{"id":3153,"date":"2018-01-31T10:58:45","date_gmt":"2018-01-31T13:58:45","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=3153"},"modified":"2018-01-31T10:58:45","modified_gmt":"2018-01-31T13:58:45","slug":"o-conceito-de-austeridade-se-aplica-ao-brasil","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=3153","title":{"rendered":"O conceito de austeridade se aplica ao Brasil?"},"content":{"rendered":"

Muitos economistas brasileiros ainda insistem em apontar uma eventual pol\u00edtica de austeridade fiscal como uma das causas de nossa crise. Acreditam que um corte de gastos, ou n\u00e3o expans\u00e3o das despesas, contribuiu bastante para o tamanho e dura\u00e7\u00e3o da recess\u00e3o. Alguns mais ousados v\u00e3o al\u00e9m: comparam a situa\u00e7\u00e3o brasileira com a dos pa\u00edses avan\u00e7ados (sobretudo europeus) no p\u00f3s-crise, sugerindo o uso da pol\u00edtica fiscal como solu\u00e7\u00e3o para os nossos problemas. Teriam eles raz\u00e3o?<\/p>\n

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A resposta dos pa\u00edses desenvolvidos ap\u00f3s a crise de 2008<\/strong><\/p>\n

Uma das grandes controv\u00e9rsias em economia de fato diz respeito aos efeitos da pol\u00edtica fiscal na atividade econ\u00f4mica. Em que condi\u00e7\u00f5es um aumento do gasto p\u00fablico se traduz em aumento do produto?<\/p>\n

Essa discuss\u00e3o esteve em segundo plano nas d\u00e9cadas de 80 e 90. \u00c0 \u00e9poca, o consenso macroecon\u00f4mico dizia que a pol\u00edtica monet\u00e1ria \u2013 mudan\u00e7as nos juros, cr\u00e9dito e moeda \u2013 seria a mais adequada para estabilizar uma economia. Esse consenso mudou com a crise de 2008. Desde ent\u00e3o, muitas economias desenvolvidas chegaram ao m\u00ednimo hist\u00f3rico em suas taxas de juros. <\/em><\/p>\n

Nos EUA, a resposta \u00e0 crise veio com um pacote fiscal. Ao American Recovery and Reinvestment Act<\/em>, aprovado em fevereiro de 2009, se atribui papel importante em impedir que a recess\u00e3o se transformasse em depress\u00e3o.<\/p>\n

Na Europa, uma uni\u00e3o monet\u00e1ria, a discuss\u00e3o era mais quente, assim como a diverg\u00eancia. Em alguns pa\u00edses, os defensores da austeridade argumentavam que, com d\u00e9ficit e d\u00edvida elevados, cortes de despesas seriam a solu\u00e7\u00e3o para a retomada.<\/p>\n

Em teste, a austeridade via gastos aumentaria a confian\u00e7a dos agentes.\u00a0Esse discurso tinha por base os trabalhos do economista italiano Alberto Alesina, um dos proponentes da tese da \u201ccontra\u00e7\u00e3o fiscal expansionista\u201d. Ou seja, uma contra\u00e7\u00e3o da despesa p\u00fablica poderia funcionar como um est\u00edmulo \u00e0 economia.<\/p>\n

Pouco a pouco, contudo, essa controv\u00e9rsia foi se desfazendo, em favor daqueles contr\u00e1rios \u00e0 austeridade.<\/p>\n

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O que a experi\u00eancia p\u00f3s-crise ensinou aos economistas<\/strong><\/p>\n

Novas evid\u00eancias surgiram com os ajustes realizados na Europa. Um trabalho importante nesse sentido foi o de Blanchard e Leigh (2013)1<\/sup>. O artigo mostra que pa\u00edses com maior corte de gastos foram aqueles com maior diferen\u00e7a entre o crescimento previsto e o efetivo. Os ajustes pareciam duros demais.<\/p>\n

Com uma revis\u00e3o mais cuidadosa dos trabalhos de Alesina e seus colegas, diversas cr\u00edticas metodol\u00f3gicas ganharam for\u00e7a. Uma delas diz respeito ao problema de vari\u00e1vel omitida. Ap\u00f3s um ajuste fiscal \u201cde sucesso\u201d, a economia poderia ter se recuperado n\u00e3o pelo ajuste em si, mas por qualquer motivo ex\u00f3geno, como um aumento no pre\u00e7o de commodities<\/em>. Levando essas cr\u00edticas em considera\u00e7\u00e3o, o resultado mais geral da pesquisa de Alesina se perdia, como j\u00e1 mostrava em 2010 um importante texto do FMI2<\/sup>.<\/p>\n

Durante este per\u00edodo, ocorreu uma explos\u00e3o de trabalhos te\u00f3ricos e emp\u00edricos para examinar os efeitos da pol\u00edtica fiscal. Chistina Romer, uma das principais especialistas mundiais no tema, afirmou em 2011 que provavelmente havia mais estudos nessa \u00e1rea entre 2008 e 2011 do que nos 25 anos anteriores3<\/sup>.<\/p>\n

A literatura acad\u00eamica aprimorou rapidamente seus instrumentos para medir o impacto de gastos fiscais, atrav\u00e9s de novas t\u00e9cnicas para identifica\u00e7\u00e3o de choques. Grande parte dos resultados sugeria que esse impacto (o multiplicador fiscal) varia de acordo com o momento do ciclo econ\u00f4mico, do regime de c\u00e2mbio adotado e da pol\u00edtica monet\u00e1ria4<\/sup>. E, quase sempre, apresentam valores positivos \u2013 ou seja, cortes de gastos geralmente impactam negativamente a economia, e vice-versa.<\/p>\n

Diante de toda essa pesquisa no assunto, a maioria dos economistas reconhece, hoje em dia, que os defensores da austeridade perderam o debate na Europa5<\/sup>.<\/p>\n

Aumentar o n\u00edvel de gastos pode, em determinadas circunst\u00e2ncias, desempenhar um papel importante para a sa\u00edda de uma crise econ\u00f4mica, ajudando a recuperar a produ\u00e7\u00e3o no curto prazo. Restaria, ent\u00e3o, saber se podemos generalizar estes resultados para qualquer economia em qualquer contexto.<\/p>\n

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O que esse debate tem a ver com a crise brasileira?<\/strong><\/p>\n

Alguns economistas brasileiros erroneamente acreditam que podem generalizar as conclus\u00f5es do debate sobre a Europa.<\/p>\n

Quando a economia do Brasil come\u00e7ou a se desacelerar fortemente, a interpreta\u00e7\u00e3o majorit\u00e1ria foi de que a crise tinha s\u00f3lidas ra\u00edzes fiscais. Mas alguns economistas passaram a se manifestar fortemente contra o ajuste das contas p\u00fablicas, afirmando que seria um \u201causteric\u00eddio\u201d. Um exemplo desse discurso est\u00e1 exposto no relat\u00f3rio \u201cAusteridade e Retrocesso\u201d, lan\u00e7ado em 2016.<\/p>\n

Um dos textos mais citados para justificar essa vis\u00e3o heterodoxa foi escrito por t\u00e9cnicos do FMI, em 2016, denominado \u201cNeoliberalism: oversold?<\/em>\u201d. Nele, afirmava-se que a despeito de alguns sucessos da agenda neoliberal, alguns pontos n\u00e3o haviam tido bons resultados, como a consolida\u00e7\u00e3o fiscal. O problema \u00e9 que o texto do FMI focava em pa\u00edses avan\u00e7ados com custos de financiamento de d\u00edvida muito baixos.<\/p>\n

No pr\u00f3prio texto do FMI, admitia-se que muitos pa\u00edses tinham pouca escolha al\u00e9m de um ajuste fiscal, pois os mercados n\u00e3o permitiriam que continuassem se endividando. Esta \u00faltima ressalva se aplica ao Brasil.<\/p>\n

Outro artigo usado como argumento pelo grupo de economistas brasileiros foi Ball et al<\/em> (2013)6<\/sup>. Trata-se de um trabalho emp\u00edrico, cuja amostra \u00e9 formada por 17 pa\u00edses da OCDE. O resultado principal indicava que uma consolida\u00e7\u00e3o fiscal de 1% do PIB poderia aumentar o desemprego e a desigualdade, respectivamente em 0,6 e 1,5 pontos percentuais. O problema \u00e9 que, assim como no caso anterior, o trabalho se baseava em pa\u00edses desenvolvidos, com conclus\u00f5es n\u00e3o facilmente aplic\u00e1veis a contextos distintos.<\/p>\n

O terceiro trabalho bastante utilizado como argumento contra o ajuste foi o \u201cThe Permanent Effects of Fiscal Consolidation\u201d<\/em>, de Fat\u00e1s e Summers, de 2016. De maneira geral, encontrava evid\u00eancias de efeitos negativos de longo prazo da pol\u00edtica fiscal no p\u00f3s-crise, sendo um dos canais a histerese no mercado de trabalho. Como consequ\u00eancia, tentativas de reduzir a d\u00edvida via consolida\u00e7\u00e3o fiscal poderiam aumentar a rela\u00e7\u00e3o d\u00edvida\/PIB devido aos impactos negativos do ajuste no produto. Afirmavam, desta maneira, que pol\u00edticas de austeridade poderiam ser extremamente custosas.<\/p>\n

Mais uma vez, os pr\u00f3prios autores foram bastante claros ao negar que esta fosse uma conclus\u00e3o padr\u00e3o para todos os governos e em todos os momentos. Afirmavam estar olhando para um epis\u00f3dio bastante particular, quando circunst\u00e2ncias \u201cespeciais e severas\u201d estavam presentes: ou bem a pol\u00edtica monet\u00e1ria estava restrita pelo limite inferior da taxa de juros ou bem havia amarras institucionais impostas pela uni\u00e3o monet\u00e1ria da Europa.<\/p>\n

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O erro fatal na tese do \u2018austeric\u00eddio\u2019: n\u00e3o houve austeridade no Brasil<\/strong><\/p>\n

\u00a0<\/em>A tese do \u2018austeric\u00eddio\u2019 carece de sustenta\u00e7\u00e3o te\u00f3rica adequada para explicar a situa\u00e7\u00e3o atual da economia brasileira. Os textos nas quais se baseia n\u00e3o estudaram o contexto brasileiro, mas pa\u00edses avan\u00e7ados com baixo custo de financiamento de d\u00edvida e alguma forma de impedimento de pol\u00edtica monet\u00e1ria. Certamente, n\u00e3o \u00e9 o caso do Brasil, que tinha espa\u00e7o t\u00e3o amplo para uso da pol\u00edtica monet\u00e1ria (o qual vem corretamente aproveitando), al\u00e9m de uma d\u00edvida bastante elevada e cara frente aos seus pares emergentes.<\/p>\n

Al\u00e9m disso, a pr\u00f3pria qualifica\u00e7\u00e3o do debate de ajuste fiscal no Brasil \u00e9 controversa: os indicadores fiscais brasileiros falham em mostrar que tenhamos vivido um forte ajuste nas contas p\u00fablicas.<\/p>\n

Tomemos o exemplo de Portugal para compara\u00e7\u00e3o. O gasto p\u00fablico luso diminuiu 7,2% entre 2010 e 2012, em valores reais. De acordo com dados do FMI, s\u00f3 em 2020 voltar\u00e1 ao patamar de gastos de 2010.<\/p>\n

No Brasil, em contrapartida, o n\u00edvel real de gastos de 2016 ficou acima do n\u00edvel de gastos de 2014. Percebe-se facilmente que tal din\u00e2mica \u00e9 bastante distinta daquela verificada na Europa ap\u00f3s a crise: o que se chamou de austeridade por l\u00e1 n\u00e3o parece ter nenhuma correspond\u00eancia por aqui.<\/strong><\/p>\n

O que ocorre de fato no pa\u00eds, e pode causar certa confus\u00e3o, \u00e9 uma mudan\u00e7a na composi\u00e7\u00e3o do gasto federal. Enquanto avan\u00e7am os gastos com pessoal e, principalmente, benef\u00edcios previdenci\u00e1rios, sobra cada vez menos espa\u00e7o para outras despesas. Apesar de grandes cortes em \u00e1reas espec\u00edficas, como no apoio \u00e0 pesquisa acad\u00eamica, o volume total de gastos n\u00e3o diminuiu.<\/p>\n

Em 2014, a soma das rubricas pessoal, benef\u00edcios previdenci\u00e1rios e assist\u00eancias acumulava um volume de 63% da despesa total. Para o or\u00e7amento de 2018, esse mesmo volume est\u00e1 em 69%. O resultado \u00e9 que as despesas discricion\u00e1rias v\u00eam sofrendo um forte ajuste, mas sem que possamos dizer o mesmo da despesa total. \u00c9 por isso que a reforma da Previd\u00eancia \u00e9 t\u00e3o importante, objetivando amenizar essa tend\u00eancia.<\/strong><\/p>\n

Em suma, \u00e9 natural que a macroeconomia, frente aos novos desafios, repense algumas de suas velhas ideias. Alguns pa\u00edses vivem situa\u00e7\u00f5es in\u00e9ditas, como taxas de juros no limite inferior e utiliza\u00e7\u00e3o de mecanismos n\u00e3o convencionais de pol\u00edtica monet\u00e1ria. Parte dos pa\u00edses avan\u00e7ados convive ainda com baixo crescimento cr\u00f4nico, sem saber se voltar\u00e3o um dia a crescer a taxas mais elevadas. Ignorar essas quest\u00f5es e aplicar a l\u00f3gica de \u201cone size fits all\u201d<\/em> para a pol\u00edtica fiscal \u00e9 um caminho bastante equivocado para seguir.<\/p>\n

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Publicado originalmente no Instituto Mercado Popular em 4 de janeiro de 2018 sob o t\u00edtulo \u201cA crise brasileira n\u00e3o foi causada por austeridade\u201d. <\/em><\/p>\n

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1<\/sup> Blanchard e Leigh (2013) – Growth Forecast Errors and Fiscal Multipliers<\/a>.<\/p>\n

2<\/sup> IMF. Will it hurt? Macroeconomic Effects of Fiscal Consolidations, 2010.<\/p>\n

3<\/sup> Romer, C. (2011). What do we know about the effects of fiscal policy? Separating evidence from ideology.<\/p>\n

4<\/sup> Ver, por exemplo, texto de Nicoletta Batini e coautores, denominado \u201cSimple Method to Compute Fiscal Multipliers\u201d, de 2014.<\/p>\n

5<\/sup> Como afirmou, por exemplo, o chileno Andres Velasco: \u201cEurope\u2019s austerians lost the argument\u201d em Velasco (2017) – Can Fiscal Contraction Ever Boost Growth?<\/a><\/p>\n

6<\/sup> Ball et al (2013) – The Distributional Effects of Fiscal Consolidation. Ele \u00e9 citado, por exemplo, em\u00a0http:\/\/www1.folha.uol.com.br\/colunas\/laura-carvalho\/2016\/06\/1777343-e-preciso-muita-fe.shtml<\/a>.<\/p>\n

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