{"id":3573,"date":"2022-02-01T06:13:42","date_gmt":"2022-02-01T09:13:42","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=3573"},"modified":"2022-02-01T06:51:56","modified_gmt":"2022-02-01T09:51:56","slug":"o-novo-multilateralismo-em-uma-ordem-internacional-em-transformacao","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=3573","title":{"rendered":"O Novo Multilateralismo em uma Ordem Internacional em Transforma\u00e7\u00e3o"},"content":{"rendered":"

O Novo Multilateralismo em uma Ordem Internacional em Transforma\u00e7\u00e3o[1]<\/a><\/strong><\/h1>\n

 <\/p>\n

Por Eiiti Sato[2]<\/a><\/em><\/strong><\/p>\n

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Multilateralismo e regimes internacionais<\/strong><\/p>\n

O multilateralismo passou a ser uma componente importante na pol\u00edtica internacional apenas no s\u00e9culo XX, com o estabelecimento da Liga das Na\u00e7\u00f5es em 1919. A partir de ent\u00e3o, a pr\u00e1tica do multilateralismo ganhou crescente import\u00e2ncia em especial depois da Segunda Guerra Mundial. A cria\u00e7\u00e3o Organiza\u00e7\u00e3o das Na\u00e7\u00f5es Unidas (ONU) em 1945 serviu, em larga medida, de padr\u00e3o e de refer\u00eancia para levar o multilateralismo para esferas regionais e tamb\u00e9m para \u00e1reas espec\u00edficas das rela\u00e7\u00f5es internacionais como a economia, a sa\u00fade, o trabalho e mais tarde para as quest\u00f5es ambientais e para os temas sociais. Algumas organiza\u00e7\u00f5es formadas no per\u00edodo eram derivadas de iniciativas anteriores, como foi o caso da Uni\u00e3o Panamericana, criada na esteira das Confer\u00eancias Pan Americanas iniciadas 1889. Em 1948 a Uni\u00e3o Panamericana foi substitu\u00edda pela Organiza\u00e7\u00e3o dos Estados Americanos (OEA). A Organiza\u00e7\u00e3o Internacional do Trabalho nascera juntamente com a Liga das Na\u00e7\u00f5es, na esteira do Tratado de Versailles (1919) e, na esfera econ\u00f4mica, as principais institui\u00e7\u00f5es foram criadas em 1944, em Bretton Woods (FMI e Banco Mundial). O General Agreement on Tariffs and Trade<\/em> (GATT), por sua vez, s\u00f3 foi criado em 1947. Observa-se que, apesar das datas e das peculiaridades individuais, \u00e9 poss\u00edvel afirmar que a cria\u00e7\u00e3o dessas institui\u00e7\u00f5es ocorreu dentro do mesmo esp\u00edrito que havia levado \u00e0 cria\u00e7\u00e3o da Liga das Na\u00e7\u00f5es (1919) e da ONU (1945) e tamb\u00e9m no entendimento de que uma parte consider\u00e1vel das rela\u00e7\u00f5es internacionais passava a ser organizada e conduzida de forma regular por meio de pr\u00e1ticas e de padr\u00f5es regulares que, mais tarde, os estudiosos de rela\u00e7\u00f5es internacionais passariam a chamar de regimes internacionais<\/em>[3]<\/a>.<\/em> Dessa forma, ap\u00f3s a Segunda Guerra Mundial, sob a inspira\u00e7\u00e3o dessas iniciativas e da ideia de que em muitos aspectos a integra\u00e7\u00e3o regional e global poderia facilitar o entendimento e a prosperidade econ\u00f4mica, o multilateralismo tornou-se uma pr\u00e1tica regular nas rela\u00e7\u00f5es internacionais.<\/p>\n

Com efeito, foi a partir de 1945 que houve a dissemina\u00e7\u00e3o mais ampla do entendimento de que as rela\u00e7\u00f5es internacionais apresentavam uma crescente regularidade, e que as rela\u00e7\u00f5es econ\u00f4micas e sociais tornavam-se cada vez mais integradas, demandando arranjos multilaterais mais organizados e mais permanentes. Na realidade, na cria\u00e7\u00e3o desses arranjos, as experi\u00eancias vividas no entreguerras foram marcantes e reveladoras do fato de que no mundo j\u00e1 havia se formado um verdadeiro \u201csistema internacional\u201d, isto \u00e9, a Grande Depress\u00e3o<\/em> da d\u00e9cada de 1930 havia mostrado que alguns fen\u00f4menos como a infla\u00e7\u00e3o, o crescimento e a recess\u00e3o podiam se propagar como ondas, de pa\u00eds para pa\u00eds. De fato, a grande crise havia mostrado que, at\u00e9 mesmo uma economia t\u00e3o grande e t\u00e3o generosamente dotada de recursos naturais, como a dos EUA, n\u00e3o estava isenta de sofrer as consequ\u00eancias da crise que se desencadeara em 1929 e que se estendera por toda a d\u00e9cada de 1930. Mesmo no plano das teorias, j\u00e1 emergiam abordagens como a dos ciclos econ\u00f4micos que argumentava que a evolu\u00e7\u00e3o das economias ocorria alternando per\u00edodos de crescimento e de estagna\u00e7\u00e3o e, por vezes, de recess\u00e3o. A hip\u00f3tese dos ciclos econ\u00f4micos foi primeiramente associada \u00e0 pr\u00f3pria natureza do capitalismo sendo, depois, associada a mudan\u00e7as tecnol\u00f3gicas[4]<\/a>.<\/p>\n

Ap\u00f3s a dolorosa experi\u00eancia da Segunda Guerra Mundial, as iniciativas de cria\u00e7\u00e3o de organiza\u00e7\u00f5es internacionais foram tamb\u00e9m fortemente impulsionadas pelo desejo de paz. Nesse entendimento, a cria\u00e7\u00e3o de organiza\u00e7\u00f5es internacionais de todos os tipos era uma forma de traduzir em iniciativas esse desejo de paz e de coopera\u00e7\u00e3o internacional. Esse ambiente largamente favor\u00e1vel ao multilateralismo come\u00e7ou a ser questionado com a crise do petr\u00f3leo desencadeada em 1973. Em termos de tend\u00eancia, a crise no mercado de petr\u00f3leo foi um evento revelador de que a ordem econ\u00f4mica e pol\u00edtica, que por tr\u00eas d\u00e9cadas havia orientado as a\u00e7\u00f5es dos atores no cen\u00e1rio internacional, chegava aos n\u00edveis de seu esgotamento. A depend\u00eancia do petr\u00f3leo havia se estendido tanto para as economias avan\u00e7adas quanto para as economias em desenvolvimento e os padr\u00f5es de explora\u00e7\u00e3o dessa commodity<\/em>, dramaticamente, mostravam seus limites. Al\u00e9m disso, por sua complicada vincula\u00e7\u00e3o com o mundo da pol\u00edtica e da seguran\u00e7a internacionais o petr\u00f3leo possu\u00eda um cunho estrat\u00e9gico sem paralelo com outras commodities<\/em>.<\/p>\n

Conceitos e terminologia<\/strong><\/p>\n

Para a compreens\u00e3o adequada da quest\u00e3o do multilateralismo parece oportuno recuperar e dar maior precis\u00e3o no entendimento de alguns termos. Come\u00e7ando pelo pr\u00f3prio termo multilateralismo, \u00e9 preciso lembrar que n\u00e3o s\u00e3o apenas as organiza\u00e7\u00f5es mais amplas e gerais como ONU e OMS que podem ser caracterizadas como \u201cmultilaterais\u201d. Organiza\u00e7\u00f5es regionais como Uni\u00e3o Europeia e Banco Interamericano do Desenvolvimento tamb\u00e9m s\u00e3o institui\u00e7\u00f5es multilaterais, muito embora n\u00e3o sejam globais, isto \u00e9, n\u00e3o estejam abertas \u00e0 participa\u00e7\u00e3o de todas as na\u00e7\u00f5es organizadas. Assim, o multilateralismo \u00e9 uma pr\u00e1tica diplom\u00e1tica que pode envolver a participa\u00e7\u00e3o de toda a comunidade internacional de na\u00e7\u00f5es como a ONU ou pode envolver apenas um particular grupo de na\u00e7\u00f5es reunidas geograficamente \u2013 como a Uni\u00e3o Europeia \u2013 ou em torno de algum objetivo compartilhado \u2013 como \u00e9 o caso da OTCA (Organiza\u00e7\u00e3o do Tratado de Coopera\u00e7\u00e3o Amaz\u00f4nica).<\/p>\n

Embora a difus\u00e3o do multilateralismo tenha ocorrido associada a iniciativas de paz e de coopera\u00e7\u00e3o internacional, \u00e9 apenas uma modalidade ou recurso utilizado pela diplomacia. Inst\u00e2ncias multilaterais podem ser procuradas ou podem ser vistas com desconfian\u00e7a tanto por grandes pot\u00eancias quanto por na\u00e7\u00f5es mais fr\u00e1geis. Para as grandes pot\u00eancias, inst\u00e2ncias multilaterais podem ser necess\u00e1rias para a organiza\u00e7\u00e3o de regimes internacionais de seu interesse, mas podem ser problem\u00e1ticas quando seus interesses n\u00e3o coincidem com boa parte da comunidade internacional. Por outro lado, para as na\u00e7\u00f5es menos poderosas, inclusive para as chamadas pot\u00eancias m\u00e9dias, as inst\u00e2ncias multilaterais podem ser \u00fateis para construir alian\u00e7as em torno de quest\u00f5es que n\u00e3o sensibilizam as grandes pot\u00eancias, mas, ao mesmo tempo podem ser problem\u00e1ticas para os casos em que seus interesses espec\u00edficos estejam em jogo. Ou seja, a diplomacia multilateral n\u00e3o \u00e9 um recurso aplic\u00e1vel a todas as quest\u00f5es e circunst\u00e2ncias e, al\u00e9m disso, o multilateralismo para ser eficaz precisa levar em conta outras vari\u00e1veis inerentes \u00e0 pol\u00edtica internacional, em especial o poder.<\/p>\n

Problemas desse tipo foram notavelmente vis\u00edveis no estabelecimento da ONU. Com efeito, nas negocia\u00e7\u00f5es para a cria\u00e7\u00e3o da institui\u00e7\u00e3o quando a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim, as grandes pot\u00eancias n\u00e3o se sentiam \u00e0 vontade com a perspectiva de que as quest\u00f5es internacionais pudessem ser decididas a partir do princ\u00edpio \u201cone country, one vote<\/em>\u201d, especialmente a URSS que, \u00e0 \u00e9poca, claramente, tinha muito menos pa\u00edses membros que a apoiavam, mas as demais grandes pot\u00eancias tamb\u00e9m tinham diverg\u00eancias que as dividiam, como era o caso dos EUA e da Gr\u00e3-Bretanha, que divergiam quanto ao destino do sistema colonial brit\u00e2nico que ainda se mantinha vivo sob muitos aspectos[5]<\/a>. O fato \u00e9 que a introdu\u00e7\u00e3o do direito de veto foi importante na solu\u00e7\u00e3o dos impasses no processo de cria\u00e7\u00e3o da ONU. O entendimento foi o de que uma ONU sem qualquer uma das grandes pot\u00eancias seria uma institui\u00e7\u00e3o sem a efic\u00e1cia, tal como havia ocorrido com a Liga das Na\u00e7\u00f5es, que exclu\u00edra a Alemanha e da qual os EUA se abstivera de participar, muito embora o presidente Woodrow Wilson tenha sido o proponente de sua cria\u00e7\u00e3o na Confer\u00eancia de Versailles.<\/p>\n

Mais recentemente, pode-se apontar o caso da UNCTAD (Confer\u00eancia das Na\u00e7\u00f5es Unidas sobre Com\u00e9rcio e Desenvolvimento), que foi criada em 1964 para tratar dos problemas de com\u00e9rcio e desenvolvimento. Diferentemente do GATT, em que as quest\u00f5es de com\u00e9rcio eram tratadas de forma negociada em bases praticamente bilaterais ou pelo consenso, na UNCTAD as quest\u00f5es de com\u00e9rcio internacional seriam tratadas politicamente sob o princ\u00edpio do \u201cone country, one vote<\/em>\u201d. O fato \u00e9 que a UNCTAD viveu seu apogeu na segunda metade da d\u00e9cada de 1970, quando as na\u00e7\u00f5es exportadoras de petr\u00f3leo (OPEP) desfrutaram, por um breve momento, de um papel bastante decisivo no com\u00e9rcio internacional. Naquele breve momento, a maioria dos pa\u00edses identificados como \u201cTerceiro Mundo\u201d passou a atuar ativamente na UNCTAD, enquanto pot\u00eancias como a Gr\u00e3-Bretanha e os EUA mantinham-se \u00e0 margem uma vez que, de qualquer modo, como \u00f3rg\u00e3o da ONU, qualquer resolu\u00e7\u00e3o proposta no \u00e2mbito da UNCTAD s\u00f3 teria efic\u00e1cia se aprovada pelo Conselho de Seguran\u00e7a da ONU, onde as cinco grandes pot\u00eancias tinham o direito de veto.<\/p>\n

Outro entendimento importante a respeito de conceitos, \u00e9 que na pol\u00edtica internacional o oposto de coopera\u00e7\u00e3o n\u00e3o \u00e9 conflito, mas sim o unilateralismo<\/em>. Ou seja, coopera\u00e7\u00e3o internacional n\u00e3o significa, necessariamente, a\u00e7\u00f5es coletivas consensuadas em todos os casos e circunst\u00e2ncias. Na pol\u00edtica internacional, coopera\u00e7\u00e3o significa que as pot\u00eancias \u2013 grandes ou pequenas \u2013 que participam de um arranjo internacional seguir\u00e3o as regras do regime vigente e n\u00e3o deixar\u00e3o os arranjos de que fazem parte, ainda que n\u00e3o concordem com o curso dos acontecimentos e das eventuais decis\u00f5es. O unilateralismo se configura quando um pa\u00eds passa a tomar decis\u00f5es e a agir em mat\u00e9ria de pol\u00edtica internacional sem consultar outros pa\u00edses e sem levar em conta princ\u00edpios e normas vigentes nos regimes internacionais. O mundo da pol\u00edtica n\u00e3o \u00e9 feito de verdades indiscut\u00edveis de validade universal. Alian\u00e7as, prioridades, escolhas e pol\u00edticas de a\u00e7\u00e3o n\u00e3o t\u00eam o mesmo significado para todos os pa\u00edses, e os fatos e interesses correntes na pol\u00edtica internacional afetam cada pa\u00eds de modo diferente tanto em termos de implica\u00e7\u00f5es quanto em termos de intensidade dessas implica\u00e7\u00f5es. O consenso \u00e9 sempre desej\u00e1vel, mas na maioria das quest\u00f5es raramente se revela poss\u00edvel e, assim, o que cabe \u00e0 diplomacia evitar \u00e9 a configura\u00e7\u00e3o de situa\u00e7\u00f5es agressivamente inaceit\u00e1veis para as pot\u00eancias \u2013 grandes ou pequenas.<\/p>\n

Organiza\u00e7\u00f5es internacionais s\u00e3o entidades vivas e se transformam acompanhando a ordem internacional<\/strong><\/p>\n

As organiza\u00e7\u00f5es internacionais que formam o ambiente por excel\u00eancia dentro do qual a pr\u00e1tica do multilateralismo se desenvolve s\u00e3o entidades vivas, isto \u00e9, s\u00e3o criadas dentro de circunst\u00e2ncias econ\u00f4micas e pol\u00edticas definidas e, ao longo do tempo, passam por transforma\u00e7\u00f5es acompanhando as mudan\u00e7as na ordem internacional. Tomando como exemplo as organiza\u00e7\u00f5es na \u00e1rea da economia, esse fato \u00e9 vis\u00edvel inclusive em cifras. O Fundo Monet\u00e1rio Internacional (FMI) e o Banco Mundial foram criadas em Bretton Woods, em 1944, como iniciativas para orientar a reconstru\u00e7\u00e3o da economia internacional quando a Segunda Guerra Mundial chegasse ao fim. Cabe lembrar que, na altura em que a Confer\u00eancia de Bretton Woods se realizava (julho\/1944), a guerra atingia seu auge em termos de a\u00e7\u00f5es militares. O desembarque da Normandia havia ocorrido no in\u00edcio de junho, mas o avan\u00e7o das tropas aliadas na Europa se fazia por meio de combates dif\u00edceis que implicavam pesadas perdas de ambas as partes. Apenas do lado americano, \u00e0 \u00e9poca da Confer\u00eancia de Bretton Woods, havia mais de 6 milh\u00f5es de tropas combatentes, a maior parte nos teatros de opera\u00e7\u00f5es militares na Europa e no Pac\u00edfico. O International Bank for Reconstruction and Development<\/em> (Banco Mundial) foi estabelecido em 1944 com o objetivo de financiar a reconstru\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica, sobretudo da Europa, onde a destrui\u00e7\u00e3o por meio de combates e bombardeios em cidades importantes ainda era crescente em meados de 1944. A guerra chegou ao fim em 1945 e a reconstru\u00e7\u00e3o na Europa avan\u00e7ara rapidamente n\u00e3o com recursos do Banco Mundial, mas do Plano Marshall[6]<\/a>. Em 1958, no \u00e2mbito do Banco Mundial, foi criada a Corpora\u00e7\u00e3o Financeira Internacional<\/em> (IFC, sigla em ingl\u00eas) com o objetivo de canalizar investimentos internacionais privados para os mercados de capitais que retomavam seu vigor. Ap\u00f3s a reconstru\u00e7\u00e3o do p\u00f3s-guerra, o tema do desenvolvimento foi estendido para as na\u00e7\u00f5es pobres, sendo criada em 1960 a Associa\u00e7\u00e3o Internacional para o Desenvolvimento<\/em> (IDA, sigla em ingl\u00eas) para avaliar e autorizar a concess\u00e3o de cr\u00e9ditos para propostas de projetos de desenvolvimento de governos de pa\u00edses pobres. Em 1966, pela Conven\u00e7\u00e3o para a Resolu\u00e7\u00e3o de Controv\u00e9rsias sobre Investimentos entre Pa\u00edses e entre Residentes em Pa\u00edses Estrangeiros foi estabelecido o Centro para Resolu\u00e7\u00e3o de Controv\u00e9rsias sobre Investimentos<\/em> com o objetivo de proporcionar seguran\u00e7a jur\u00eddica e estimular os fluxos de investimentos internacionais. Em 1988, ainda no \u00e2mbito do Banco Mundial, foi criada a Ag\u00eancia Multilateral de Garantia de Investimentos<\/em> (MIGA, na sigla em ingl\u00eas) com o objetivo de prover seguro e garantias financeiras contra riscos decorrentes de turbul\u00eancias no ambiente pol\u00edtico em pa\u00edses em desenvolvimento.<\/p>\n

Essas cinco institui\u00e7\u00f5es passaram a formar o que hoje \u00e9 chamado de Grupo Banco Mundial<\/em> e a cria\u00e7\u00e3o progressiva de cada uma dessas inst\u00e2ncias refletiu as mudan\u00e7as vividas pela ordem econ\u00f4mica internacional desde 1944. Nessa evolu\u00e7\u00e3o do Banco Mundial \u00e9 poss\u00edvel observar tamb\u00e9m a substancial mudan\u00e7a de sua \u201ccarteira de projetos\u201d. Nos primeiros anos da sua cria\u00e7\u00e3o, a motiva\u00e7\u00e3o mais imediata do Banco Mundial era a reconstru\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica do p\u00f3s-guerra, em seguida, quando a reconstru\u00e7\u00e3o se completava, surgiu a preocupa\u00e7\u00e3o em orientar o fluxo internacional de capitais p\u00fablicos e privados para a promo\u00e7\u00e3o do desenvolvimento das na\u00e7\u00f5es pobres. Nesse processo, as rivalidades da guerra fria desempenharam papel importante nas decis\u00f5es estrat\u00e9gicas do governo americano. Mais tarde, no per\u00edodo geralmente referido como era da \u201cglobaliza\u00e7\u00e3o\u201d, os projetos financiados pelo Banco Mundial passaram a se concentrar em temas como boa governan\u00e7a, inclus\u00e3o social e igualdade de g\u00eaneros, inclusive porque os fundos dispon\u00edveis tornaram-se incompat\u00edveis com os volumes que seriam necess\u00e1rios para continuar financiando investimentos em grandes projetos de desenvolvimento de infraestrutura econ\u00f4mica pelo mundo. Na realidade, um tra\u00e7o marcante da \u201cglobaliza\u00e7\u00e3o\u201d foi a perda de relev\u00e2ncia dos recursos p\u00fablicos diante da enorme expans\u00e3o da poupan\u00e7a privada[7]<\/a>.<\/p>\n

Quanto ao Fundo Monet\u00e1rio Internacional (FMI), tamb\u00e9m criado em 1944 como um fundo de estabiliza\u00e7\u00e3o e baseado na hip\u00f3tese b\u00e1sica de que o d\u00f3lar americano seria capaz de servir como \u201c\u00e2ncora\u201d para o sistema monet\u00e1rio internacional, tamb\u00e9m sofreu profundas modifica\u00e7\u00f5es \u00e0 medida que a economia mundial se recuperava dos impactos e das restri\u00e7\u00f5es impostas pela Segunda Guerra Mundial. A retomada do dinamismo e do crescimento ocorreu com muito mais vigor do que at\u00e9 mesmo os estrategistas mais otimistas podiam prever. Al\u00e9m do d\u00f3lar como a \u00fanica moeda convers\u00edvel ao ouro, o FMI fora criado tendo como principais mecanismos para administrar a liquidez de moeda internacional o compromisso das na\u00e7\u00f5es de observar a regra geral de utilizar as taxas cambiais como recurso de ajuste do balan\u00e7o de pagamentos somente diante de desequil\u00edbrios considerados \u201cestruturais\u201d (varia\u00e7\u00f5es cambiais bem acima de 1%) e com a anu\u00eancia dos governadores do FMI. Outro instrumento de a\u00e7\u00e3o do FMI, que definia o pr\u00f3prio nome da institui\u00e7\u00e3o, era seu papel como fundo de estabiliza\u00e7\u00e3o, isto \u00e9, os recursos financeiros do FMI deveriam ser suficientes para prover empr\u00e9stimo para pa\u00edses em dificuldade de balan\u00e7o de pagamentos.<\/p>\n

A hist\u00f3ria da institui\u00e7\u00e3o \u00e9 conhecida. Com o passar do tempo, essas caracter\u00edsticas do FMI foram sendo abandonadas. A conversibilidade em ouro do d\u00f3lar americano foi abandonada em 1971, mas tratava-se de um processo inevit\u00e1vel que, na realidade, refletia o sucesso das pol\u00edticas de recupera\u00e7\u00e3o e desenvolvimento lideradas pelos EUA. Com efeito, ao longo da d\u00e9cada de 1950, as reservas em ouro da economia americana j\u00e1 eram declinantes e, ao final dessa d\u00e9cada, ultrapassou a marca simb\u00f3lica de 50% das reservas mundiais de ouro. No in\u00edcio da d\u00e9cada de 1960 o economista Robert Triffin identificou o que ficou conhecido como o \u201cDilema de Triffin<\/em>\u201d que consistia no fato de que a economia americana, em virtude de seu papel de provedor de recursos para os programas de desenvolvimento da economia mundial, inevitavelmente incorria em d\u00e9ficits continuados no balan\u00e7o de pagamentos, o que significava perder reservas de ouro e, assim, a interrup\u00e7\u00e3o desse processo significaria reduzir a disponibilidade de d\u00f3lares para os programas de desenvolvimento[8]<\/a>. O fato \u00e9 que, em agosto de 1971, o governo americano oficialmente suspendeu a conversibilidade do d\u00f3lar em ouro, diante da clara incapacidade de a economia americana acompanhar a expans\u00e3o da liquidez internacional que, na ess\u00eancia, significava que a expans\u00e3o da economia mundial ocorria a taxas maiores do que as taxas de crescimento da economia americana, o que, ali\u00e1s, era um pressuposto das pol\u00edticas de desenvolvimento.<\/p>\n

No que se refere \u00e0 disposi\u00e7\u00e3o de o FMI funcionar como fundo de estabiliza\u00e7\u00e3o para as economias com problemas no balan\u00e7o de pagamentos, tamb\u00e9m ocorreu o processo de crescente incapacidade de o FMI desempenhar esse papel. J\u00e1 na d\u00e9cada de 1960 os d\u00e9ficits, sobretudo das economias em desenvolvimento, eram crescentes e o FMI havia passado a publicar periodicamente um boletim intitulado World Debt Tables<\/em>, que trazia a evolu\u00e7\u00e3o do endividamento internacional que se acumulava, ultrapassando de muito a capacidade financeira do FMI de prover recursos para todas essas na\u00e7\u00f5es endividadas. Com o desencadeamento da crise do petr\u00f3leo em fins de 1973, houve uma verdadeira explos\u00e3o de liquidez e do endividamento internacional. O resultado foi que as na\u00e7\u00f5es endividadas ao inv\u00e9s de procurar o FMI \u2013 como era previsto nos acordos de Bretton Woods \u2013 passaram a procurar os mercados privados de cr\u00e9dito que, de fato, possu\u00edam recursos financeiros em propor\u00e7\u00e3o muito maior do que os dispon\u00edveis no FMI[9]<\/a>.<\/p>\n

O resultado, obviamente, foi o abandono pelo FMI de seu papel de provedor de recursos financeiros para economias endividadas como estabeleciam os acordos de Bretton Woods, que definia o FMI como um fundo de estabiliza\u00e7\u00e3o. Nesse processo, o FMI passou a ser demandado como avalista de empr\u00e9stimos nos mercados privados feitos por governos endividados. Ao assumir essa condi\u00e7\u00e3o de avalista, o FMI passou a atuar como inst\u00e2ncia de monitoramento do endividamento internacional e tamb\u00e9m como uma esp\u00e9cie de \u201ccorregedor\u201d das pol\u00edticas de ajustamento praticadas pelos governos endividados. Em outras palavras, nos fins da d\u00e9cada de 1970, o perfil de atua\u00e7\u00e3o do Fundo Monet\u00e1rio Internacional havia mudado de forma bastante substancial em rela\u00e7\u00e3o aos acordos originais de 1944.<\/p>\n

Outras organiza\u00e7\u00f5es internacionais, notadamente a ONU, tamb\u00e9m sofreram mudan\u00e7as substanciais ao longo do tempo. Quando foi criada em 1945, a ONU contava com apenas 51 pa\u00edses-membros, hoje os pa\u00edses-membros da ONU somam um total de 193. Apenas essas cifras j\u00e1 indicam que a entidade passou por grandes mudan\u00e7as, mas h\u00e1 muitas outras mudan\u00e7as importantes. Inst\u00e2ncias da ONU como a CEPAL, a UNCTAD e a UNIDO, viveram momentos de grande relev\u00e2ncia na pol\u00edtica internacional, mas enquanto o interesse por essas inst\u00e2ncias declinava, outras inst\u00e2ncias associadas a novos temas como aquelas voltadas para temas como o meio ambiente, o clima e a sa\u00fade p\u00fablica ganharam relev\u00e2ncia. Na trajet\u00f3ria da ONU, vale observar que h\u00e1 pouco mais de 10 anos houve uma tentativa fracassada para alterar a constitui\u00e7\u00e3o do Conselho de Seguran\u00e7a. Houve debates e muita movimenta\u00e7\u00e3o diplom\u00e1tica, mas, ao final, embora tenham sido organizados debates e estrat\u00e9gias que envolviam campanhas estruturadas, inclusive de grandes pot\u00eancias, na demanda por um assento permanente no Conselho de Seguran\u00e7a da ONU, a proposta de altera\u00e7\u00e3o da composi\u00e7\u00e3o e das fun\u00e7\u00f5es do Conselho de Seguran\u00e7a n\u00e3o prosperou, sendo abandonada. A respeito dessa tentativa frustrada e das dificuldades de se mudar a composi\u00e7\u00e3o pol\u00edtica de uma organiza\u00e7\u00e3o internacional, parece instrutivo o fato de que, ao final da Segunda Guerra Mundial, ao inv\u00e9s de retomar a Liga das Na\u00e7\u00f5es, que j\u00e1 estava formalmente estruturada, decidiu-se criar a Organiza\u00e7\u00e3o das Na\u00e7\u00f5es Unidas cujos objetivos eram praticamente os mesmos da Liga das Na\u00e7\u00f5es. Percebeu-se que retomar o funcionamento da Liga das Na\u00e7\u00f5es significaria, entre outras coisas, introduzir mudan\u00e7as significativas na composi\u00e7\u00e3o do Conselho da Liga, o que inevitavelmente resultaria em retomar as intermin\u00e1veis controv\u00e9rsias e disputas pol\u00edticas como aquelas ocorridas em 1926, quando a Liga das Na\u00e7\u00f5es decidiu incorporar a Alemanha, inclusive como membro permanente do Conselho da Liga \u2013 uma posi\u00e7\u00e3o que a diplomacia brasileira falhara em conseguir, e que custou a retirada do Brasil como pa\u00eds-membro da Liga das Na\u00e7\u00f5es[10]<\/a>.<\/p>\n

Outro desenvolvimento importante nas pr\u00e1ticas do multilateralismo, especialmente ap\u00f3s a d\u00e9cada de 1970, foi a crescente relev\u00e2ncia das organiza\u00e7\u00f5es regionais, em especial da Comunidade Econ\u00f4mica Europeia, que no in\u00edcio da d\u00e9cada de 1990 foi transformada em Uni\u00e3o Europeia, com v\u00e1rias inst\u00e2ncias decis\u00f3rias supranacionais e at\u00e9 mesmo com uma moeda comum que passou a ser adotada pela grande maioria dos pa\u00edses-membros. Fora da Europa, v\u00e1rias iniciativas de integra\u00e7\u00e3o regional tamb\u00e9m foram postas em pr\u00e1tica tais como o NAFTA, o MERCOSUL, o Pacto Andino e at\u00e9 mesmo esse estranho arranjo que \u00e9 o BRICS.<\/p>\n

Outro desenvolvimento importante no per\u00edodo foi a emerg\u00eancia de arranjos informais (G-7, G-20, F\u00f3rum Econ\u00f4mico Mundial de Davos etc.) como inst\u00e2ncias para informar, debater e, eventualmente, ajudar na constru\u00e7\u00e3o de consensos internacionais. Em outras palavras, o multilateralismo assumiu uma fei\u00e7\u00e3o completamente diferente da tradicional concep\u00e7\u00e3o de organiza\u00e7\u00f5es formalmente estruturadas. Na realidade, a esse respeito, vale lembrar a experi\u00eancia do GATT, que apareceu como solu\u00e7\u00e3o para orientar o regime de com\u00e9rcio internacional diante das dificuldades de se estabelecer uma Organiza\u00e7\u00e3o Internacional para o Com\u00e9rcio<\/em> com estatutos, inst\u00e2ncias e normas bem definidas como uma organiza\u00e7\u00e3o internacional em sua plenitude jur\u00eddica. O GATT acabou permanecendo por d\u00e9cadas (1947-1994) como uma \u201cproto-organiza\u00e7\u00e3o internacional\u201d baseada em um acordo executivo<\/em> e n\u00e3o em um tratado internacional<\/em>. Isto \u00e9, enquanto uma organiza\u00e7\u00e3o internacional exige como base um estatuto na forma de um tratado internacional que demanda as formalidades de ratifica\u00e7\u00e3o, o acordo executivo exige apenas a assinatura dos governantes, pois, em princ\u00edpio, n\u00e3o significa assumir formalmente direitos e obriga\u00e7\u00f5es de Estado dos pa\u00edses participantes. Nesse quadro, \u00e9 poss\u00edvel compreender o modus operandi<\/em> do GATT baseado nas rodadas de negocia\u00e7\u00e3o comercial<\/em>, e n\u00e3o a tomada de medidas e provid\u00eancias comerciais de acordo com regras e condi\u00e7\u00f5es estabelecidas em estatuto (Carta da ONU, Carta da Liga das Na\u00e7\u00f5es etc.) De certo modo, \u00e9 o que vem sendo praticado pelas confer\u00eancias sobre o clima, nas quais s\u00e3o debatidas propostas sobre poss\u00edveis medidas e objetivos que se transformam em compromissos de governos e n\u00e3o em obriga\u00e7\u00f5es de Estado.<\/p>\n

O multilateralismo em um mundo mais integrado<\/strong><\/p>\n

Ao se observar a cena internacional chama a aten\u00e7\u00e3o o crescente n\u00edvel de integra\u00e7\u00e3o pol\u00edtica, econ\u00f4mica e social em escala mundial. Salvo algumas exce\u00e7\u00f5es como Coreia do Norte e Cuba, que, por raz\u00f5es muito particulares, ainda mant\u00eam pol\u00edticas de isolamento em suas pr\u00e1ticas e institui\u00e7\u00f5es. Hoje \u00e9 imposs\u00edvel pensar em na\u00e7\u00f5es isoladas. O mundo se transformou em uma verdadeira coletividade que, embora n\u00e3o seja uma coletividade homog\u00eanea, n\u00e3o h\u00e1 qualquer d\u00favida de que existe um verdadeiro sistema internacional. O avan\u00e7o das tecnologias, notadamente nas comunica\u00e7\u00f5es e nos transportes, tornou as rela\u00e7\u00f5es pol\u00edticas, econ\u00f4micas e sociais profundamente integradas. Por exemplo, os dados mostram que o movimento de turistas no mundo em pouco tempo evoluiu de forma exponencial no s\u00e9culo XXI. Em 2005 foram registrados 809 milh\u00f5es de turistas internacionais e, em 2018, esse n\u00famero havia se elevado para 1.407 milh\u00f5es de turistas que viajaram atrav\u00e9s de fronteiras. Embora a metade desses turistas tenha tido por destino a Europa, a grande maioria dos pa\u00edses passou a receber anualmente milhares de turistas oriundos de todo o mundo. Quando se olha a evolu\u00e7\u00e3o das transa\u00e7\u00f5es comerciais e qualquer outra atividade nos neg\u00f3cios, na ci\u00eancia e na cultura, as cifras revelam a mesma crescente integra\u00e7\u00e3o internacional. Ou seja, a integra\u00e7\u00e3o internacional ultrapassa de muito, e \u00e9 muito mais din\u00e2mica do que a integra\u00e7\u00e3o por meio de organiza\u00e7\u00f5es internacionais formalmente estabelecidas.<\/p>\n

Usava-se a express\u00e3o \u201cintegra\u00e7\u00e3o regional\u201d para designar a forma\u00e7\u00e3o de sistemas regionais como a Comunidade Econ\u00f4mica Europeia ou o MERCOSUL, por meio dos quais se estabeleciam facilidades comerciais e pol\u00edticas entre os pa\u00edses que integravam esses arranjos. Surgiram at\u00e9 mesmo \u201cteorias da integra\u00e7\u00e3o\u201d para explicar a exist\u00eancia e as vantagens decorrentes da forma\u00e7\u00e3o de sistemas regionais de integra\u00e7\u00e3o[11]<\/a>. No entanto, de forma crescente, a integra\u00e7\u00e3o formal, isto \u00e9, a cria\u00e7\u00e3o de organiza\u00e7\u00f5es internacionais de integra\u00e7\u00e3o juridicamente estruturadas foi dando lugar ao entendimento de que h\u00e1 hoje um avan\u00e7o de uma integra\u00e7\u00e3o real, cada vez menos dependente de tratados internacionais em seu sentido pleno. Vale observar que esse desenvolvimento ocorreu, em larga medida, em decorr\u00eancia das possibilidades que foram abertas por essas organiza\u00e7\u00f5es formais tanto regionais quanto globais. Isto \u00e9, na\u00e7\u00f5es como o Brasil e a Argentina s\u00e3o hoje muito mais integradas do que o eram h\u00e1 tr\u00eas ou quatro d\u00e9cadas, independentemente de mudan\u00e7as que possam ser introduzidas no MERCOSUL, ou at\u00e9 mesmo, eventualmente, de sua extin\u00e7\u00e3o. Outro exemplo \u00e9 o caso do Reino Unido que, apesar de ter deixado de integrar a Uni\u00e3o Europeia, n\u00e3o significa que, sob muitos aspectos, deixar\u00e1 de continuar sendo uma economia, uma cultura e um pa\u00eds, profundamente integrado \u00e0 Europa. Algumas facilidades sobretudo comerciais, obviamente, deixar\u00e3o de existir mas, em aspectos essenciais da cultura, dos padr\u00f5es sociais, e at\u00e9 mesmo das pr\u00e1ticas econ\u00f4micas, o Reino Unido continuar\u00e1 tendo os pa\u00edses da Europa como seus principais parceiros. Na realidade, nas quest\u00f5es mais importantes, desde a Idade M\u00e9dia o Reino Unido sempre fez parte do mundo pol\u00edtico, econ\u00f4mico e social europeu.<\/p>\n

Esses casos retratam mudan\u00e7as importantes nas rela\u00e7\u00f5es internacionais, inclusive na pr\u00e1tica diplom\u00e1tica. Nesse sentido, parece oportuno lembrar o processo de abertura do com\u00e9rcio do Jap\u00e3o no s\u00e9culo XIX. Ao longo do per\u00edodo de cerca de 250 anos, iniciado com a instaura\u00e7\u00e3o do xogunato de Ieyasu Tokugawa, no in\u00edcio do s\u00e9culo XVII, o Jap\u00e3o permaneceu fechado \u00e0s rela\u00e7\u00f5es pol\u00edticas e comerciais com o mundo. Foi somente a partir do Tratado Kanagawa assinado em 31 de mar\u00e7o de 1854 entre o Comodoro Mathew G. Perry e os representantes do Shogun que as rela\u00e7\u00f5es entre o Jap\u00e3o e os EUA puderam ter in\u00edcio. Em 1858 foi assinado um Tratado de Amizade e Com\u00e9rcio entre o Jap\u00e3o e os EUA, ao qual se seguiu a assinatura de tratados semelhantes com outras pot\u00eancias do Ocidente. Foi somente depois dessas a\u00e7\u00f5es diplom\u00e1ticas que o com\u00e9rcio e a coopera\u00e7\u00e3o em outros dom\u00ednios entre o Jap\u00e3o e as pot\u00eancias ocidentais puderam florescer garantidas pelo estabelecimento de escrit\u00f3rios e de representa\u00e7\u00f5es comerciais permanentes nesses pa\u00edses sob a garantia de acordos e de mecanismos de prote\u00e7\u00e3o m\u00fatua de direitos a estrangeiros residentes.<\/p>\n

Esse caso serve para ilustrar a mudan\u00e7a bastante radical ocorrida na pr\u00e1tica diplom\u00e1tica e no seu papel nas rela\u00e7\u00f5es entre na\u00e7\u00f5es desde o s\u00e9culo XIX. Com efeito, mesmo sem a dramaticidade do caso das rela\u00e7\u00f5es pol\u00edticas e comerciais entre os EUA e o Jap\u00e3o, at\u00e9 as primeiras d\u00e9cadas do p\u00f3s-Segunda Guerra Mundial a assinatura de acordos diplom\u00e1ticos eram essenciais para dar in\u00edcio \u00e0 coopera\u00e7\u00e3o comercial e pol\u00edtica entre as na\u00e7\u00f5es. Ou seja, antes da globaliza\u00e7\u00e3o, em larga medida, as rela\u00e7\u00f5es comerciais somente se estabeleciam depois de um processo diplom\u00e1tico formal, frequentemente dif\u00edcil e complicado. Na realidade, no caso relatado da abertura comercial do Jap\u00e3o, houve at\u00e9 mesmo a amea\u00e7a do uso do poder de fogo da frota comandada pelo Comodoro Perry. Nos dias de hoje, por diversos meios, iniciativas no com\u00e9rcio e em a\u00e7\u00f5es cooperativas internacionais frequentemente s\u00e3o tomadas pelos pr\u00f3prios atores, isto \u00e9, por empresas e mesmo por organiza\u00e7\u00f5es civis porque, de algum modo, os acordos necess\u00e1rios simplesmente j\u00e1 existem na forma de algum arranjo multilateral que contempla essa possibilidade, ou porque nenhum governo ir\u00e1 contestar ou criar dificuldade a qualquer iniciativa que pode beneficiar seus nacionais. Uma clara manifesta\u00e7\u00e3o dessa nova realidade tem sido o crescente ativismo do que tem sido chamado de \u201cparadiplomacia<\/em>\u201d, na qual inst\u00e2ncias subnacionais tomam iniciativas de fazer avan\u00e7ar os interesses internacionais de munic\u00edpios ou de outras categorias que hoje comp\u00f5em as estruturas pol\u00edticas das na\u00e7\u00f5es. Em outras palavras, se em meados do s\u00e9culo XIX as rela\u00e7\u00f5es comerciais entre os EUA e o Jap\u00e3o s\u00f3 poderiam se iniciar ap\u00f3s uma a\u00e7\u00e3o diplom\u00e1tica do governo americano apoiado at\u00e9 pela Marinha de guerra, hoje, em um mundo j\u00e1 bastante integrado, a diplomacia pode ser acionada para regularizar ou aprimorar alguma iniciativa em curso, mas raramente ser\u00e1 chamada para iniciar um processo de aproxima\u00e7\u00e3o internacional, excetuando casos excepcionais como os da Coreia do Norte ou de Cuba.<\/p>\n

\u00c9 nessa perspectiva que eventuais movimentos diplom\u00e1ticos na esfera multilateral devem ser vistas. Na realidade, o novo multilateralismo valoriza cada vez mais arranjos informais como o G-8 e o G-20, ou ainda os pactos firmados em confer\u00eancias internacionais como t\u00eam sido o caso das confer\u00eancias sobre o clima. Enquanto, por outro lado, inst\u00e2ncias como a Organiza\u00e7\u00e3o Mundial do Com\u00e9rcio<\/em> (OMC) atuam em \u00e1reas j\u00e1 estabelecidas e organizadas nas quais o trabalho diplom\u00e1tico pode ser requerido apenas para resolver quest\u00f5es pontuais que, eventualmente, podem incluir o acionamento do mecanismo de solu\u00e7\u00e3o de controv\u00e9rsias. Al\u00e9m disso, quest\u00f5es envolvendo petr\u00f3leo ou produtos industriais s\u00e3o tratadas por regimes pr\u00f3prios.<\/p>\n

Em rela\u00e7\u00e3o \u00e0s organiza\u00e7\u00f5es internacionais formais, vale refletir tamb\u00e9m sobre sua efic\u00e1cia, que continua dependendo muito mais das condi\u00e7\u00f5es e dos recursos do pr\u00f3prio pa\u00eds participante do que de ativismo diplom\u00e1tico de qualquer tipo. Na realidade, organiza\u00e7\u00f5es como a OCDE, por exemplo, funcionam principalmente como inst\u00e2ncias que oferecem formas de reconhecimento ou certifica\u00e7\u00e3o internacional de \u201cqualidade\u201d tais como o cumprimento em bases regulares de cl\u00e1usulas ambientais, o respeito aos direitos humanos e \u00e0 liberdade de imprensa e, na economia, depende do sistema fiscal e dos indicadores de seguran\u00e7a jur\u00eddica, que devem ser compat\u00edveis com os indicadores dos demais pa\u00edses integrantes do bloco. Ou seja, em termos pr\u00e1ticos, o pa\u00eds ao tornar-se membro da OCDE pode ser inclu\u00eddo nos estudos e nos relat\u00f3rios produzidos pela institui\u00e7\u00e3o e para quaisquer iniciativas na esfera internacional, inclusive para receber investimentos de outros pa\u00edses, a posi\u00e7\u00e3o que o pa\u00eds ocupa nesses estudos e relat\u00f3rios serve como uma esp\u00e9cie de \u201ccertifica\u00e7\u00e3o de qualidade\u201d. De forma mais espec\u00edfica, pode-se mencionar a import\u00e2ncia dos efeitos sobre as ag\u00eancias internacionais de classifica\u00e7\u00e3o de risco financeiro que, na realidade, s\u00e3o organiza\u00e7\u00f5es privadas, mas cujas avalia\u00e7\u00f5es refletem o conjunto da imagem que as na\u00e7\u00f5es e as grandes companhias desfrutam na esfera p\u00fablica. Nesse caso, relat\u00f3rios e estudos oficiais produzidos por organiza\u00e7\u00f5es como a OCDE desempenham importante papel na constru\u00e7\u00e3o dos conceitos de confiabilidade e seguran\u00e7a atribu\u00eddos a empresas e \u00e0 economia das na\u00e7\u00f5es.<\/p>\n

Considera\u00e7\u00f5es finais: o Brasil e o multilateralismo<\/strong><\/p>\n

Finalmente, cabe uma breve considera\u00e7\u00e3o sobre a participa\u00e7\u00e3o de governos em inst\u00e2ncias multilaterais. \u00c9 poss\u00edvel classificar como participa\u00e7\u00e3o bastante ativa quando governos prop\u00f5em a cria\u00e7\u00e3o de uma nova organiza\u00e7\u00e3o internacional ou toma medidas efetivas para o estabelecimento e para o funcionamento regular de uma organiza\u00e7\u00e3o internacional. A motiva\u00e7\u00e3o para esse tipo de atitude deve ser o interesse desse governo no sentido de criar um novo regime internacional ou modificar de alguma forma um regime vigente no sentido de melhor atender seus interesses e suas vis\u00f5es sobre princ\u00edpios entendidos como adequados para orientar o comportamento dos atores na cena regional ou global. Essa forma de atuar em rela\u00e7\u00e3o a inst\u00e2ncias multilaterais \u00e9 caracter\u00edstica de grandes pot\u00eancias cujos interesses tendem a ser amplos e se estendem para muitas esferas que podem ser influenciados por pol\u00edticas praticadas por outras na\u00e7\u00f5es. Entre os casos mais not\u00e1veis dessa forma de participa\u00e7\u00e3o em inst\u00e2ncias multilaterais, sem d\u00favida, destaca-se o dos Estados Unidos na cria\u00e7\u00e3o e na administra\u00e7\u00e3o das organiza\u00e7\u00f5es internacionais criadas na esteira da Segunda Guerra Mundial, notadamente a ONU e as organiza\u00e7\u00f5es que formaram os regimes internacionais na esfera econ\u00f4mica (FMI, Banco Mundial e GATT). Nesses casos o governo dos EUA exerceu n\u00e3o apenas uma lideran\u00e7a pol\u00edtica decisiva na cria\u00e7\u00e3o dessas organiza\u00e7\u00f5es, mas foi a principal fonte de recursos para operacionalizar seu funcionamento. Entre as muitas evid\u00eancias dessa lideran\u00e7a bastante ativa est\u00e1 o fato de que quase todas essas institui\u00e7\u00f5es est\u00e3o sediadas nos EUA que, at\u00e9 hoje, contribui com parcela significativa dos recursos necess\u00e1rios ao seu funcionamento regular.<\/p>\n

Uma segunda categoria de atitude de governos em rela\u00e7\u00e3o a inst\u00e2ncias multilaterais seria a dos governos que atuam com regularidade dentro dos regimes internacionais, dos quais essas organiza\u00e7\u00f5es constituem parte importante. Pode-se considerar que essa modalidade de participa\u00e7\u00e3o em inst\u00e2ncias multilaterais caracteriza-se por: 1) levar as quest\u00f5es de interesse nacional para serem consideradas nessas inst\u00e2ncias, aceitando e cumprindo suas decis\u00f5es e recomenda\u00e7\u00f5es; 2) participando, sempre que solicitado, de comiss\u00f5es, de grupos de trabalho e de iniciativas de a\u00e7\u00e3o das organiza\u00e7\u00f5es internacionais; 3) pagando com regularidade as taxas e contribui\u00e7\u00f5es financeiras previstas nos estatutos dessas organiza\u00e7\u00f5es. Esse padr\u00e3o, na realidade, reflete o comportamento da grande maioria das na\u00e7\u00f5es, para quem os regimes internacionais constituem apenas uma realidade com a qual se deve conviver e, objetivamente, tendo por entendimento o fato de que a maior parte das oportunidades e de problemas dever\u00e1 emergir dentro desses regimes.<\/p>\n

Essa classifica\u00e7\u00e3o \u2013 obviamente bastante simplificada \u2013 foi extra\u00edda da teoria dos regimes internacionais, que discute a forma\u00e7\u00e3o, o decl\u00ednio da efic\u00e1cia e as mudan\u00e7as dos regimes internacionais[12]<\/a>. Como j\u00e1 foi apontado, uma forma de manifesta\u00e7\u00e3o do multilateralismo s\u00e3o os arranjos regionais e tamb\u00e9m os arranjos voltados para objetivos espec\u00edficos (temas como meio ambiente, prote\u00e7\u00e3o de direitos humanos, promo\u00e7\u00e3o de formas de desenvolvimento social, desenvolvimento cient\u00edfico, seguran\u00e7a etc.) e, nesse quadro de possibilidades, os governos podem ser muito pouco atuantes em alguns arranjos ou regimes de que participam e, ao mesmo tempo, podem ser muito ativos em um ou outro regime espec\u00edfico do qual participam e que podem ser mais relevantes para seus interesses.<\/p>\n

Nesse quadro, pode-se constatar que, para um pa\u00eds como o Brasil, na condi\u00e7\u00e3o de pot\u00eancia m\u00e9dia, a participa\u00e7\u00e3o em inst\u00e2ncias multilaterais dificilmente poderia ir al\u00e9m de um participante regular dos regimes internacionais e das institui\u00e7\u00f5es e pr\u00e1ticas que comp\u00f5em esses regimes. Isto, no entanto, n\u00e3o impediria que o governo brasileiro em certas circunst\u00e2ncias e em certas inst\u00e2ncias tivesse uma postura mais afirmativa como ocorreu, por exemplo, na Segunda Confer\u00eancia de Paz da Haia. Na realidade, em 1907 o multilateralismo era ainda uma experi\u00eancia muito nova nas rela\u00e7\u00f5es internacionais e tamb\u00e9m n\u00e3o havia assumido as caracter\u00edsticas atuais. \u00c0 \u00e9poca, as vis\u00f5es predominantes eram ainda fortemente centradas em princ\u00edpios jur\u00eddicos e na no\u00e7\u00e3o de que a soberania das na\u00e7\u00f5es era um valor quase absoluto, como era t\u00edpico da vis\u00e3o de mundo dos homens de Estado da era vitoriana. Esse fato explica a agenda de debates da Confer\u00eancia que foi centrada em temas como os recursos jur\u00eddicos para a solu\u00e7\u00e3o pac\u00edfica de conflitos armados, a imposi\u00e7\u00e3o de limites ao emprego de certos armamentos nas guerras, os direitos e as prerrogativas da neutralidade numa guerra, ou ainda os direitos relativos a presos de guerra. Nesse quadro, a cultura e o saber jur\u00eddico eram essenciais para a diplomacia, fato que ajuda a compreender o destaque recebido por Rui Barbosa na defesa do princ\u00edpio da igualdade entre as na\u00e7\u00f5es, contestando o entendimento de que a for\u00e7a poderia originar direitos. Nesse sentido, suas interven\u00e7\u00f5es foram de not\u00e1vel import\u00e2ncia para a cria\u00e7\u00e3o e para a conforma\u00e7\u00e3o do que viria a ser a Corte Permanente de Arbitragem e a Corte Internacional de Justi\u00e7a que haviam sido temas de debate desde a Primeira Confer\u00eancia de Paz da Haia (1899).<\/p>\n

O per\u00edodo de pouco mais de uma d\u00e9cada que separa a Segunda Confer\u00eancia da Haia (1907) e o fim da Primeira Guerra Mundial (1919) trouxe para as rela\u00e7\u00f5es internacionais e para a pr\u00e1tica diplom\u00e1tica mudan\u00e7as not\u00e1veis. As concep\u00e7\u00f5es da era vitoriana baseadas no valor do Direito e na centralidade do conceito de soberania foram ultrapassadas por uma realidade muito mais complexa onde os interesses nacionais passaram a n\u00e3o ser coincidentes com as fronteiras, extrapolando e interagindo com a pol\u00edtica e com a economia de outros pa\u00edses. A Liga das Na\u00e7\u00f5es emergiu nesse quadro e constituiu a primeira experi\u00eancia real desse novo multilateralismo, assentado muito mais na pol\u00edtica internacional do que no Direito Internacional. A decis\u00e3o de criar uma nova organiza\u00e7\u00e3o internacional (ONU) ao inv\u00e9s de reativar a Liga das Na\u00e7\u00f5es, em larga medida, retrata o fato de que a experi\u00eancia da Liga das Na\u00e7\u00f5es n\u00e3o fora capaz de realizar com sucesso essa transi\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Dentro desse novo multilateralismo, o peso e as caracter\u00edsticas da na\u00e7\u00e3o como ator no quadro das rela\u00e7\u00f5es internacionais tornou-se parte integrante da pr\u00e1tica diplom\u00e1tica. O Direito Internacional, embora tenha continuado a ser uma base importante para as a\u00e7\u00f5es e para as decis\u00f5es das inst\u00e2ncias multilaterais, passou a conviver com outros elementos que emergiram como fatores decisivos. No novo multilateralismo, as dimens\u00f5es econ\u00f4micas e pol\u00edticas ganharam espa\u00e7o como condicionantes que n\u00e3o podem ser deixadas de lado. Al\u00e9m disso, como j\u00e1 foi destacado, o mundo tornou-se muito mais integrado inclusive em termos de interesses que, na maioria das vezes, transcendem as fronteiras formalmente demarcadas. Com efeito, na esfera do Direito discute-se e decide-se de acordo com normas, tratados e princ\u00edpios legais reconhecidos. Na pol\u00edtica internacional a pr\u00e1tica diplom\u00e1tica tradicional baseada no Direito Internacional incorporou o conceito de \u201cnegocia\u00e7\u00e3o\u201d, que \u00e9 sempre pol\u00edtica e que deve tentar conciliar interesses leg\u00edtimos, mas frequentemente contradit\u00f3rios.<\/p>\n

Esse \u00e9 o lado do multilateralismo que torna fundamentais elementos como a lideran\u00e7a, o poder e, principalmente, a disponibilidade de recursos. \u00c9 o que explica a constru\u00e7\u00e3o da ordem internacional depois da Segunda Guerra Mundial cujos regimes, em sua maioria, foram constru\u00eddos sob a lideran\u00e7a dos EUA que era a \u00fanica na\u00e7\u00e3o capaz de prover recursos em larga escala. No sentido oposto, tamb\u00e9m ajuda a explicar porque arranjos como o MERCOSUL e a OTCA (Organiza\u00e7\u00e3o do Tratado de Coopera\u00e7\u00e3o Amaz\u00f4nica) jamais desempenharam papel de destaque como instrumentos de constru\u00e7\u00e3o da ordem na regi\u00e3o e jamais tiveram qualquer chance de ganhar relev\u00e2ncia internacional, uma vez que o pa\u00eds l\u00edder desses arranjos \u2013 o Brasil \u2013 jamais demonstrou disposi\u00e7\u00e3o suficiente para liderar iniciativas e fornecer os recursos necess\u00e1rios para esses arranjos[13]<\/a>. Na realidade, desde a redemocratiza\u00e7\u00e3o as rela\u00e7\u00f5es exteriores como um todo jamais foram reconhecidas como prioridade dos governos brasileiros. A tradi\u00e7\u00e3o de uma na\u00e7\u00e3o voltada para si mesma foi mantida pelos sucessivos governos, independentemente do partido pol\u00edtico ao qual se filiasse o governante. Com a globaliza\u00e7\u00e3o, diferentemente do que ocorreu com as principais economias do mundo, no Brasil a ideia de um mundo cada vez mais integrado continuou sendo apenas uma figura de ret\u00f3rica pol\u00edtica. Para o resto do mundo, os interesses nacionais tornaram-se fortemente integradas com os interesses de outras na\u00e7\u00f5es. Com efeito, no Brasil, em mat\u00e9ria de rela\u00e7\u00f5es exteriores os sucessivos governos preferiram manter o velho padr\u00e3o de mercado e de produto definidos nacionalmente. Assim, em inst\u00e2ncias multilaterais, jamais a diplomacia foi al\u00e9m da ret\u00f3rica pol\u00edtica.<\/p>\n

Uma das raz\u00f5es que podem ajudar a explicar esse padr\u00e3o de desinteresse pela pr\u00e1tica de uma diplomacia ativa pode ser vista no fato de que, ao longo dos anos que se seguiram ao fim dos governos militares, os recursos or\u00e7ament\u00e1rios foram sendo, gradativamente, orientados em sua quase totalidade ao pagamento dos gastos com despesas de autoridades e de uma burocracia p\u00fablica cada vez mais pesada e menos eficiente, produzindo uma vers\u00e3o original e modernizada do velho patrimonialismo<\/em> de outros tempos[14]<\/a>. Esse conceito interpreta a condi\u00e7\u00e3o de um Estado em que os limites entre os recursos p\u00fablicos e privados s\u00e3o indistintos, ou seja, os recursos do Estado se confundem com o patrim\u00f4nio dos ocupantes dos cargos de poder. Nos \u00faltimos anos, cerca de 95% de toda a arrecada\u00e7\u00e3o p\u00fablica tem sido gasta com as folhas de pagamento do funcionalismo p\u00fablico, com o pagamento de inativos, pensionistas e aposentados e at\u00e9 mesmo para custear partidos pol\u00edticos e suas campanhas eleitorais. Com os 5% restantes, os governos precisam custear as despesas com \u00e1gua e energia el\u00e9trica, com a limpeza, a manuten\u00e7\u00e3o e a seguran\u00e7a dos edif\u00edcios e das instala\u00e7\u00f5es p\u00fablicas. O resultado dessa realidade cont\u00e1bil \u00e9 que, para produzir e executar pol\u00edticas p\u00fablicas (inclusive rela\u00e7\u00f5es exteriores) os recursos s\u00f3 podem vir da capacidade de endividamento dos governos de plant\u00e3o.<\/p>\n

Em suma, a viabilidade de organiza\u00e7\u00f5es como o MERCOSUL e a OTCA dependiam \u2013 por raz\u00f5es econ\u00f4micas, demogr\u00e1ficas e pol\u00edticas \u2013 diretamente da lideran\u00e7a e, consequentemente, dos recursos que os governos brasileiros poderiam aportar a esses arranjos. Uma possibilidade que jamais teve qualquer chance efetiva em um ambiente pol\u00edtico de um Estado francamente dominado pelo corporativismo. Na realidade, n\u00e3o se afigura exagero o entendimento de que, por natureza, o Estado patrimonialista \u00e9 refrat\u00e1rio a qualquer \u201cpol\u00edtica de Estado\u201d, pois toda pol\u00edtica de Estado tem a inc\u00f4moda caracter\u00edstica de buscar beneficiar t\u00e3o somente o \u201cbem comum\u201d e, al\u00e9m disso, geralmente o horizonte de tempo \u00e9 o longo prazo e n\u00e3o as pr\u00f3ximas elei\u00e7\u00f5es. A pol\u00edtica externa, por sua vez \u00e9, por natureza, um dom\u00ednio da pol\u00edtica de Estado, n\u00e3o sendo um simples acaso ou escolha que, nos Estados Unidos, desde sua forma\u00e7\u00e3o como na\u00e7\u00e3o independente, o respons\u00e1vel pelas rela\u00e7\u00f5es exteriores \u00e9 chamado de \u201cSecret\u00e1rio de Estado\u201d.<\/p>\n

 <\/p>\n

[1]<\/a> Ensaio escrito como texto de suporte para o minicurso sobre \u201cO Retorno do Multilateralismo\u201d no VI Encontro de Pesquisa em Rela\u00e7\u00f5es Internacionais, organizado pelo PET-RI da UNESP-FFC (21\/Jan\/2022).<\/p>\n

[2]<\/a> Professor de Rela\u00e7\u00f5es Internacionais da Universidade de Bras\u00edlia.<\/p>\n

[3]<\/a> O conceito de regimes internacionais ganhou forma definida no in\u00edcio da d\u00e9cada de 1980, sendo entendida como um conjunto de princ\u00edpios, normas, regras e processos decis\u00f3rios vigentes e aplicados de forma cooperativa pelos Estados Nacionais dentro de um campo espec\u00edfico das rela\u00e7\u00f5es internacionais (S. D. KRASNER, International Regimes,<\/em> Cornell University Press, 1982).<\/p>\n

[4]<\/a> A teoria dos ciclos de Nicolai Kondratiev (1926) baseou-se em estudos estat\u00edsticos das economias americana, brit\u00e2nica e francesa que contrariavam a interpreta\u00e7\u00e3o oficial da URSS do colapso inevit\u00e1vel do capitalismo. Mais tarde, Schumpeter recuperou a obra de Kondratiev e acrescentou os argumentos do papel do empreendedor e da tecnologia.<\/p>\n

[5]<\/a> O destino da Segunda Guerra Mundial foi selado com a realiza\u00e7\u00e3o dos encontros do Big Three<\/em> (EUA, URSS e Gr\u00e3-Bretanha) em Teer\u00e3 (dezembro\/1943), Yalta (fevereiro\/1945) e em Potsdam (julho\/agosto\/1945). Roosevelt entendia que a paz deveria ser constru\u00edda a partir dos \u201cQuatro Gendarmes\u201d (EUA, URSS, Gr\u00e3-Bretanha e China). Cada \u201cgendarme\u201d seria respons\u00e1vel por sua \u00e1rea de influ\u00eancia geopol\u00edtica. Em 1945, o sistema colonial brit\u00e2nico ainda inclu\u00eda pa\u00edses como a \u00cdndia.<\/p>\n

[6]<\/a> Estimulado pela guerra fria, o Plano Marshall foi lan\u00e7ado em 1947 e, em cinco anos, apenas em recursos p\u00fablicos, forneceu \u00e0 Europa mais de US$ 25 bilh\u00f5es.<\/p>\n

[7]<\/a> Um dos maiores fundos de investimento privado \u00e9 o grupo Blackrock Inc. Fundado em 2008, os clientes s\u00e3o governos, empresas, funda\u00e7\u00f5es, universidades e tamb\u00e9m indiv\u00edduos que poupam para a aposentadoria futura e para educa\u00e7\u00e3o dos filhos no futuro. Apenas a PNC Financial Services, que tem 23,6 % da Blackrock, administra cerca de US$ 7,4 trilh\u00f5es em ativos financeiros.<\/p>\n

[8]<\/a> TRIFFIN, R. The Evolution of the International Monetary System: Historical Reappraisal and Future Perspectives. Essays in International Finance<\/em> n.12, 1964. Princeton University Press, 1964.<\/p>\n

[9]<\/a> Vale lembrar que os recursos do FMI eram provenientes das cotas a serem pagas pelos pa\u00edses-membros, isto \u00e9, justamente pelos pa\u00edses endividados, que necessitavam de recursos.<\/p>\n

[10]<\/a> Esse epis\u00f3dio \u00e9 bem retratado no livro O Brasil e a Liga das Na\u00e7\u00f5es. 1919-1926<\/em>, de autoria de EUG\u00caNIO VARGAS GARCIA (Imprenta\/UFRGS\/FUNAG, 2000).<\/p>\n

[11]<\/a> BELA BALASSA (1928-91), nascido na Hungria, notabilizou-se como professor da Johns Hopkins University e seu livro The Theory of Economic Integration<\/em> (Routledge, 1962) foi uma obra bastante influente em seu tempo.<\/p>\n

[12]<\/a> Muitos estudiosos das rela\u00e7\u00f5es internacionais ofereceram reflex\u00f5es sobre a din\u00e2mica dos regimes internacionais. Na obra seminal sobre regimes internacionais, organizada por S. D. KRASNER International Regimes<\/em> (Cornell University Press, 1983), ver especialmente os cap\u00edtulos escritos por ORAN YOUNG, ARTHUR STEIN e ROBERT KEOHANE.<\/p>\n

[13]<\/a> O contraste \u00e9 enorme entre as dimens\u00f5es do Brasil em rela\u00e7\u00e3o aos demais pa\u00edses-membros do MERCOSUL. Em termos de popula\u00e7\u00e3o e do PIB, a disparidade tamb\u00e9m \u00e9 muito grande. Em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 OTCA, tamb\u00e9m o Brasil representa bem mais do que 50% da regi\u00e3o e, al\u00e9m disso, tamb\u00e9m bem mais da metade da \u00e1rea contemplada pelo Tratado encontra-se em territ\u00f3rio brasileiro.<\/p>\n

[14]<\/a> O conceito foi difundido por Max Weber e v\u00e1rios estudiosos desenvolveram interpreta\u00e7\u00f5es do Estado patrimonialista no Brasil (Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, Ricardo V\u00e9lez Rodrigues, entre outros).<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

O autor examina o papel do multilateralismo na ordem internacional em transforma\u00e7\u00e3o, destacando, no final, o que ocorre com o Brasil.<\/p>\n","protected":false},"author":149,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_monsterinsights_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"footnotes":""},"categories":[913],"tags":[915,794,917,916,914,803],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=\/wp\/v2\/posts\/3573"}],"collection":[{"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=\/wp\/v2\/users\/149"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=%2Fwp%2Fv2%2Fcomments&post=3573"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=\/wp\/v2\/posts\/3573\/revisions"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=%2Fwp%2Fv2%2Fmedia&parent=3573"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=%2Fwp%2Fv2%2Fcategories&post=3573"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=%2Fwp%2Fv2%2Ftags&post=3573"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}