Eletrobrás, mas que acabou não indo adiante. Também criou a Secretaria do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), que contou com ambicioso programa de desestatizações.

Conforme o Boletim das Empresas Estatais Federais do segundo trimestre de 2019, havia um total de 133 empresas estatais federais. No governo Bolsonaro, o programa de privatização ganhou grande impulso, tendo já avançado na alienação da BR distribuidora, dois gasodutos e planejado a alienação de cerca de 50% de seu parque de refino. Planeja-se ainda seguir com a privatização da Eletrobrás, Telebrás, Correios, dentre outras.

 

Neste artigo resgatamos as bases do debate econômico sobre por que privatizar.

 

  1. II) Privatização e Desenvolvimento

 

Segundo Bortolotti e Siniscalco (2004), “a privatização constitui um dos principais eventos da história econômica e financeira mundial do período pós-guerra”.

 

De fato, a racionalidade econômica para a privatização em geral já se encontra bem estabelecida na literatura econômica[2]. Não à toa, foi uma política muito implementada nos países desenvolvidos, que, conforme a resenha de Megginson e Netter (2001), fez com que o peso das empresas estatais se reduzisse pela metade. Já em países menos desenvolvidos, o progresso da privatização ainda apresentava maior dificuldade no início do século XXI.

 

Do ponto de vista teórico, como destacado no já citado Bortolotti e Siniscalco (2004), é conhecido o “teorema da irrelevância da privatização”, que define em quais condições uma empresa ser estatal ou privada não faz diferença. No entanto, os autores destacam que o teorema da irrelevância se baseia em uma hipótese totalmente irrealista: contratos contingentes completos de longo prazo entre o gerente da empresa (estatal ou privada) e o regulador podem ser desenhados e ter o seu enforcement garantido.

 

Como há investimentos específicos afundados que não são contratáveis, tal como a quantidade de esforço empregada pelo gerente para reestruturar uma firma e reorganizar a produção, o volume de investimentos efetuado tende a ser excessivamente baixo, gerando a ineficiência destacada por Adam Smith na ementa. Nesse contexto de “contratos incompletos”, a propriedade da empresa (estatal ou privada) altera dramaticamente o seu desempenho, explicando “porque a privatização importa, i.e. porque as estatais se comportam de forma diferente das firmas privatizadas”.

 

O primeiro grande programa de privatização de sucesso no mundo se iniciou no Reino Unido, sob o governo conservador de Margaret Thatcher em 1979. Curiosamente, a privatização não chegou a ser um tema proeminente da campanha que levou os conservadores ao poder e foi recebida com muitas críticas pela sociedade britânica. Os trabalhistas na oposição chegaram a prometer retornar as empresas à condição de estatais tão logo retornassem ao poder. A privatização mais marcante do Reino Unido foi a da British Telecom em 1984.

 

O sucesso do programa britânico foi tão grande que os conservadores acabaram obtendo um largo apoio político, o que explica pelo menos uma parcela da longa era Thatcher no poder. O Reino Unido virou uma referência de experiência em privatização. Seus principais objetivos, ainda segundo Bortolotti e Siniscalco (2004), foram o incremento da eficiência das companhias, a redução do déficit fiscal, a liberdade do consumidor, a liberalização de monopólios públicos, o desenvolvimento de mercados financeiros e a democratização do capital acionário das empresas para a população em geral. Mesmo quando se vendia o controle a investidores estratégicos, em vários casos, uma parte das ações foi pulverizada pela venda nos mercados em bolsa. Conforme os autores, nos países da América Latina, além destes objetivos, caberia um objetivo adicional: atrair capital estrangeiro de forma a facilitar a importação de tecnologia.

 

A Europa Continental, por sua vez, passou a adotar um programa de privatização de larga escala a partir de meados da década de 80. Portugal, Espanha, Holanda e Suécia adotaram a política de privatização em 1989, sendo que Bélgica, Grécia e Irlanda passaram a efetivamente se engajar no processo ao longo dos anos 90, tal como o Brasil. De qualquer forma, as grandes empresas de telecomunicações e energia elétrica apenas iniciaram seu processo na Europa Continental a partir de 1994. A América Latina, a Oceania e a Ásia vieram em seguida, sendo que o Norte da África, o Oriente Médio e a África Subsaariana iniciaram seus respectivos processos de privatização apenas no início deste século.

 

Bortolotti e Siniscalco (2004) sugerem, inclusive, uma sequência lógica do processo de desenvolvimento dos países em geral, na qual a fase inicial requereria uma maior intervenção direta do Estado via empresas estatais no setor de infraestrutura e a fase subsequente contaria com a provisão privada de serviços públicos após processo de privatização: “Com base nestas observações agregadas, pode-se pensar que a privatização seria a consequência espontânea e inevitável do desenvolvimento econômico, e que sua evolução seria largamente independente das especificidades históricas de cada país. Nos estágios iniciais de desenvolvimento, apenas o Estado poderia promover a acumulação de capital na infraestrutura e nas indústrias capital-intensivas. Uma vez que o processo de desenvolvimento foi colocado em movimento, o Estado gradualmente se retiraria da economia por meio da privatização. À fase Colbert[3] se seguiria a fase Thatcherista, uma forma de determinismo que ecoaria, pelo menos no método, a teoria dos estágios de desenvolvimento.”

 

Acreditamos, no entanto, que o “período Colbert” de desenvolvimento guiado pelo Estado via estatais possa ser requerido mais por uma questão institucional da relação Estado/setor privado do que por uma incompetência ou aversão ao risco do setor privado para iniciar negócios nos setores de infraestrutura de um país.

 

De fato, o sucesso de uma política de privatização é muito ligado ao apoio dado pela sociedade civil ao programa. Isto porque os governos em geral, especialmente aqueles de países com baixas dotações institucionais no jargão de North (1990), detêm escassa capacidade de se comprometer a não ter comportamentos oportunistas no futuro. Ou seja, tais governos não são capazes de se comprometer hoje a não adotar uma política futura de expropriação do investimento privado[4] em áreas de infraestrutura, que são, em geral, muito sensíveis do ponto de vista político, especialmente as tarifas do serviço.

 

A incerteza dos investidores sobre as preferências futuras do governo são, portanto, importantes elementos a restringir o processo de privatização. Mais uma vez, ativos específicos afundados de longo prazo de maturação são especialmente vulneráveis a este tipo de expropriação.

Isso explica, em boa parte, a aversão ao risco que acometeu boa parte do setor privado por muito tempo nos setores de infraestrutura em vários países, à exceção dos EUA. Sabendo que os governos dificilmente resistiriam à atração fatal populista de expropriar investimentos nestes setores, especialmente forçando tarifas artificialmente baixas, os próprios agentes privados preferiram se manter à distância, apesar de terem sido os primeiros investidores em setores como telecomunicações e energia elétrica, antes dos governos, inclusive no Brasil.

 

Ou seja, o desinteresse do setor privado nos setores de infraestrutura no mundo todo por um longo período de tempo pode ter se derivado mais do risco de comportamentos oportunistas dos governos com as várias formas de expropriação dos ativos, em um ambiente de escassa blindagem institucional, especialmente por um Judiciário independente e não populista, do que de uma falta de apetite intrínseca do setor privado por estes setores. Em síntese, o risco que os afastou foi mais o político do que o de negócio.

 

As melhorias institucionais havidas em vários países, especialmente na garantia do equilíbrio econômico financeiro dos contratos regulatórios com empresas privadas por Judiciários independentes e minimamente atentos à importância da segurança jurídica para o investidor privado, garantindo-os contra o oportunismo de governos populistas, explicariam pelo menos parte do incremento do interesse privado na infraestrutura mundial nas últimas três décadas[5].

 

Uma das formas encontradas para a blindagem institucional foi a venda das ações das estatais para a classe média, o que, segundo Bortolotti e Siniscalco (2004) “pode criar um grupo da sociedade com interesse em aumentar o valor dos ativos e avesso às políticas redistributivas das esquerdas”. Isso tornaria a eventual tentativa de reestatização ou de outros comportamentos oportunistas mais custosos para o governo. Segundo os autores, na experiência britânica, “a distribuição de ações a um preço descontado fez com que a re-nacionalização (proposta no programa eleitoral do partido trabalhista) ficasse mais custosa e, portanto, menos provável de encontrar suporte popular enquanto simultaneamente aumentou o apoio aos conservadores”.

 

No Brasil, o grosso das privatizações ocorreu ao longo da década de noventa. Não houve reversões após o longo período de hegemonia de um governo de esquerda entre 2003 e 2016, apesar de alguns atos hostis que cheiraram a expropriação, como na discussão sobre tarifas de telecomunicações de 2003[6], na tentativa de indução à redução forçada da tarifa de energia implementada pela Medida Provisória 579, de 2013, e no discurso geralmente hostil à privatização. Entendemos que, de forma geral, o país passou pela “prova de fogo” da blindagem institucional à expropriação do investimento.

 

III) Soft Budget e Take-Overs

 

A empresa estatal tem o que se chama de soft budget, ou seja, o governo tende a resgatá-la quando tem problemas financeiros, gerando um genuíno problema de moral hazard. Isso significa que o acionista “governo”, sem objetivo de lucro, tende a ser mais tolerante que o privado aos prejuízos gerados por má gestão. Nesse caso, o “acionista governo” tende a responder à situação aportando novos recursos para resgatar a empresa com problemas, o chamado bailing-out.

Ou seja, quando a estatal quebra, normalmente não vai à falência, tornando este tipo de empresa relativamente mais inclinada a entrar em investimentos e ações mais arriscados do que a privada. Afinal, se o acionista majoritário é relativamente mais tolerante com os prejuízos do que a empresa privada, por que os dirigentes da estatal deverão se esforçar para serem mais cuidadosos?

A privatização transforma os incentivos gerenciais. Os gestores privados seriam mais “disciplinados” pelo mercado de capitais ao sofrerem maior ameaça de take-overs hostis de outras empresas mais eficientes. Se tais gestores forem ineficientes no setor privado, outros investidores podem acabar comprando ações que impliquem transferência ou nova dinâmica do controle da empresa de modo a equacionar as ineficiências. Provavelmente na transformação da empresa de ineficiente para eficiente, a mudança dos gestores será um ingrediente fundamental. Na estatal este processo é inibido, pois a empresa deve permanecer com controle do governo, que tem uma lógica política e não econômica de indicação dos gestores.

O gestor da estatal tende a perder o emprego mais porque não beneficiou o fornecedor da preferência de algum agente político do que pelo fato de ser incompetente da perspectiva da eficiência empresarial.

Relacionado a isso está o fato de que a função objetivo da empresa estatal é uma variável menos objetiva que o lucro (que é um número), objetivo por excelência da empresa privada. Esta maior subjetividade da função objetivo da estatal torna mais difícil avaliar a competência do gestor relativamente a uma empresa privada. Avaliaremos este ponto com mais cuidado abaixo.

Reconhece-se, de outro lado, que há bail-outs também de empresas privadas pelo governo, como foi o muito citado caso da General Motors à época da crise de 2008/9 nos EUA. A frequência deste tipo de evento, no entanto, é bem menor do que em estatais.

 

  1. IV) Incentivo a Ofertar o que o Consumidor Deseja

 

As empresas privadas têm um maior incentivo a produzir bens e serviços na quantidade e na variedade preferidas pelos consumidores, dado que seguem mais de perto os sinais de mercado para serem capazes de deslocar a curva de demanda para cima, vendendo mais e mais caro.

Isso está diretamente associado ao objetivo de maximização do lucro da empresa privada: como bens e serviços mais associados às preferências do consumidor implicam quantidades e/ou preços maiores, variáveis que contribuem com o aumento do lucro, a utilização dos sinais de mercado tende a ser maior na empresa privada. O deslocamento da curva de demanda para cima, por um aumento da qualidade dos produtos, é incentivado pela busca de maior lucro, característica da empresa privada. Daí que há um maior incentivo, em média, na iniciativa privada, relativamente ao setor público, a buscar o bem ou serviço que mais agrada ao consumidor. E isto será tão mais verdade quanto mais concorrência houver no mercado.

A disciplina do mercado de capitais, por sua vez, acentua este processo de busca do que o consumidor mais deseja na empresa privada. Se a empresa não vender e/ou vender a preços menores por ter produtos/serviços de baixa qualidade, gerando prejuízos, o valor das ações cai. Isso indica, em última análise, que ela não está produzindo o que os consumidores mais desejam comprar.

Em síntese, como argumentado por Beesley e Littlechild (1997) “vender uma empresa estatal substitui a influência governamental pela disciplina de mercado” e isso gera um impacto significativo nos incentivos para a empresa buscar melhor atender o consumidor, ser mais produtiva e inovadora. O maior ganho da privatização, afinal, tende a ser alterar a estrutura de incentivos da empresa e seus gestores.

 

  1. V) Clareza de Objetivos

 

Os objetivos tendem a ser mais claros na empresa privada do que na empresa estatal. Como já destacado, na empresa privada o objetivo é uma variável quantificável muito concreta que é o lucro. Na empresa estatal o objetivo do que se entende por “bem-estar social” tende a ser muito mais difuso e subjetivo.

De fato, as empresas estatais apresentam muitos objetivos não econômicos como a universalização do serviço, o que inclui a exploração em áreas não lucrativas, mas com alegado impacto social (ou político). As empresas privadas também teriam menor apego ao objetivo de evitar demissões de empregados, no que a estatal é bastante sensível. O fato é que a existência de múltiplos objetivos com pouca clareza torna difícil mensurar resultados, obscurecendo a eficácia e eficiência da empresa.

Mas afinal, qual é o objetivo da empresa estatal? O Banco Mundial (1995) afirma que: “Os burocratas tipicamente operam mal os negócios, não porque sejam incompetentes (eles não o são), mas porque se deparam com objetivos contraditórios e incentivos perversos que podem desestimular e desencorajar mesmo os mais capacitados e dedicados funcionários públicos”. Ou seja, a falta de clareza nos objetivos constitui forte comprometedor dos incentivos dos gestores.

Pinheiro (1996), avaliando os efeitos microeconômicos da privatização no Brasil, também destaca a dupla face das empresas estatais com objetivos comerciais de um lado e de política pública de outro: “Esta dupla face tem um impacto negativo sobre a eficiência econômica pois: i) os gerentes das empresas estatais nem sempre têm clareza dos objetivos do acionista controlador, o setor público, o que dificulta a tomada de decisões e a alocação de recursos; ii) os objetivos sociais são usualmente alcançados com o sacrifício dos objetivos comerciais e da rentabilidade da empresa. Esta situação contrasta com a existente no setor privado, onde as empresas e sua direção são orientadas pelo objetivo maior do lucro”.

Cave (1990), discutindo a experiência de privatização britânica, nega que o bem estar social (seja lá o que isto significa) seria o objetivo principal das estatais. Segundo o autor, “empresas estatais maximizam o seu suporte político” e não o bem estar social, o que é corroborado pela evidência empírica de Shleifer e Vishny (1994).

Niskanen (1975), citado por Sidak e Sappington (2003a), destaca que os gerentes das empresas estatais usualmente seriam avaliados não pelos lucros, mas pelo crescimento puro e simples da empresa que eles chefiam. Assim, a função objetivo do agente seria primordialmente maximizar o tamanho das operações da empresa, independente de se os projetos geram retorno ou não. Não é nada claro que uma empresa ser grande é sempre positivo para o bem estar social.

A falta de clareza dos objetivos afeta, naturalmente, os incentivos gerenciais das estatais. Este problema foi endereçado por vários governos e organizações multilaterais nas décadas de setenta e oitenta, conforme Musacchio e Lazzarini (2014). Nesse contexto, o governo francês passou a adotar um plano contratual destinado a “atacar os problemas de objetivos confusos ou mutantes, autonomia insuficiente dos gestores e sistemas de controle demasiado restritivos, que eram percebidos como grandes obstáculos à eficiência e à produtividade das empresas públicas”. O governo francês propunha investimentos, emprego, dentre outros objetivos em troca de maior autonomia e compensações por obrigações impostas pelo governo. Como mostram os autores, tais planos, que também foram adotados em outros países, fracassaram em grande parte.

 

  1. VI) Problema de Agente/Principal, Grupos de Interesse e Captura

 

O problema de agente/principal é uma característica geral das empresas modernas não geridas (parcial ou completamente) pelos seus acionistas. Há um problema de moral hazard entre o acionista principal, que deseja o maior esforço do gestor para gerar o maior lucro possível, e o deste mesmo gestor, que pode ter vários outros objetivos, como mais lazer, mais publicidade (para ele próprio), etc.

Na verdade, pode ocorrer na relação entre o proprietário e todos os seus contratados, gestores ou não. O problema será tão maior quanto mais distante da administração estiverem os proprietários principais[7]. Nesse contexto, o problema de agente/principal tende a ser mais significativo nas empresas estatais em virtude da enorme distância dos “principais” da sociedade com os agentes relativamente às empresas privadas.

De fato, enquanto nas empresas privadas os principais são um conjunto de acionistas, nas estatais os principais são representados por toda a sociedade. O problema de ação coletiva (free-riding) é naturalmente muito mais severo no “grupo da sociedade” do que grupo (menor) dos acionistas.

Na empresa privada há um conjunto de principais de um lado, representado pelos acionistas, e os agentes, representado pelos gestores da empresa, de outro. Já na empresa estatal, há dois níveis de “principais”, o ministério ao qual a empresa estatal está ligada e os “proprietários finais”, que são os cidadãos comuns. Naturalmente a função objetivo do principal “ministério” ou “governo” nem sempre está em sintonia com a função objetivo do principal “sociedade”. Naturalmente, o agente “gestor da estatal” será mais responsivo ao “principal intermediário” “governo”, que não obrigatoriamente (ou quase sempre) é o mesmo da sociedade. Também podemos pensar no ministério ou políticos como “agentes” intermediários da sociedade frente aos “agentes” finais, representados pelos gestores da empresa estatal. Haveria, portanto, diversas camadas de agentes/principais na gestão da empresa estatal.

O ponto principal é que isto torna os problemas de agente/principal muito mais complexos em empresas estatais do que em empresas privadas. Para Aharoni (1982), o problema é tão agudo que as estatais seriam como agentes sem principais bem definidos, o que dificultaria medir o desempenho da empresa: “O principal (a população) seria representado por uma coalizão frouxa de agentes: o ministro da pasta a que está ligada a estatal, o Tesouro, os funcionários públicos, outros ministros, e o parlamento. Suas decisões são influenciadas por todo o tipo de grupos de interesse -consumidores, sindicatos, e outros- todos alegando algum direito de participar no processo de formulação dos objetivos da empresa … A falta de acordo sobre objetivos parece estar na raiz de muitas das dificuldades indicadas nos estudos sobre empresas estatais … O problema de definir objetivos para as estatais permanece em grande medida não resolvido”.

Musacchio e Lazzarini (2014) destacam a ignorância dos próprios gestores sobre quem seria, afinal, o principal: “Muitas atividades do setor público envolvem vários principais dispersos em várias áreas. Ao mesmo tempo, os próprios gestores de estatais podem não saber quem é o principal mais importante e a quem devem prestar contas. Seria o governo, um ministro, uma holding estatal ou a população em geral? Não raro, os empregados das estatais sentem que esses próprios são o principal”.

Aharoni (1982) aponta ainda que: “Em geral, a experiência mostra que quanto maior a firma, mais independente ela é do governo”. Ou seja, o problema de agente/principal das grandes holdings como a Eletrobrás ou Petrobras tende a ser pior do que para estatais menores.

Em síntese, a propriedade extremamente difusa da empresa estatal (sociedade como um todo) comparada à sociedade anônima ou outros arranjos societários privados tende a aprofundar significativamente os problemas de agente/principal entre “acionistas” e gestores. Na verdade, o mais importante “principal” a ser considerado pelos gestores tende a ser um agente político que conta com uma assimetria de informação gigantesca comparativamente ao resto da população em relação à operação da estatal.

Este problema mais agudo de agente/principal das empresas estatais as torna mais propensas à captura por organizações de interesses especiais, o que inclui os sindicatos dos próprios trabalhadores da empresa e os partidos políticos. O exemplo recente da Petrobrás é bastante eloquente quanto a isso. Será que tal empresa teria aceitado ser roubada por tanto tempo da forma que foi se fosse privada?

No caso da Petrobrás, estes agentes (ou principais) intermediários foram chave para entender todo o processo de captura da empresa pelos grupos de interesse, empreiteiros em geral, e dos esquemas de propina envolvidos no Petrolão.

O problema de agente/principal ensejou a discussão e promulgação de uma lei de responsabilidade em empresas estatais (Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016) no Brasil. Isto pode mitigar, mas dificilmente resolverá o problema.

 

VII) Baixa Capacidade de Planejamento e Execução do Estado

 

As dificuldades maiores com os problemas de agente/principal e grupos de interesse e corrupção fazem com que o governo defina um sem número de regras tanto dentro como fora das estatais para limitar a discricionariedade de seus gestores. A complicação de atuar com regras estritas de contratação (tal como as regras mais gerais da administração pública inscritas na Lei 8.666/93) é sobejamente conhecida, afetando significativamente a agilidade e competitividade da empresa. Quando uma estatal precisa de um insumo mais elaborado, abrir licitação com regras com muita ênfase na impessoalidade (típica da administração pública) e no “menor preço” pode comprometer a qualidade do produto ou serviço.

Se de um lado, regras mais estritas de contratação das empresas podem, em tese, dificultar a corrupção, elas também diminuem a margem de manobra dos gestores públicos, complicando excessivamente o processo de tomada de decisão relativamente às empresas privadas.

 

VIII) Impacto nas Finanças Públicas

 

Uma das motivações mais proeminentes, na prática, para privatizar é o impacto positivo sobre as finanças públicas, como observado por Adam Smith na ementa. Há mais de um canal possível dos efeitos da privatização sobre as contas do governo. Primeiro, quando se privatiza com base no maior valor de outorga, ou diluindo a participação acionária da União, como no caso proposto para a Eletrobrás, as receitas de privatização são usualmente utilizadas para abater dívida pública.

Segundo, como a taxa de lucro das estatais é, em geral, inferior aos juros pagos no serviço da dívida pública, o efeito positivo da privatização não é apenas sobre o estoque de dívida, mas também sobre o superávit/déficit nominal do setor público[8]. Para se ter uma ideia, conforme o Boletim das Empresas Estatais Federais de 2019 do Ministério da Economia, foram distribuídos dividendos dos grupos Petrobras, Eletrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES no valor total de R$ 11,6 bilhões em 2018. No mesmo ano, a soma do patrimônio líquido destas empresas atingiu R$ 602,5 bilhões. A relação dos dividendos e patrimônio líquido deste grupo de empresas foi de 1,92% em 2018. Já a Selic média neste ano ficou entre 6,40% e 6,65%, dando uma ideia do custo de oportunidade das empresas estatais.

Mesmo que a empresa seja lucrativa, é frequente que a maior eficiência da empresa privada gere, em termos de impostos, mais do que os lucros obtidos. Assim, a privatização influencia as finanças públicas não só pelo lado do estoque (abatendo dívida) como pelo fluxo, reduzindo déficit pela redução de pagamento de juros da dívida mais incremento dos tributos relativamente à redução da transferência dos lucros para o Tesouro.

Como mostram Bortolotti e Siniscalco (2004), vários países vinculam as receitas de privatização com a amortização de dívidas, compensando a redução de um ativo do governo (a empresa) com a redução de um passivo (a dívida), inclusive com a criação de fundos específicos para tal propósito.

Os autores destacam que na Europa muito da motivação para privatizar esteve relacionada ao cumprimento das metas de equilíbrio fiscal do Tratado de Maastrich, podendo-se concluir até que a venda de estatais é mais frequentemente imposta por circunstâncias externas, como o equilíbrio fiscal, do que livremente escolhida por motivações de eficiência econômica.

 

  1. IX) Escassez de Recursos Públicos e a Crise do Investimento em Infraestrutura

 

Associado à questão do impacto da privatização sobre as finanças públicas, há o fato de que o modelo de investimento em infraestrutura baseado em recursos do Estado se esgotou pela crise fiscal. Simplesmente, não há mais recursos disponíveis para investimento público já há muito tempo, sendo indispensável aumentar significativamente a participação privada.

Há um grande consenso de que a retomada do crescimento econômico no Brasil passa obrigatoriamente pela recuperação dos investimentos em infraestrutura. Estache (2012), em um estudo do Banco Mundial, estima que os países da América Latina necessitam de uma proporção do investimento em infraestrutura como proporção do PIB entre 4 e 6% para a sustentação do crescimento econômico.

No entanto, como mostram Frischtak (2012) e Inter B (2016, 2018 e 2019), a proporção do investimento em infraestrutura em relação ao PIB no Brasil tem ficado muito abaixo disso, tendo alcançado uma média de 2,14% entre 2001 e 2012, mantendo-se no patamar de 2,3% no biênio 2013/14 e caindo desde então para 2,1% em 2015, 1,95% em 2016, 1,69% em 2017 e 1,82% em 2018, com estimativas de 1,87% do PIB para 2019. Inter B (2019) estima uma necessidade de investimento anual para modernizar a infraestrutura no Brasil em 4,15% do PIB. Ou seja, estamos mais de 2 pontos percentuais atrás do requerido.

Nesse contexto, o aporte de capital privado se torna fundamental para a urgente retomada dos investimentos em infraestrutura e a privatização constitui uma ferramenta de grande utilidade para tal propósito.

 

  1. X) Poder de Mercado

 

A principal crítica à privatização diz respeito, como destacam Beesley e Littlechild (1997), ao incentivo que uma firma privada tem de explorar todo o seu poder de mercado, o que é especialmente relevante nos setores de infraestrutura, com problemas de concorrência ou até monopólios naturais. Ou seja, a tendência de uma empresa privada cobrar preços de monopólio, com todo o seu custo em termos de perda de peso morto para a economia, seria maior do que em uma empresa estatal que não busca a maximização de lucros.

O problema do potencial exercício do poder de mercado foi talvez o principal ponto indicado pelas teorias do “interesse público” em favor da operação estatal dos serviços de infraestrutura. Esta linha de argumentação, no entanto, basicamente abstraiu os problemas de agente/principal e assumiu que o burocrata sempre agiria em favor do público, maximizando uma função de bem-estar social, a qual inclusive incorporaria objetivos distributivos e de universalização do serviço e geração de empregos, tal como mencionado em Vickers e Yarrow (1988).

A emergência de problemas relacionados ao poder de mercado, que podem também surgir em empresas estatais, indicam que a privatização tende a ser mais bem sucedida se for acompanhada de políticas regulatórias que corrijam a falha de mercado denominada “poder de mercado”, seja estimulando a competição, seja remediando suas consequências como por meio de controle regulatório de tarifas, inclusive de acesso à infraestrutura.

De fato, pode-se afirmar que privatização, regulação e competição são políticas complementares entre si. Como colocado por Vickers e Yarrow (1988)¸ “o impacto de mudanças de cada uma dessas (propriedade pública ou privada, competição e regulação) sobre a eficiência será, em geral, contingente às outras duas”. Conforme esses autores, a privatização e a competição tendem a ser tão associadas que, quando não há concorrência, tende a não existir diferença relevante no desempenho entre empresas estatais e privadas. A diferença significativa ocorreria quando há concorrência, em favor das empresas privadas.

De outro lado, a questão fiscal foi muitas vezes tão proeminente nas privatizações em todo o mundo que o próprio formato da privatização privilegiou a maximização da receita em detrimento da concorrência. Em alguns casos, vendeu-se a empresa como um monopólio (Telecomunicações na Argentina e México) ou com um poder de mercado razoável (duopólio nas telecomunicações no Reino Unido) para torná-las mais atrativas, incrementar os lances no leilão e obter mais receitas de privatização[9].

Há, no entanto, uma grande ineficiência gerada por esta estratégia, pois a privatização, como arguido, tende a tornar o setor mais eficiente quanto maior a concorrência. Newbery (2000), por exemplo, mostra que a produtividade da British Telecom (BT) privatizada, como proporção da produtividade da indústria inglesa, é constante entre o ano da privatização (1984) até o início dos 90s, quando se abre o setor plenamente à competição, após o fim da política de duopólio implementada inicialmente. Após a introdução da política de livre entrada, a produtividade da BT passa a se incrementar acima da produtividade da indústria inglesa, sendo um exemplo da conexão entre competição e eficiência em um ambiente pós-privatização.

 

  1. XI) Objetivos Diferentes de Maximização de Lucros e Comportamento Anticompetitivo

 

Sidak e Sappington (2003ª)[10] destacam que o fato de uma estatal perseguir outros objetivos que não o lucro tornaria, na realidade, o seu comportamento mais agressivo no sentido de empreender comportamentos anticompetitivos, como o preço predatório, por exemplo. Conforme os autores, dado que as estatais tendem a privilegiar o seu crescimento puro e simples e não o lucro, a empresa “se torna menos avessa aos altos custos que emergem de uma produção maior … definindo preços particularmente baixos para os produtos nos quais ela se depara com elevada competição”.

Por exemplo, os autores mostram que estatais possuem maiores incentivos a implementar políticas de preços predatórios, financiadas por subsídios cruzados oriundos de outras atividades da empresa. No caso desta conduta, utiliza-se usualmente na doutrina antitruste para empresas privadas que maximizam lucros, o teste de Joskow e Klevorick (1979) de dois estágios: primeiro avalia-se se a empresa possui capacidade de recuperação futura dos prejuízos incorridos; segundo, comparam-se os preços aos custos variáveis médios.

Defendem Sidak e Sappington (2003a) que, para estatais, seria desnecessário avaliar o primeiro estágio, pois o investimento em predação apenas objetiva a expansão no mercado e não o aumento de lucros. Os autores prosseguem, afirmando que estatais também possuem maiores incentivos para aumentar o custo do rival: “Dado que uma estatal deve ter um grande incentivo a promover práticas anticompetitivas e a desrespeitar relativamente mais a lei antitruste em relação às suas competidoras privadas, cabe implementar uma vigilância mais forte nas atividades de mercado das Estatais. Também é mais apropriado sujeitar uma Estatal a leis de concorrência mais severas, além de penas mais pesadas por sua violação”.

São interessantes, neste particular, as consequências enfatizadas por Brittan (1984), citado por Cave (1990), do problema de soft-budget para a estratégia hostil à concorrência de outras firmas, muitas vezes adotadas por estatais: “Com o Tesouro disposto a cobrir perdas, o autor argumentou que os entrantes provavelmente não entrariam para competir com uma empresa estatal incumbente … também, a atitude governamental de monitoramento da estatal deve certamente afetar a factibilidade de se incorrer em perdas de curto prazo para deter um possível entrante e, portanto, a credibilidade da estratégia de impedimento à entrada.”

 

XII) Abandono de Objetivos de Universalização e Geração de Empregos

 

Empresas privadas estariam menos dispostas que as estatais a, voluntariamente, realizar serviços para clientes ou áreas pouco atrativas economicamente, mas com valor alegadamente “social”. Em geral, a empresa estatal está mais disposta a promover subsídios cruzados das áreas e/ou clientes mais superavitários para os mais deficitários.

Este tipo de conduta da estatal tende a ser vista de forma positiva por alguns. Como as empresas privadas apenas se interessariam pelos serviços superavitários, a privatização poderia comprometer em alguma medida o objetivo de universalização dos serviços, um ponto particularmente relevante para um serviço como energia elétrica. Ademais, uma consequência usual da privatização é a demissão de trabalhadores, o que também pode ser mal visto, ainda que haja, de fato, excesso de trabalhadores e baixa produtividade na estatal.

Apesar de a menor atenção à universalização dos serviços e o possível enxugamento de pessoal serem tomados usualmente como subprodutos negativos da privatização, estes efeitos também têm um lado bastante positivo se considerado o custo de oportunidade da economia no uso dos recursos. De fato, a empresa privada é bem menos propensa a investimentos em projetos sem justificativa econômica, os chamados “elefantes brancos”, que dragam de forma excessiva recursos da economia que poderiam estar sendo utilizados de outra forma, inclusive para projetos de interesse realmente social. A contratação de um número excessivo de empregados nas estatais também drena a disponibilização de recursos humanos para outros setores da economia, onde seriam mais produtivos e/ou com maior impacto social.

De qualquer forma, o governo pode utilizar outros instrumentos para mitigar os problemas sociais decorrentes de demissões ou de abandono da perseguição de objetivos não econômicos pelas empresas privatizadas. Quando passa a regular por um contrato regulatório, o Estado pode impor objetivos de investimento, incluindo a universalização, como obrigações contratuais ou prover subsídios para tal fim, tornando mais transparente o custo do objetivo não econômico.

Programas de retreinamento e seguro desemprego também mitigam problemas relativos ao eventual desemprego de antigos funcionários das estatais. Como a folha de salários de estatais é, em geral, sobrecarregada, este enxugamento de pessoal seria economicamente eficiente e beneficiaria a sociedade como um todo pela provisão de um serviço menos custoso.

De fato, tanto a remoção do ônus dos setores deficitários quanto a demissão de trabalhadores tende a reduzir preços para os consumidores dos serviços superavitários pela eliminação do subsídio cruzado.

No caso da remoção do ônus dos setores deficitários, poderia haver uma redistribuição de renda dos consumidores em serviços/regiões mais deficitários para os mais superavitários. Como os primeiros em geral são mais pobres, haveria um impacto social líquido negativo da privatização.

Obviamente que a política de subsídio cruzado utilizada em empresas estatais para beneficiar setores socialmente vulneráveis pode ser perfeitamente replicada em empresas privatizadas reguladas. A questão é que na empresa estatal o subsídio cruzado para financiar clientes/regiões deficitários pode vir como parte de uma estratégia da própria companhia, enquanto na empresa privada deve sempre ser imposta por um regulador, tornando-se mais transparente, especialmente seu custo.

Laffont e Tirole (2000) criticaram a premissa de que a política de universalização do serviço por meio de subsídio cruzado gerou melhorias do ponto de vista social no caso de telecomunicações. Do ponto de vista teórico, os autores utilizam o resultado clássico de Atkinson e Stiglitz (1996) da teoria da taxação de que um subsídio direto para as atividades alvo é sempre melhor do que o subsídio cruzado viabilizado pela distorção dos preços relativos: “O teorema de Atkinson-Stiglitz simplesmente indica que a melhor forma de redistribuir renda seria a forma direta, por meio da taxação da renda, e que a manipulação (indireta) dos preços relativos de bens e serviços seria uma política ineficiente”.

O subsídio cruzado representa uma discriminação de preços induzida pelo Estado, seja por meio de estatais ou não, para atingir um objetivo de política pública usualmente ligado à universalização do serviço para populações/áreas menos atrativas economicamente. Isto tem um custo, em geral, maior que o benefício se não houver externalidades no serviço. Havendo externalidades, o que é o caso do setor de energia elétrica, cabe computá-las para avaliar se a política compensa ou não.

De qualquer forma, incorporando ou não as externalidades, o subsídio direto, via orçamento, tem a vantagem de ser mais transparente para a sociedade e evitar a perda de peso morto dos consumidores nas regiões superavitárias. Afinal, como não conhecem os custos de fornecimento do serviço, os usuários das regiões superavitárias que subsidiam as deficitárias não sabem usualmente o quanto pagam a mais no preço do serviço para financiar a área deficitária.

Mas talvez o principal problema de uma política de subsídios cruzados no setor de infraestrutura seja o advento da concorrência. Entrantes procuram logicamente mirar os segmentos, regiões e clientes mais lucrativos. Na medida em que em boa parte dos setores de infraestrutura passou-se a promover a competição, a base de financiamento das atividades deficitárias em um sistema de subsídios cruzados fica naturalmente erodida. Simplesmente, o lucro de monopólio dos segmentos lucrativos não mais existe, dada a concorrência dos entrantes, que, ainda por cima, não têm o ônus de operar nas áreas/clientes que geram prejuízo. Esta estratégia de entrar apenas nas áreas atrativas é o chamado cream-skimming. Este problema é ressaltado por Laffont e Tirole (2000): “este mecanismo de subsídios cruzados está acabando nos países desenvolvidos. De um lado, o regime de price caps encoraja as firmas a rebalancearem suas tarifas de uma forma mais empresarial. A firma não está mais disposta a servir áreas de alto custo a preços baixos ou subsidiar usuários de baixa renda … Enquanto a introdução de price caps levou a algumas mudanças na forma que o mecanismo de subsídios cruzados foi implementado, um obstáculo mais decisivo ao mecanismo existente de subsídio cruzado veio do movimento de liberalização. Dado que os operadores devem fazer lucros substanciais nos segmentos que subsidiam de forma a financiar os segmentos que são subsidiados, os entrantes tem um incentivo forte a entrar no primeiro (e negligenciar o último). Este ponto traz duas preocupações. Primeiro, mesmo entrantes ineficientes podem ser seduzidos pelo guarda chuva dos segmentos de altos preços do incumbente. Segundo, a base tarifária sobre a qual alguns serviços são subsidiados é erodida, destruindo todo o sistema de subsídios cruzados.”

 

XIII) Evidência Empírica Internacional e Brasileira Sobre Privatização

 

A evidência empírica internacional tende a validar a visão teórica de que a propriedade privada é mais eficiente que a estatal. Boardman e Vining (1989), em um estudo clássico sobre as 500 maiores firmas industriais não americanas, acharam que empresas estatais puras e mistas tiveram performance “substancialmente pior” que as companhias privadas similares.

Na resenha de Megginson e Netter (2001), comprova-se que a eficiência das empresas privatizadas em termos de produtividade e crescimento foi, na média, superior às empresas que não foram privatizadas.

Pinheiro (1996) apresenta uma tabela sintética sobre vários estudos comparando o desempenho de ambos os tipos de propriedade e, embora achando resultados mistos, conclui haver uma ligeira vantagem para as companhias privadas. Em particular, este autor achou para o Brasil que a privatização aumentou a produção, a eficiência, a lucratividade e o investimento, bem como melhorou outros indicadores de performance financeira. La Porta e Lopez de Silanes (1997) acharam para o México grandes aumentos da eficiência e lucratividade, sendo que os aumentos de preços responderam por apenas 10% do aumento dos lucros. Os autores concluíram que estes aumentos de preços não se deveram ao poder monopolista.

Anuatti-Neto, Barossi-Filho, Carvalho e Macedo (2005) mostram que, de forma geral, as empresas brasileiras tornaram-se mais eficientes com a privatização, com aumento da lucratividade e eficiência operacional. Um ponto importante foi a mudança da estrutura financeira das empresas em função da eliminação do problema de soft budget. As empresas privatizadas brasileiras tiveram sua liquidez corrente ampliada e redução de endividamento no longo prazo.

 

XIV) Privatização Parcial

 

Bortolotti e Faccio (2006) realizaram uma pesquisa ao final do ano 2000 e mostraram que “os governos continuam como os maiores acionistas ou detêm poderes de veto substanciais em quase 2/3 das empresas privatizadas”. Os autores mostram que o valuation das empresas privatizadas não depende de o governo abrir mão de todos os direitos de controle. Na verdade, a participação governamental resultou em valorização até maior das empresas privatizadas, o que os autores acreditam que pode ter se derivado do fato de que foi detectada também uma maior probabilidade de os governos proverem ajuda financeira (bailing-out) às empresas privatizadas que mantiveram participações governamentais do que àquelas em que isto não ocorreu. Ou seja, o maior valuation derivaria não de maior eficiência de empresas privatizadas com participações estatais remanescentes, mas sim de um maior soft budget. Afinal, qual acionista privado não deseja ser sócio de um agente que está disposto a bancar os prejuízos?

Um aspecto potencialmente positivo da manutenção de participações acionárias do governo nas empresas, enfatizada por Bortolotti e Siniscalco (2004), é que os investidores privados podem atribuir uma probabilidade menor de comportamentos oportunistas. Como tais comportamentos afetam não só os sócios privados como também o sócio estatal, os autores argumentam que o próprio Estado não deveria querer prejudicar a empresa: “como a expropriação também reduz o valor do investimento para o acionista público, vendas parciais parecem constituir uma estratégia de sinalização da disposição do governo em suportar o risco residual da atividade e não interferir na atividade operacional da empresa no contexto de alto risco de política”.

Na experiência recente da Eletrobrás, no entanto, a Medida Provisória 579/2012 teve um impacto muito negativo na empresa. Enquanto empresas de distribuição estatais estaduais recusaram a oferta do governo federal de reduzir tarifas em troca da antecipação da renovação da concessão, a Eletrobrás, por ser de propriedade do governo federal, fez o oposto, em claro desacordo aos melhores interesses da empresa. Sendo assim, não parece ser um argumento tão forte a justificar a manutenção de propriedade acionária parcial por parte do governo.

 

  1. XV) Conclusões

 

A privatização pode ser entendida como um meio para realizar uma verdadeira “revolução de incentivos” na gestão das empresas transferidas ao setor privado.

Como muitas outras coisas em economia, a questão dos incentivos diferenciados das empresas operadas pelo governo e pelo setor privado não passou despercebida por Adam Smith, cuja intuição sobre a dramaticidade do problema agente/principal nas estatais ocorreu há mais de dois séculos.

Isso sem negar que já pode ter havido vantagem em ter empresas estatais em setores de infraestrutura. Em geral, se atribui esta vantagem ao que seria a falta de apetite ao risco do agente privado em investimentos de grande vulto como os de infraestrutura. O mais provável, no entanto, é que a vantagem das empresas estatais na infraestrutura tenha sido relacionada à falta de condições institucionais dos países para o investimento do setor privado em infraestrutura. Ou seja, o problema para o agente privado foi menos o risco do negócio e mais o risco político representado pela falta de capacidade de comprometimento crível do governo em não adotar comportamentos oportunistas, expropriando o investimento, especialmente pela indução à queda forçada de tarifas politicamente sensíveis.

Note-se que a pressão por tarifas menores tende a ser mais eficaz em estatais, o que fez ampliar o suporte político ao uso deste tipo de empresas. Enquanto se acreditava que tarifas menores seriam um reflexo do fato de estatais não utilizarem seu poder de mercado contra os consumidores, a experiência revelou que a tentação populista dos governos prevalecia em tal magnitude que acabava comprometendo a saúde financeira da empresa. Além de se transferir o custo da provisão do serviço do consumidor para o contribuinte (por que isso seria sempre socialmente justo?), comprometia a capacidade de investimento da empresa. Muito da crise brasileira de infraestrutura se deve a isso. A experiência recente do uso da Eletrobrás pela Medida Provisória 579/2012 demonstra que este problema continua muito atual.

No momento atual, no entanto, acreditamos que o país esteja mais maduro institucionalmente, especialmente com um Judiciário independente e com um mínimo de consciência acerca dos efeitos nefastos da incerteza jurídica sobre o investimento. Na tentativa do governo que entrava de forçar a redução de tarifas telefônicas em 2003, por exemplo, o Judiciário deu ganho de causa às operadoras, respeitando os termos do contrato de concessão[11].

A privatização representa, antes de tudo, uma verdadeira “revolução de incentivos” na provisão do serviço público. Tanto gestores como empregados da empresa privada apresentam uma propensão a responder a estes incentivos com um trabalho de mais eficiência e excelência. O cuidado fundamental aqui é fazer uma regulação moderna e eficiente do serviço, mais voltada para incentivar os comportamentos desejados do que para os velhos mecanismos de “comando e controle”. Adicionalmente, é crucial uma regulação que promova o maior dos incentivos, o da competição, um elemento muito presente na privatização da Telebrás em 1998. O mix destes mecanismos de incentivos, passagem do direito de propriedade público para privado pela privatização, ambiente competitivo e regulação inteligente é o que poderá viabilizar esta essencial “revolução de incentivos” que permitirá expressivo incremento da produtividade nesses setores com transbordamentos por toda a economia brasileira.

Adiar a retomada da privatização representa um custo gigantesco tanto para os usuários dos serviços quanto para os contribuintes brasileiros. É fundamental que a privatização do maior número de empresas continue representando uma das diretrizes mais importantes do governo.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

[1] O Governo àquela época insistia na distinção entre privatização, palavra amaldiçoada por implicar transferência permanente do patrimônio público a privados (como se não se pagasse nada por isso), e concessão, que manteria a reversibilidade dos ativos ao Estado. Curiosamente, nos casos dos serviços públicos como telecomunicações, energia elétrica e ferrovias, ocorreram concessões, apesar de terem sido consideradas pela Oposição da época como privatizações. Já no caso da venda da Vale do Rio Doce ou da Embraer, não houve concessão, sendo privatização propriamente dita. Os governos Lula e Dilma, no entanto, chamaram tudo de dilapidação de patrimônio público, mesmo tendo concedido rodovias e aeroportos, mesmo regime de telecomunicações, energia e ferrovias. A grande parte da análise aqui procedida, de qualquer forma, é cabível para concessões.

 

[2] Ver Beesley e Littlechild (1997), Laffont (1995), Vickers e Yarrow (1988), e Pinheiro e Giambiagi (1994), dentre outros.

 

[3] Ministro da Economia Francês de Luis XIV conhecido pelas ideias mercantilistas que incrementaram a intervenção do Estado na economia.

 

[4] Utilizamos “expropriação” aqui no sentido mais amplo de Sidak e Spulber (1998), incluindo a encampação dos ativos, controle de tarifas em níveis irrealisticamente baixos, obrigação de investimentos além dos previamente contratados, entre outros.

 

[5] Ver a importante contribuição de Levy e Spiller (1996) sobre a importância da questão institucional no formato ótimo de regulação no setor de telecomunicações em vários países.

 

[6] Ver Mattos (2003).

 

[7] O conhecido ditado de “o olho do dono é o que engorda o gado” traduz precisamente este ponto.

 

[8] Ver Pinheiro e Giambiagi (1994).

 

[9] Ver Mattos e Coutinho (2005).

 

[10] Ver também sobre o mesmo assunto dos dois autores, Sidak e Sappington (2003b).

 

[11] O que não implica que não tenha imputado algum prejuízo às empresas. Ver https://www.conjur.com.br/2004-jul-01/decisao_stj_eleva_reajuste_tarifas_partir_sexta.

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