Aos 77 anos, Giorgos n\u00e3o imaginava passar por aquela situa\u00e7\u00e3o. Ap\u00f3s trabalhar por anos na mina de carv\u00e3o e na fundi\u00e7\u00e3o, ele sa\u00edra naquela manh\u00e3 de ver\u00e3o para sacar a aposentadoria da mulher. Sensibilizou-se com os pedintes que viu pelo caminho. Lembrou-se dos suic\u00eddios: n\u00e3o suportava mais ver o seu pa\u00eds assim. Tentou o saque da aposentadoria em uma ag\u00eancia, n\u00e3o conseguiu. Depois foi a mais um banco, nada. Insistiu em fazer o saque em mais outro, mas novamente sem sucesso. Na quarta vez que n\u00e3o conseguiu receber o benef\u00edcio, Seu Giorgos n\u00e3o aguentou. Sentou no meio da cal\u00e7ada e chorou.<\/p>\n
Um ano depois, talvez tivesse algum conhecido seu entre os que manifestavam contra o 15\u00ba corte no valor das aposentadorias, que ocorria mesmo ap\u00f3s um ano da posse do primeiro-ministro Tsipras, do partido que chegara ao poder com discurso antiausteridade. Naquela ocasi\u00e3o, os manifestantes de cabelos brancos toparam com um \u00f4nibus da pol\u00edcia no meio de sua passeata. Juntaram-se para tentar retir\u00e1-lo do caminho. A pol\u00edcia respondeu \u00e0 investida dos idosos. Com spray de pimenta.<\/p>\n
Irresponsabilidade fiscal e contabilidade criativa foram alguns dos causadores da complicada crise da Gr\u00e9cia. Em um dos pa\u00edses mais envelhecidos da Europa, a crise levou a cortes de aposentadorias e at\u00e9 a feriados banc\u00e1rios, como o que Seu Giorgos Chatzifotiadis enfrentou. A foto do seu pesadelo, \u201cO homem que chora\u201d, correu o mundo.<\/p>\n
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Em alguns anos, Seu Giorgos pode ser Seu Jorge. Um idoso de mesmo nome que acreditou na mesma promessa de seu pa\u00eds de pagar a ele uma aposentadoria como pagou a de outros. Seu Jorge est\u00e1 desesperado com a sua aposentadoria cortada. A idade avan\u00e7ada n\u00e3o lhe permite mais trabalhar, e ele n\u00e3o consegue tratar suas doen\u00e7as cr\u00f4nicas no SUS, cada dia mais sem dinheiro. \u00c9 arrimo de fam\u00edlia, uma vez que seus parentes jovens est\u00e3o desempregados. Seu pa\u00eds vive uma crise grega, s\u00f3 que com sua renda per capita<\/em> de Turquemenist\u00e3o. Antes dos cortes, Seu Jorge j\u00e1 ganhava a metade do que ganhava Seu Giorgos.<\/p>\n N\u00e3o acredita no que acontece. V\u00e1rios anos antes ouviu de novo aquela ladainha de reforma da Previd\u00eancia, mas recebeu no Whatsapp<\/em> o v\u00eddeo explicando que tudo era mentira: a Previd\u00eancia n\u00e3o tinha d\u00e9ficit, sobrava dinheiro que o governo desviava pra alguma coisa que Seu Jorge n\u00e3o entendeu muito bem o que era.<\/p>\n Seu Jorge n\u00e3o sabia que o v\u00eddeo fora criado por Nelson. Nelson ganhava bem mais que Seu Jorge, tinha direito a uma aposentadoria muito maior e com aumentos mais generosos, custeados n\u00e3o por suas pr\u00f3prias contribui\u00e7\u00f5es, mas pelas de pessoas como Seu Jorge. Nelson perderia esses direitos se o governo fizesse uma reforma.<\/p>\n Nelson era um orgulhoso servidor p\u00fablico, membro \u00a0da associa\u00e7\u00e3o que representava a sua carreira. Seu Jorge confiou na informa\u00e7\u00e3o do v\u00eddeo que recebeu porque tinha o selo de uma associa\u00e7\u00e3o nacional de auditores<\/em>. \u00c9 coisa de doutor, pensou. Seu Jorge n\u00e3o sabia que cabia a associa\u00e7\u00e3o de Nelson representar a carreira de elite com maior n\u00famero de aposentados e pensionistas da Uni\u00e3o, 20 mil.<\/p>\n Entre as pautas da associa\u00e7\u00e3o de Nelson, publicamente apresentadas em seu site em 2017, estavam o direito aos aumentos generosos, o fim da contribui\u00e7\u00e3o de servidores aposentados e at\u00e9 o direito desses aposentados receberem b\u00f4nus de produtividade – de acordo com o aumento da arrecada\u00e7\u00e3o de impostos. No momento em que Seu Jorge recebeu o v\u00eddeo, este b\u00f4nus era inclusive negociado pela associa\u00e7\u00e3o de Nelson com o governo no meio de uma medida provis\u00f3ria. Insatisfeita com a proposta, a associa\u00e7\u00e3o de Nelson contratou at\u00e9 um ex-presidente do Supremo Tribunal Federal para levar o pleito \u00e0 Justi\u00e7a. A associa\u00e7\u00e3o tamb\u00e9m mobilizava seus recursos em 2017 para a campanha mostrando que n\u00e3o existia d\u00e9ficit na Previd\u00eancia ou na Seguridade Social.<\/p>\n Nelson tinha um ponto de vista claro sobre como devem ser apresentadas as contas da Seguridade, mas Seu Jorge n\u00e3o tinha a mesma clareza. No v\u00eddeo que produziu, Nelson omitiu que a contabilidade de sua associa\u00e7\u00e3o exclui as despesas com as aposentadorias e pens\u00f5es dos pr\u00f3prios servidores p\u00fablicos, e tamb\u00e9m n\u00e3o achou necess\u00e1rio mostrar que ainda assim havia um d\u00e9ficit j\u00e1 para o ano de 2016.<\/p>\n Seu Jorge n\u00e3o dava bola para o papo de crise na Previd\u00eancia. Al\u00e9m do v\u00eddeo, ficou tranquilo ao ler no jornal que uma importante entidade da sociedade civil alertava que a reforma do governo era baseada em premissas equivocadas. N\u00e3o entendia do assunto, mas novamente quem estava afirmando era doutor.<\/p>\n Seu Jorge tamb\u00e9m n\u00e3o percebia que cabia a esta outra entidade defender advogados como Miguel. O escrit\u00f3rio de Miguel lucra ao conseguir benef\u00edcios do INSS para seus clientes, retendo em honor\u00e1rios uma parte do pagamento de aposentadorias rurais, aposentadorias especiais e aposentadorias por invalidez. Preocupado n\u00e3o s\u00f3 com seus clientes, mas tamb\u00e9m com seu neg\u00f3cio, Miguel, como outros advogados, acionou a entidade a que pertence e ela se manifestou contra a reforma da Previd\u00eancia, pelos seus abusos sociais.<\/p>\n Em uma tarde daquele 2017, Seu Jorge perdeu tempo no tr\u00e2nsito com uma passeata. Por\u00e9m, ficou resignado e a apoiou, porque se solidarizou com a causa dos trabalhadores do campo prejudicados pela reforma da Previd\u00eancia. O protesto foi organizado por Jos\u00e9. Como Miguel, Jos\u00e9 tamb\u00e9m ficou preocupado com as mudan\u00e7as na aposentadoria rural. Jos\u00e9 \u00e9 presidente de um sindicato rural cuja maior parte do filiados s\u00f3 se registrou para conseguir uma declara\u00e7\u00e3o atestando anos de trabalho no campo. Essa declara\u00e7\u00e3o \u00e9 essencial para que recebam a aposentadoria rural.<\/p>\n Ap\u00f3s a filia\u00e7\u00e3o para receber a aposentadoria, parte desses filiados ter\u00e1 mensalmente, e para sempre, descontos nos benef\u00edcios para financiar a atividade sindical, conforme autorizaram.\u00a0 Jos\u00e9 n\u00e3o \u00e9 o \u00fanico presidente de sindicato rural preocupado com a reforma: ao todo, s\u00e3o cerca de 4 mil. Apesar da urbaniza\u00e7\u00e3o das d\u00e9cadas anteriores, existiam no Brasil em 2017 mais sindicatos de trabalhadores do campo do que sindicatos urbanos filiados \u00e0 CUT e \u00e0 For\u00e7a Sindical, juntas. Caso fosse aprovada a reforma do governo, a comprova\u00e7\u00e3o de trabalho rural para aposentadoria seria feita com contribui\u00e7\u00f5es ao INSS ao longo da vida do trabalhador, e n\u00e3o apenas no momento de pedir da aposentadoria com interm\u00e9dio de um sindicato como o de Jos\u00e9 ou de um advogado como Miguel.<\/p>\n ***<\/p>\n Prosperando a mobiliza\u00e7\u00e3o de entidades com interesses como os de Miguel e Jos\u00e9, sob a desinforma\u00e7\u00e3o disseminada por entidades como a de Nelson, nenhuma reforma da Previd\u00eancia ser\u00e1 feita. Apesar das aposentadorias serem extremamente protegidas em nosso sistema jur\u00eddico, o absurdo cen\u00e1rio de relativiza\u00e7\u00e3o do direito adquirido e corte de benef\u00edcios pode aparecer no horizonte. Ele ocorrer\u00e1 depois da redu\u00e7\u00e3o em despesas n\u00e3o obrigat\u00f3rias (mas n\u00e3o desimportantes) e do aumento de impostos, bem como do aumento do endividamento p\u00fablico que reprimir\u00e1 a economia com juros altos. A outra sa\u00edda \u00e9 a hiperinfla\u00e7\u00e3o.<\/p>\n Tem sido assim no Rio de Janeiro e foi assim em pa\u00edses europeus, como a Gr\u00e9cia de Seu Giorgos, o outro Seu Jorge. O duro corte de aposentadorias nesses pa\u00edses foi de tal forma imperativo que terminou validado pela Corte Europeia de Direitos Humanos<\/em>. O tribunal foi provocado pela servidora p\u00fablica portuguesa Maria Alfredina, que n\u00e3o aceitava o desconto da \u2018contribui\u00e7\u00e3o extraordin\u00e1ria de solidariedade\u2019, que \u00e9 como se diz corte de aposentadorias em portugu\u00eas de Portugal.<\/p>\n O c\u00f3rtex pr\u00e9-frontal ventromedial \u00e9 uma regi\u00e3o de nossos c\u00e9rebros que fica ativada quanto pensamos em n\u00f3s pr\u00f3prios. Estudos mostram que quando pensamos em n\u00f3s no futuro, por\u00e9m, a regi\u00e3o n\u00e3o se ativa: nossa incapacidade de pensar em nosso amanh\u00e3 seria tal que \u00e9 como se o c\u00e9rebro estivesse pensando em outra pessoa. Enquanto pa\u00eds, talvez enfrentemos dificuldade semelhante. Encaramos uma reforma da Previd\u00eancia como desnecess\u00e1ria e sequer questionamos a atividade dos grupos de interesse que atuam no debate. Fazer reforma da Previd\u00eancia \u00e9 ruim. A quest\u00e3o que devemos nos indagar \u00e9 se n\u00e3o faz\u00ea-la \u00e9 ainda pior, dando a Seu Jorge o destino de Seu Giorgos. Vamos deix\u00e1-lo chorando na cal\u00e7ada?<\/p>\n <\/p>\n Download<\/strong><\/p>\n