{"id":860,"date":"2011-11-25T11:29:50","date_gmt":"2011-11-25T14:29:50","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=860"},"modified":"2011-11-25T11:29:50","modified_gmt":"2011-11-25T14:29:50","slug":"a-desigualdade-de-genero-no-brasil-e-maior-do-que-a-do-burundi","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=860","title":{"rendered":"A desigualdade de g\u00eanero no Brasil \u00e9 maior do que a do Burundi?"},"content":{"rendered":"

O Brasil ficou em 82\u00ba lugar no \u00cdndice Global de Desigualdade de G\u00eanero (Global Gender Gap Index \u2013 GGGI), de 2011, do F\u00f3rum Econ\u00f4mico Mundial. O \u00edndice varia de 0 (total desigualdade) a um (total igualdade). Liderando o ranking<\/em>, com a menor desigualdade de g\u00eanero, est\u00e1 a Isl\u00e2ndia com \u00edndice de 0,8530. O Brasil ficou com \u00edndice de 0,6679.<\/p>\n

Na frente do Brasil ficaram, por exemplo, Lesoto em 9\u00ba lugar, com \u00edndice de 0,7666; \u00c1frica do Sul em 14\u00ba lugar (0,7478); Burundi em 24\u00ba lugar (0,7270); Mo\u00e7ambique em 26\u00ba lugar (0,7251) e Uganda em 29\u00ba lugar (0,7220). Estes pa\u00edses citados tamb\u00e9m ficaram na frente da Fran\u00e7a, que apareceu em 48\u00ba lugar, com \u00edndice de 0,7018 no GGGI 2011.<\/p>\n

Mas ser\u00e1 que esta posi\u00e7\u00e3o brasileira no ranking global do GGGI reflete a real situa\u00e7\u00e3o de g\u00eanero no pa\u00eds? Por exemplo, a desigualdade de g\u00eanero no Brasil (82\u00ba lugar) \u00e9 realmente muito pior do que a situa\u00e7\u00e3o existente no Burundi (24\u00ba lugar)?<\/p>\n

Para qualquer pessoa minimamente informada, parece evidente que a situa\u00e7\u00e3o da mulher n\u00e3o \u00e9 pior no Brasil e na Fran\u00e7a em rela\u00e7\u00e3o a pa\u00edses como Lesoto, Burandi e Uganda. O problema, na minha maneira de ver, reside no objetivo e na metodologia utilizada no Global Gender Gap Index (GGGI), bem como na forma de utiliza\u00e7\u00e3o dos dados dos diferentes pa\u00edses.<\/p>\n

No relat\u00f3rio do Global Gender Gap Index est\u00e1 explicitado o seguinte: \u201cO \u00cdndice \u00e9 projetado para medir hiatos de g\u00eanero no acesso a recursos e oportunidades em cada pa\u00eds ao inv\u00e9s de n\u00edveis reais dos recursos dispon\u00edveis e oportunidades. Fazemos isso para tornar o Global Gender Gap Index independente dos n\u00edveis de desenvolvimento dos pa\u00edses<\/em>\u201d (p.3). Isto quer dizer que o \u00edndice est\u00e1 buscando medir a desigualdade (hiato) e n\u00e3o o n\u00edvel de desenvolvimento ou a situa\u00e7\u00e3o dos direitos econ\u00f4micos, sociais e pol\u00edticos da mulher.<\/p>\n

Em outras palavras, n\u00e3o \u00e9 objetivo do \u00edndice responder \u00e0 pergunta \u201conde as mulheres t\u00eam melhor padr\u00e3o de vida?\u201d mas, sim, \u201conde o padr\u00e3o de vida das mulheres \u00e9 mais semelhante ao padr\u00e3o de vida dos homens?\u201d.<\/p>\n

O problema do objetivo do \u00edndice \u00e9 que um pa\u00eds com enorme exclus\u00e3o social para os dois sexos e totalmente carente em termos econ\u00f4micos, politicos e de qualidade de vida pode aparecer com bom indicador de g\u00eanero, enquanto\u00a0 um pa\u00eds com maior inclus\u00e3o social\u00a0 e com direitos humanos b\u00e1sicos atendidos para toda a popula\u00e7\u00e3o pode aparecer em posi\u00e7\u00e3o ruim no ranking<\/em> se houver diferen\u00e7as relativas entre os sexos.<\/p>\n

Adicionalmente, mesmo nos limitando ao objetivo do \u00edndice, de captar a diferen\u00e7a entre g\u00eaneros, independentemente do grau de desenvolvimento do pa\u00eds, encontramos falhas metodol\u00f3gicas que distorcem a real discrep\u00e2ncia entre homens e mulhers.<\/p>\n

Vejamos o caso do Brasil e de Burundi.<\/p>\n

De acordo com dados da Divis\u00e3o de Popula\u00e7\u00e3o da ONU, a esperan\u00e7a de vida ao nascer no Brasil, no quinqu\u00eanio 2005-10, foi de 72,2 anos (75,9 anos para as mulheres e 68,7 para os homens). Os dados de Burundi, para o mesmo per\u00edodo, s\u00e3o 48,8 anos de esperan\u00e7a de vida ao nascer (50,1 anos para as mulheres e de 47,5 para os homens). Portanto, as condi\u00e7\u00f5es de sa\u00fade da mulher, em rela\u00e7\u00e3o aos homens, s\u00e3o muito melhores no Brasil do que em Burundi. Aqui, as mulheres t\u00eam expectativa de vida 7,2 anos maior que os homens, enquanto em Burundi a diferen\u00e7a \u00e9 de apenas 2,6 anos a favor das mulheres.<\/p>\n

Por\u00e9m, o Global Gender Gap Index n\u00e3o leva em considera\u00e7\u00e3o as desigualdades reversas. Ou seja, quando as mulheres apresentam melhores indicadores do que os homens, o GGGI s\u00f3 considera a exist\u00eancia de uma igualdade, atribuindo \u00edndice 1, como se houvesse paridade de g\u00eanero e n\u00e3o vantagem pelo lado feminino (assim, tanto o Brasil quanto o Burundi ficariam com \u00edndice 1 no quesito diferen\u00e7a de expectativas de vida, ainda que a vantagem das mulheres no Brasil seja muito maior). Evidentemente esta maneira de abordar as desigualdades de g\u00eanero n\u00e3o \u00e9 capaz de retratar a realidade das rela\u00e7\u00f5es entre homens e mulheres e reduz o indicador dos pa\u00edses em que as mulheres avan\u00e7aram com maior rapidez na obten\u00e7\u00e3o de direitos e condi\u00e7\u00f5es de vida.<\/p>\n

O Brasil cai bastante nesta metodologia do GGGI, pois apesar de as mulheres brasileiras viverem sete anos a mais que os homens, mais do dobro da diferen\u00e7a observada em Burundi, o \u00edndice relativo \u00e0 sa\u00fade brasileiro \u00e9 de 0,9796 contra 0,9685 do Burundi (apenas 1% a mais). Adicione-se o fato de as brasileiras terem uma esperan\u00e7a de vida de 25,8 anos superior \u00e0s mulheres do Burundi (50% a mais).<\/p>\n

H\u00e1 um problema semelhante no indicador de educa\u00e7\u00e3o, que d\u00e1 peso muito grande ao analfabetismo. Isso prejudica o Brasil porque, apesar de as mulheres estarem \u00e0 frente dos homens em todos os n\u00edveis de educa\u00e7\u00e3o, inclusive no n\u00edvel de doutorado, quando se consideram as mulheres mais idosas, de coortes mais velhas, o percentual de mulheres analfabetas \u00e9 maior do que o percentual de homens. Isso reflete as desigualdades educacionias de g\u00eanero do passado. Contudo, houve revers\u00e3o do hiato de g\u00eanero na educa\u00e7\u00e3o brasileira nas \u00faltimas d\u00e9cadas no Brasil. E este hiato est\u00e1 aumentando em favor das mulheres. Portanto, o GGGI deveria apresentar um indicador de g\u00eanero para a educa\u00e7\u00e3o no Brasil acima de 1 (um), ou no m\u00ednimo 1 (um) e n\u00e3o de 0,9904, como faz.<\/p>\n

Novamente, se nossa preocupa\u00e7\u00e3o \u00e9 com a qualidade de vida, \u00e9 importante lembrar que, segundo dados da UNDP, a popula\u00e7\u00e3o adulta do Brasil tinha, em 2010, 7,2 anos m\u00e9dios de estudo, contra apenas 2,7 anos de estudo em Burundi (o Brasil com 167% a mais do que o Burundi). Por\u00e9m, o GGGI, que n\u00e3o capta essas diferen\u00e7as de n\u00edvel, apresenta um \u00edndice relativo \u00e0 educa\u00e7\u00e3o para o Brasil apenas 16% mais alto que os 0,8565 atribu\u00eddos ao Burundi.<\/p>\n

No quesito participa\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica e renda os problemas n\u00e3o s\u00e3o menores. Segundo dados da UNDP, a renda per capita de Burundi em 2010 foi de meros 430 d\u00f3lares (medidos em poder de paridade de compra \u2013 ppp) e de 10.847 d\u00f3lares no Brasil (tamb\u00e9m em ppp). Portanto, a renda per capita brasileira \u00e9 27 vezes maior do que a da popula\u00e7\u00e3o do Burundi. Contudo, o GGGI apresenta um \u00edndice de 0,7270 para Burundi e de 0,6679 para o Brasil porque, apesar das p\u00e9ssimas condi\u00e7\u00f5es de renda no Burundi,\u00a0 com ambos os sexos sofrendo baixo n\u00edvel de renda e pequeno acesso aos bens e servi\u00e7os necess\u00e1rios para uma boa qualidade de vida, a desigualdade de g\u00eanero \u00e9 pequena. J\u00e1 no Brasil, embora o padr\u00e3o de renda e consumo das mulheres brasileiras seja muito superior ao das mulheres de Burundi, a maior desigualdade em rela\u00e7\u00e3o aos homens brasileiros faz o Brasil ficar atr\u00e1s do Burundi neste \u00edtem. A maior igualdade de g\u00eanero no Burundi, neste caso, n\u00e3o tem qualquer correla\u00e7\u00e3o com obten\u00e7\u00e3o de direitos das mulheres e de fortalecimento da autonomia feminina.<\/p>\n

No quesito participa\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica os problemas do GGGI tamb\u00e9m s\u00e3o enormes, pois n\u00e3o consegue mensurar adequadamente sequer a discrep\u00e2ncia de g\u00eanero que pretendia captar. O Burundi apresenta um \u00edndice de 0,8355 (a quarta melhor igualdade de g\u00eanero no mundo), e o Brasil apresenta um \u00edndice de 0,6490. Por\u00e9m, as mulheres brasileiras entram mais tarde no mercado de trabalho porque ficam mais tempo na escola e possuem escolaridade superior \u00e0 dos homens brasileiros e saem mais cedo porque aposentam, em m\u00e9dia, cinco anos antes dos trabalhadores do sexo masculino.\u00a0 Evidentemente, existe no Brasil, como tamb\u00e9m no Burundi, uma divis\u00e3o de trabalho que atribui \u00e0s mulheres as tarefas da reprodu\u00e7\u00e3o social. No Brasil isto significa que uma parte das mulheres n\u00e3o consegue conciliar o trabalho no mercado com o trabalho dom\u00e9stico e outra parte acumula uma dupla jornada de trabalho. Por\u00e9m no Burundi, a dupla jornada de trabalho \u00e9 um fen\u00f4meno mais corrente e agravado pela sobrecarga das altas taxas de fecundidade e da alta mortalidade infantil.<\/p>\n

Al\u00e9m disto, a situa\u00e7\u00e3o da previd\u00eancia social \u00e9 completamente diferente nos dois pa\u00edses. No Brasil as mulheres s\u00e3o maioria dos benefici\u00e1rios da previd\u00eancia social, embora n\u00e3o sejam maioria da popula\u00e7\u00e3o economicamente ativa. Portanto, o sistema de prote\u00e7\u00e3o social das mulheres, no Brasil, mesmo com todos os defeitos, \u00e9 muito melhor do que em Burundi. O fato do Global Gender Gap Index n\u00e3o levar em considera\u00e7\u00e3o a cobertura previdenci\u00e1ria \u00e9 um problema metodol\u00f3gico s\u00e9rio e que distorce a an\u00e1lise da desigualdade de g\u00eanero entre os pa\u00edses.<\/p>\n

No quesito participa\u00e7\u00e3o pol\u00edtica o GGGI apresenta um \u00edndice de 0,2442 para o Burundi e de apenas 0,0526 para o Brasil. De fato, a participa\u00e7\u00e3o das mulheres na C\u00e2mera dos Deputados \u00e9 de 9% no Brasil e de 32% no Burundi. Isto explica o baixo \u00edndice brasileiro e mostra o atraso que o Brasil possui no quesito de participa\u00e7\u00e3o parlamentar. Por\u00e9m, nas \u00faltimas elei\u00e7\u00f5es o Brasil elegeu uma mulher para a Presid\u00eancia da Rep\u00fablica, enquanto o Burundi tem um homem no posto m\u00e1ximo do Executivo. Portanto, se o Brasil est\u00e1 em pior situa\u00e7\u00e3o de g\u00eanero na participa\u00e7\u00e3o no Poder Legislativo, o mesmo n\u00e3o acontece no Poder Executivo (que tamb\u00e9m contam com v\u00e1rias ministras). O GGGI d\u00e1 um peso importante para o n\u00famero de Chefes de Estado nos \u00faltimos 50 anos, por\u00e9m isso n\u00e3o \u00e9 suficiente para captar movimentos recentes de igualdade de g\u00eanero na pol\u00edtica. Assim, apesar da presen\u00e7a de uma Presidenta mulher no Executivo brasileiro, o \u00edndicador de participa\u00e7\u00e3o pol\u00edtica do Brasil fica em situa\u00e7\u00e3o muito inferior ao indicador do Burundi.<\/p>\n

Os exemplos acima mostram que, em geral, as mulheres brasileiras possuem muito mais direitos de cidadania do que as mulheres (e tamb\u00e9m os homens) do Burundi. Ou seja, as brasileiras vivem melhor que as mulheres do Burundi. Contudo, tendo em vista o objetivo do \u00edndice, a falta de direitos de uma renda decente e de um n\u00edvel m\u00ednimo de matricula educacional no Burundi, n\u00e3o foi obst\u00e1culo para que o pa\u00eds apresentasse indicadores de g\u00eanero de melhor n\u00edvel. Portanto, quando o GGGI diz que o Burundi est\u00e1 bem posicionado, em 24\u00ba lugar no ranking de desigualdade de g\u00eanero, pode parecer que a situa\u00e7\u00e3o de suas mulheres \u00e9 de maior autonomia. Mas os dados mostram que tanto homens quanto mulheres no Burundi carecem dos direitos humanos elementares.<\/p>\n

J\u00e1 no Brasil, pode parecer que a posi\u00e7\u00e3o 82\u00ba do ranking do GGGI signifique que as mulheres brasileiras possuem menor autonomia. Contudo, o sexo feminino no Brasil tem superado os homens na sa\u00fade, na educa\u00e7\u00e3o e no acesso \u00e0 previd\u00eancia. Tem avan\u00e7ado no mercado de trabalho e j\u00e1 s\u00e3o maioria da popula\u00e7\u00e3o economicamente ativa com mais de 11 anos de estudo.<\/p>\n

Mesmo que ainda falte muito para se avan\u00e7ar na constru\u00e7\u00e3o de uma sociedade com maior equidade de g\u00eanero, a situa\u00e7\u00e3o das mulheres brasileiras \u00e9 muito melhor do que a situa\u00e7\u00e3o das mulheres do Burundi, mas isto n\u00e3o est\u00e1 refletido nos indicadores do Global Gender Gap Index. Pa\u00edses como a Isl\u00e2ndia (primeira colocada no GGGI, 2011), que possuem baixa desigualdade de g\u00eanero em uma situa\u00e7\u00e3o social de respeito aos direitos humanos e ao processo de inclus\u00e3o social para ambos os sexos, podem ter indicador pr\u00f3ximo do de Burundi, onde a menor desigualdade de g\u00eanero ocorre em uma situa\u00e7\u00e3o de total exclus\u00e3o social e de aus\u00eancia dos direitos humanos b\u00e1sicos e universais. S\u00e3o dois contextos completamente diferentes. Mas o \u00cdndice Global de Desigualdade de G\u00eanero, do F\u00f3rum Econ\u00f4mico Mundial, apresenta com se fosse poss\u00edvel separar a desigualdade de g\u00eanero das condi\u00e7\u00f5es gerais da cidadania social.<\/p>\n

Desta forma, deve-se ter cuidado ao utilizar este \u00edndice de desigualdade de g\u00eanero do F\u00f3rum Econ\u00f4mico Social como indicador da situa\u00e7\u00e3o das mulheres, pois o que a metodologia do GGGI apresenta em seu indicador sint\u00e9tico \u00e9 uma compara\u00e7\u00e3o entre alhos e bugalhos.<\/p>\n

Downloads:<\/em><\/strong><\/p>\n