{"id":3424,"date":"2021-03-15T11:22:58","date_gmt":"2021-03-15T14:22:58","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=3424"},"modified":"2021-03-15T11:47:11","modified_gmt":"2021-03-15T14:47:11","slug":"a-nova-lei-de-licitacoes-e-mais-eficiente-economicamente","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=3424","title":{"rendered":"A nova lei de licita\u00e7\u00f5es \u00e9 mais eficiente economicamente?"},"content":{"rendered":"

A nova lei de licita\u00e7\u00f5es \u00e9 mais eficiente economicamente?<\/strong><\/h1>\n

Por Eduardo Pedral Sampaio Fiuza[1]<\/strong><\/a><\/em><\/p>\n

\u00a0<\/strong>Introdu\u00e7\u00e3o<\/strong><\/p>\n

Em vota\u00e7\u00e3o rel\u00e2mpago, o Senado aprovou o PL 4253\/2020, o qual nada mais \u00e9 que o Substitutivo da C\u00e2mara dos Deputados ao Projeto de Lei destinado a substituir, no decurso de dois anos, a nada saudosa Lei 8.666 — que vem regendo as licita\u00e7\u00f5es e contrata\u00e7\u00f5es p\u00fablicas brasileiras desde 1993 –, bem como os seus \u201cpuxadinhos\u201d, que v\u00eam regendo respectivamente os preg\u00f5es (Lei 10.520\/2002) e o Regime Diferenciado de Contrata\u00e7\u00f5es P\u00fablicas -RDC (Lei 12.462\/2011). Antes do fechamento deste artigo, foi a plen\u00e1rio um parecer da Mesa Diretora para ajustes de reda\u00e7\u00e3o previamente ao envio \u00e0 Presid\u00eancia da Rep\u00fablica para san\u00e7\u00e3o. \u00c9 desta vers\u00e3o final do Senado que agora trato, tendo a consci\u00eancia de que outras altera\u00e7\u00f5es podem vir na forma de vetos da Presid\u00eancia da Rep\u00fablica, os quais, por sua vez, podem ser em parte reexaminados e eventualmente revertidos pelo Congresso.<\/p>\n

O anticl\u00edmax na vota\u00e7\u00e3o morna pode ter sido capaz de obnubilar a cobertura jornal\u00edstica do desfecho de t\u00e3o longo processo de tramita\u00e7\u00e3o, que come\u00e7ou em 2007[2]<\/a> e passou duas vezes por cada uma das duas Casas Legislativas. Mas as redes sociais pululam de convites para lives <\/em>com os maiores juristas especializados em licita\u00e7\u00f5es, oferecendo an\u00e1lises com maior ou menor grau de profundidade sobre as mudan\u00e7as implementadas.<\/p>\n

O debate ocorrido nas duas Casas Legislativas foi muito frut\u00edfero e produziu grandes avan\u00e7os na legisla\u00e7\u00e3o de contrata\u00e7\u00f5es p\u00fablicas brasileira. A despeito disso, a pe\u00e7a legislativa aprovada ainda ficou aqu\u00e9m do necess\u00e1rio para ser considerada uma legisla\u00e7\u00e3o verdadeiramente moderna e trazer maior agilidade, produtividade e competitividade \u00e0s licita\u00e7\u00f5es e contrata\u00e7\u00f5es brasileiras.<\/p>\n

De fato, a despeito dos avan\u00e7os alcan\u00e7ados at\u00e9 agora, s\u00e3o preocupantes alguns artigos que, ou cristalizam em lei regulamenta\u00e7\u00f5es que at\u00e9 hoje vinham sendo aperfei\u00e7oadas com maior rapidez por decretos ou outras normas infralegais, ou simplesmente andam na dire\u00e7\u00e3o contr\u00e1ria \u00e0 liberaliza\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica que o Pa\u00eds vem buscando empreender nos \u00faltimos anos.<\/p>\n

Tendo participado ativamente \u2013 ainda que majoritariamente \u00e0 dist\u00e2ncia, mas o suficiente para ver diversas sugest\u00f5es de texto acolhidas pelas relatorias \u2013 das discuss\u00f5es sobre os impactos econ\u00f4micos previstos em cada altera\u00e7\u00e3o trazida pela nova Lei, fui convidado por este site a consolidar aqui os pontos que resumem a minha vis\u00e3o sobre o conjunto da nova pe\u00e7a legislativa, utilizando do ferramental de an\u00e1lise microecon\u00f4mico, que, por vezes, destoa das interpreta\u00e7\u00f5es jur\u00eddicas. Sobre este mister ora me debru\u00e7o, aproveitando-me principalmente das quatro notas t\u00e9cnicas, dois Textos para Discuss\u00e3o, tr\u00eas cap\u00edtulos de livros e um artigo de peri\u00f3dico que escrevi, de 2009 a 2020, em sua maioria na companhia de ilustres coautores.<\/p>\n

Maximalismo<\/strong><\/p>\n

Para come\u00e7ar, fa\u00e7o coro a v\u00e1rios renomados juristas no refr\u00e3o de \u201cMenos Lei e Mais Regula\u00e7\u00e3o Infralegal, por favor\u201d. Em todas as minhas contribui\u00e7\u00f5es, defendi uma lei enxuta e a remiss\u00e3o de numerosos detalhes a regulamenta\u00e7\u00f5es posteriores.<\/p>\n

A nova lei tem 179 artigos em seu n\u00facleo, mais outros 14 artigos contendo disposi\u00e7\u00f5es transit\u00f3rias. Esse excesso de detalhes consolida uma tend\u00eancia maximalista da legisla\u00e7\u00e3o do tema. S\u00f3 para ficar nos \u00faltimos dois diplomas legais (os \u00fanicos do s\u00e9culo XX exclusivamente versando sobre licita\u00e7\u00f5es), o Decreto-Lei 2300\/1986 tinha 90 artigos, e a Lei 8666\/1993 cont\u00e9m 126. Al\u00e9m disso, com esse incha\u00e7o, a nova Lei esvazia ainda mais as compet\u00eancias regulat\u00f3rias dos entes subnacionais para essa mat\u00e9ria.<\/p>\n

Pa\u00edses vizinhos ao Brasil, com ordenamento jur\u00eddico baseado no Direito Romano, e que passaram nos \u00faltimos dez anos por revis\u00f5es de suas legisla\u00e7\u00f5es de compras p\u00fablicas em conformidade com recomenda\u00e7\u00f5es da OCDE (Organiza\u00e7\u00e3o para a Coopera\u00e7\u00e3o e Desenvolvimento Econ\u00f4mico), t\u00eam legisla\u00e7\u00f5es bem mais enxutas, deixando para seus regulamentos (exarados pelo Poder Executivo) o maior detalhamento de procedimentos \u2013 ver Tabela 1. Na dire\u00e7\u00e3o oposta, o Brasil incorporou ao texto legal v\u00e1rios detalhes que antes eram regulamentados por diferentes decretos. \u00c9 o caso do Sistema de Registro de Pre\u00e7os e do preg\u00e3o eletr\u00f4nico. Outros detalhamentos — que sempre me esforcei sem sucesso para convencer os legisladores a deixar de fora da lei — dizem respeito aos modos de disputa \u2013 embora tenha de reconhecer que houve grandes avan\u00e7os no leque de modalidades oferecido pela lei.<\/p>\n

TABELA 1<\/strong><\/p>\n

GRAU DE DETALHAMENTO DAS LEIS E REGULAMENTOS EM PA\u00cdSES LATINOAMERICANOS DA OCDE<\/strong><\/p>\n\n\n\n\n\n\n
Pa\u00eds<\/td>\nAno da \u00faltima lei ou altera\u00e7\u00e3o<\/td>\nArtigos permanentes<\/td>\nArtigos transit\u00f3rios<\/td>\nRegulamento<\/td>\n<\/tr>\n
Chile<\/td>\n2018<\/td>\n39<\/td>\n11<\/td>\n29+1<\/td>\n<\/tr>\n
Col\u00f4mbia (duas leis)<\/td>\n2020<\/td>\n80+33<\/td>\n1<\/td>\n162<\/td>\n<\/tr>\n
M\u00e9xico<\/td>\n2020<\/td>\n86<\/td>\n5<\/td>\n137<\/td>\n<\/tr>\n<\/tbody>\n<\/table>\n

Fonte: elabora\u00e7\u00e3o pr\u00f3pria, a partir de buscas na Word Wide Web.<\/p>\n

De fato, o texto aprovado, ao consolidar tr\u00eas leis anteriores (a Lei 8666\/1993, a Lei 10.520\/2005 e a Lei 12.462\/2011), trouxe ainda elementos do Decreto 7.892\/2013, com conte\u00fado regulamentar sobre procedimentos. Essa riqueza de detalhes torna-se, tamb\u00e9m, uma fraqueza, na medida em que cristaliza regras que n\u00e3o s\u00e3o baseadas em evid\u00eancias e s\u00e3o mais dif\u00edceis de reverter, requerendo a aprova\u00e7\u00e3o de novos projetos de lei ou medidas provis\u00f3rias. Os trabalhos que j\u00e1 publiquei, em sua maior parte com a coautoria de colegas, sempre defenderam que se deveria deixar o m\u00e1ximo de regulamenta\u00e7\u00e3o para pe\u00e7as infralegais, e mais abaixo saliento alguns trechos que bem poderiam ser removidos da lei para facilitar essa regulamenta\u00e7\u00e3o dentro do que h\u00e1 de mais moderno em contrata\u00e7\u00f5es p\u00fablicas no mundo.<\/p>\n

Inova\u00e7\u00f5es<\/strong><\/p>\n

Vamos em seguida destacar as principais inova\u00e7\u00f5es do PL 4253 e, a partir do que j\u00e1 foi propugnado e discutido em obras anteriores, situar o leitor sobre seus impactos econ\u00f4micos esperados.<\/p>\n

Como pano de fundo, tentemos ver a floresta, em vez das \u00e1rvores. Fortini e Amorim[3]<\/sup><\/a> fazem uma descri\u00e7\u00e3o mais \u201cpanor\u00e2mica\u201d das mudan\u00e7as efetuadas. Eles distinguem cinco grandes eixos tem\u00e1ticos em que a nova lei se destaca. O primeiro \u00e9 a promo\u00e7\u00e3o da governan\u00e7a das contrata\u00e7\u00f5es<\/strong>. O segundo eixo \u00e9 o da profissionaliza\u00e7\u00e3o dos recursos humanos<\/strong>. O terceiro \u00e9 o da impuls\u00e3o ao planejamento das contrata\u00e7\u00f5es<\/strong>. O quarto \u00e9 o da absor\u00e7\u00e3o das tecnologias da<\/strong> informa\u00e7\u00e3o e comunica\u00e7\u00e3o<\/strong>. O quinto \u00e9 o do fortalecimento da preven\u00e7\u00e3o a fraudes.<\/strong><\/p>\n

Al\u00e9m dos cinco eixos apontados acima, existem ainda outras dimens\u00f5es de grande import\u00e2ncia: o processo composto de sele\u00e7\u00e3o e adjudica\u00e7\u00e3o<\/strong> e o grau de coordena\u00e7\u00e3o em compras<\/strong>.<\/p>\n

Vejamos abaixo cada uma dessas dimens\u00f5es.<\/p>\n

Governan\u00e7a<\/strong><\/p>\n

No que diz respeito \u00e0 governan\u00e7a<\/strong>, a prega\u00e7\u00e3o econ\u00f4mica em favor do uso de seguros-garantias teve uma vit\u00f3ria parcial, na medida em que o art. 99 do PL permite que o edital exija a presta\u00e7\u00e3o da garantia na modalidade seguro-garantia em obras, o que \u00e9 um avan\u00e7o significativo. Mas este poder deveria ser prerrogativa da Administra\u00e7\u00e3o, fosse qual fosse o objeto. Ainda perdura a prerrogativa do contratado em escolher o tipo de garantia para a maioria das outras obras. Foi incorporada \u00e0 Lei principal uma importante inova\u00e7\u00e3o: A matriz de risco (art. 22) foi trazida da Lei do RDC \u2013 ali\u00e1s, pela Lei 13.190\/2015, que a introduziu no texto-base do RDC, art.9, \u00a7 5\u00ba — e foi mais detalhada na nova Lei. Nela s\u00e3o atribu\u00eddos \u00e0s partes do contrato os riscos que cada uma tem maior poder de mitigar, como sabiamente ensina a Teoria Econ\u00f4mica de Contratos. O excessivo detalhamento, no entanto, \u00e9 mais um que poderia ter sido deixado para regulamento.<\/p>\n

\u00c9 claro que a melhor ou pior governan\u00e7a contratual afeta o processo seletivo e por ele \u00e9 retroalimentada. Tome-se o exemplo dos lances chamados inexequ\u00edveis. O art. 59 prev\u00ea que \u201cser\u00e3o desclassificadas as propostas que (…) III \u2013 apresentarem pre\u00e7os inexequ\u00edveis ou permanecerem acima do or\u00e7amento estimado para a contrata\u00e7\u00e3o<\/em>\u201d; e que \u201c\u00a7 4\u00ba No caso de obras e servi\u00e7os de engenharia, ser\u00e3o consideradas inexequ\u00edveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor or\u00e7ado pela Administra\u00e7\u00e3o<\/em>\u201d. Ao mesmo tempo, por\u00e9m, prev\u00ea que \u201c\u00a7 5\u00ba Nas contrata\u00e7\u00f5es de obras e servi\u00e7os de engenharia, ser\u00e1 exigida garantia adicional do licitante vencedor cuja proposta for inferior a 85% (oitenta e cinco por cento) do valor or\u00e7ado pela Administra\u00e7\u00e3o, equivalente \u00e0 diferen\u00e7a entre esse \u00faltimo e o valor da proposta, sem preju\u00edzo das demais garantias exig\u00edveis de acordo com esta Lei<\/em>.\u201d<\/p>\n

O \u00a7 5\u00ba j\u00e1 deixa claro que pode ser sanada a \u201cinexequibilidade da proposta\u201d, que, como est\u00e1 definida no \u00a7 4\u00ba, \u00e9 uma caracteriza\u00e7\u00e3o meramente baseada em estat\u00edstica, sem nenhum m\u00e9rito de revis\u00e3o da t\u00e9cnica proposta pelo licitante. Portanto \u00e9 um contrassenso desclassificar um licitante pelo \u00a7 4\u00ba se ele pode se defender pelo \u00a7 5\u00ba — que permite a defesa para pre\u00e7os abaixo de 85% do valor de refer\u00eancia, e isso inclui todos os casos particulares dos pre\u00e7os abaixo de 75%. Essa lament\u00e1vel incongru\u00eancia jur\u00eddica s\u00f3 pode dar margem a questionamentos judiciais, aumentando a judicializa\u00e7\u00e3o das licita\u00e7\u00f5es, que \u00e9 justamente uma das coisas que a nova Lei pretende evitar. Foi absolutamente infeliz a manuten\u00e7\u00e3o de dois par\u00e1grafos t\u00e3o conflitantes quanto esses dois.<\/p>\n

Ora, o \u00a7 5\u00ba \u00e9 um avan\u00e7o para a legisla\u00e7\u00e3o. Como j\u00e1 insisti antes (Fiuza e Medeiros, 2014<\/a>; Fiuza, Pompermayer e Rauen, 2019<\/a>), o mais importante \u00e9 fornecer as garantias, em particular o seguro-garantia com step in<\/em> das seguradoras. Em particular, na primeira dessas notas t\u00e9cnicas (pp. 70-71), dissemos o seguinte:\u00a0<\/em><\/p>\n

\u201cDe fato tende a ser complexa a distin\u00e7\u00e3o entre uma proposta boa para a administra\u00e7\u00e3o p\u00fablica, na qual o desconto em rela\u00e7\u00e3o ao pre\u00e7o de refer\u00eancia foi significativo, e uma proposta cujo pre\u00e7o \u00e9 inexequ\u00edvel ou levar\u00e1 a descumprimento contratual.<\/em>\u00a0<\/em><\/p>\n

Criar crit\u00e9rios de inabilita\u00e7\u00e3o mais r\u00edgidos nas licita\u00e7\u00f5es p\u00fablicas poderia melhorar o \u00edndice de execu\u00e7\u00e3o dos contratos. Ao mesmo tempo, correr-se-ia o risco de se descartarem propostas que eventualmente sejam as mais desejadas pelo poder p\u00fablico, por exemplo quando h\u00e1 inova\u00e7\u00f5es tecnol\u00f3gicas que permitam a redu\u00e7\u00e3o significativa do pre\u00e7o em rela\u00e7\u00e3o ao de refer\u00eancia.<\/em>\u00a0<\/em><\/p>\n

Uma forma de encaminhar essa quest\u00e3o seria propor a progressividade do percentual a ser segurado. Quanto maior o desconto na licita\u00e7\u00e3o em rela\u00e7\u00e3o ao pre\u00e7o de refer\u00eancia, maior teria que ser a garantia \u2013 dentro da l\u00f3gica em que a redu\u00e7\u00e3o do valor em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 refer\u00eancia aumenta o risco de inadimplemento contratual. Desta forma, haveria compatibilidade entre risco e retorno: uma contrata\u00e7\u00e3o por valor mais baixo tende a ter um risco mais alto. Portanto, uma garantia de execu\u00e7\u00e3o mais abrangente.<\/em>\u00a0<\/em><\/p>\n

Essa proposta \u00e9 tamb\u00e9m interessante para enfrentar uma tend\u00eancia de concess\u00e3o de descontos exagerados. Como os \u00f3rg\u00e3os de controle cada vez mais olham com desconfian\u00e7a processos licitat\u00f3rios que n\u00e3o sejam conclu\u00eddos com desconto sobre o pre\u00e7o de refer\u00eancia, o incentivo da administra\u00e7\u00e3o \u00e9 sobre-estimar o valor de refer\u00eancia e o incentivo aos licitantes \u00e9 conceder descontos mesmo em licita\u00e7\u00f5es em que o pre\u00e7o de refer\u00eancia foi bem calibrado. Nesse caso, a progressividade das garantias passa a ser ainda mais interessante, posto que os descontos exagerados levam a maiores riscos de inadimplemento contratual.<\/em>\u00a0<\/em><\/p>\n

Vale notar que o Art. 57 do Substitutivo <\/em>[da C\u00e2mara, antes da aprova\u00e7\u00e3o final] ainda insiste na desclassifica\u00e7\u00e3o de propostas \u201cmanifestamente inexequ\u00edveis\u201d, mas cria uma zona cinzenta na qual os licitantes pouco acima do valor de corte por inexequibilidade ainda t\u00eam que apresentar garantias adicionais.\u201d<\/em><\/p>\n

Em seguida, reproduzimos a reda\u00e7\u00e3o ent\u00e3o proposta na C\u00e2mara dos Deputados, de uma complexidade extremamente confusa:<\/p>\n

Art. 57. Ser\u00e3o desclassificadas as propostas que (…): <\/em><\/p>\n

III \u2013 apresentarem pre\u00e7os manifestamente inexequ\u00edveis ou permanecerem acima do or\u00e7amento estimado para a contrata\u00e7\u00e3o; (…) <\/em><\/p>\n

\u00a7 4\u00b0 No caso de obras, consideram-se manifestamente inexequ\u00edveis as propostas cujos valores sejam inferiores a 80% (oitenta por cento) do menor dos seguintes valores: <\/em><\/p>\n

I \u2013 m\u00e9dia aritm\u00e9tica dos valores das propostas superiores a 80% (oitenta por cento) do valor or\u00e7ado pela Administra\u00e7\u00e3o; <\/em><\/p>\n

II \u2013 valor or\u00e7ado pela Administra\u00e7\u00e3o.<\/em><\/p>\n

\u00a7 5\u00ba Antes de conclu\u00eddo o julgamento das propostas, o licitante poder\u00e1 demonstrar falhas no c\u00e1lculo do valor estimado da contrata\u00e7\u00e3o, que possam impactar na an\u00e1lise da exequibilidade da proposta.<\/em><\/p>\n

\u00a7 6\u00ba Dos licitantes classificados na forma do \u00a7 4\u00ba que houverem apresentado proposta com valor global inferior a 85% (oitenta e cinco por cento) do menor dos valores a que se referem os incisos do \u00a7 4\u00ba, ser\u00e1 exigida, para assinatura do contrato, presta\u00e7\u00e3o de garantia adicional, sem preju\u00edzo das demais garantias exig\u00edveis de acordo com esta Lei, igual \u00e0 diferen\u00e7a entre o valor da proposta e o menor dos valores a que se referem os incisos do \u00a7 4\u00ba.<\/em><\/p>\n

\u00a7 7\u00ba A garantia adicional referida no \u00a7 6\u00ba dever\u00e1 ser apresentada pelo licitante no prazo de 10 (dez) dias \u00fateis do ato de classifica\u00e7\u00e3o, sob pena de desclassifica\u00e7\u00e3o de sua proposta.<\/em><\/p>\n

Nossa proposta desde aquela \u00e9poca era muito mais clara e eficaz, e pode ser implementada em regulamento, mantendo-se a reda\u00e7\u00e3o final aprovada no Senado, com a \u00fanica exce\u00e7\u00e3o desse infeliz \u00a7 4\u00ba. O que propusemos foi o seguinte:<\/p>\n

\u201cA regulamenta\u00e7\u00e3o posterior da Lei poderia perfeitamente disciplinar que essa garantia fosse provida em al\u00edquota superior \u00e0 das demais garantias exig\u00edveis. Mas note-se que aqui propomos que qualquer desconto em rela\u00e7\u00e3o ao pre\u00e7o de refer\u00eancia seja objeto de garantia em \u201cdose superior\u201d. <\/em><\/p>\n

Podem ser previstas regras de proporcionalidade entre o desconto do licitante vencedor em rela\u00e7\u00e3o ao pre\u00e7o de refer\u00eancia do edital e o valor a ser garantido por meio de seguro-garantia.<\/em><\/strong>\u201c<\/p>\n

Profissionaliza\u00e7\u00e3o<\/strong><\/p>\n

No que diz respeito \u00e0 profissionaliza\u00e7\u00e3o<\/strong>, Fortini e Amorim (op cit<\/em>) avaliam que o PL requer da alta administra\u00e7\u00e3o a promo\u00e7\u00e3o da gest\u00e3o por compet\u00eancias, a exig\u00eancia da avalia\u00e7\u00e3o da estrutura de recursos humanos, a identifica\u00e7\u00e3o das compet\u00eancias necess\u00e1rias para cada fun\u00e7\u00e3o e a defini\u00e7\u00e3o clara das responsabilidades e dos pap\u00e9is a serem desempenhados e, ao final, sele\u00e7\u00e3o e designa\u00e7\u00e3o de agentes p\u00fablicos que tenham conhecimentos, habilidades e atitudes compat\u00edveis, sem preju\u00edzo das avalia\u00e7\u00f5es de desempenho (arts. 7\u00ba e 8\u00ba, \u00a7 3\u00ba, do PL).<\/p>\n

Na minha avalia\u00e7\u00e3o, por\u00e9m, a maior frustra\u00e7\u00e3o com o texto final \u00e9 que ele ficou aqu\u00e9m de criar ou, ao menos, sugerir uma carreira pr\u00f3pria a partir de profissionais com experi\u00eancia na atividade, o que depender\u00e1 muito mais de cada Administra\u00e7\u00e3o (nas esferas federal, estadual e municipal) em suas respectivas reformas administrativas.<\/p>\n

Planejamento<\/strong><\/p>\n

O planejamento das contrata\u00e7\u00f5es, fundamental para a consolida\u00e7\u00e3o e racionaliza\u00e7\u00e3o das compras nas v\u00e1rias esferas administrativas, e que era uma recomenda\u00e7\u00e3o minha e de v\u00e1rios analistas externos, ganhou espa\u00e7o na nova Lei: as unidades administrativas poder\u00e3o ter Planos Anuais de Contrata\u00e7\u00e3o. Embora a Lei ainda lhes faculte a op\u00e7\u00e3o de n\u00e3o elaborar tais planos, vale lembrar que o Poder Executivo Federal j\u00e1 se antecipou \u00e0 Lei em 2019 e publicou uma Instru\u00e7\u00e3o Normativa (1\/2019) obrigando as suas unidades administrativas a submeter tais planos.<\/p>\n

Tecnologia<\/strong><\/p>\n

Quanto \u00e0 absor\u00e7\u00e3o das tecnologias de informa\u00e7\u00e3o e comunica\u00e7\u00e3o, \u00e9 verdade que a Lei manda que os processos sejam digitais (art. 12, inciso VI) e os certames tamb\u00e9m (art. 17, \u00a7 2\u00ba). Outros elementos, como acompanhamento de obras, modelos de engenharia e obras, e cat\u00e1logo de padroniza\u00e7\u00e3o de bens e servi\u00e7os (art. 19), audi\u00eancias p\u00fablicas (art. 21), publica\u00e7\u00e3o de edital (arts. 31 e 97), submiss\u00e3o de documentos (art. 67) tamb\u00e9m passam a ser preferivelmente eletr\u00f4nicos.<\/p>\n

OK, os certames passam a ser preferencialmente eletr\u00f4nicos (art. 17, \u00a7 2\u00ba), mas somente preferencialmente — o que significa que o \u00f3rg\u00e3o contratante ainda tem algumas situa\u00e7\u00f5es em que pode evocar a necessidade de um certame presencial. Como exaustivamente discutido em notas t\u00e9cnicas anteriores, nenhuma delas realmente justifica a necessidade de um certame presencial, pois j\u00e1 se sabe, tanto por experi\u00eancia pr\u00e1tica quanto por estudos te\u00f3ricos, que a melhor maneira de desarticular cart\u00e9is de licita\u00e7\u00f5es \u00e9 manter a identidade dos licitantes ocultada, pelo menos, at\u00e9 a adjudica\u00e7\u00e3o do objeto \u2013 lembrando que os preg\u00f5es eletr\u00f4nicos federais n\u00e3o seguem essa orienta\u00e7\u00e3o plenamente, pois as identidades dos licitantes s\u00e3o reveladas ainda na fase de aceita\u00e7\u00e3o. A grava\u00e7\u00e3o em \u00e1udio e v\u00eddeo nos casos de certames presenciais, nas condi\u00e7\u00f5es tecnol\u00f3gicas atuais, \u00e9 insuficiente para o uso de muitas das t\u00e9cnicas de detec\u00e7\u00e3o de cart\u00e9is dispon\u00edveis.<\/p>\n

Quanto \u00e0 preven\u00e7\u00e3o de fraudes, outro tema que abordei em notas t\u00e9cnicas, ela passa pela difus\u00e3o de pol\u00edticas de integridade (tanto de fornecedores como das unidades administrativas), transpar\u00eancia e controle de conflitos de interesse dos agentes de compras. A nova Lei, no entanto, prefere colocar os \u00f3rg\u00e3os de controle diretamente e preventivamente dentro dos processos de compras, fazer treinamentos, etc. Essa vis\u00e3o de que o \u00f3rg\u00e3o de controle sabe mais que o pr\u00f3prio agente de compras adv\u00e9m, como tanto fa\u00e7o quest\u00e3o de repisar, da baixa valoriza\u00e7\u00e3o do pessoal engajado em compras, sem carreiras definidas, sujeito a todas as penalidades mas a nenhum reconhecimento verbal nem monet\u00e1rio, em contraste com as carreiras de auditores e analistas de controle, que est\u00e3o entre as mais bem pagas de todo o Servi\u00e7o P\u00fablico. Enquanto n\u00e3o houver um fortalecimento dos quadros e carreiras desta atividade, a presen\u00e7a do \u00f3rg\u00e3o de controle continuar\u00e1 pairando como uma amea\u00e7a constante e aterradora dos pobres e mal formados agentes de compras.<\/p>\n

Sele\u00e7\u00e3o e adjudica\u00e7\u00e3o<\/strong><\/p>\n

Em primeiro lugar, a invers\u00e3o de fases, que j\u00e1 existia no preg\u00e3o e tinha sido ainda mais flexibilizada no RDC, passa a ser a regra, enquanto a habilita\u00e7\u00e3o antes do certame passa a ser a exce\u00e7\u00e3o (art. 17, \u00a7 1\u00ba) \u2013 essa mudan\u00e7a, ao ser estendida \u00e0 modalidade concorr\u00eancia, reduz a incid\u00eancia de impugna\u00e7\u00f5es e recursos direcionados a licitantes que sequer apresentam propostas competitivas. Essa invers\u00e3o de fases n\u00e3o \u00e9, por\u00e9m, uma vacina infal\u00edvel contra o uso de impugna\u00e7\u00f5es como parte da estrat\u00e9gia de cart\u00e9is em afastar licitantes de fora dos seus esquemas.<\/p>\n

Ao percorrermos a lei, como n\u00e3o lamentar o excesso de outros detalhes? Vejamos, por exemplo, o c\u00e1lculo do valor estimado da compra: o artigo 23 lista sistemas espec\u00edficos mantidos pelo Poder Executivo. O que acontece se o Executivo desenvolver um sistema melhor ou, ainda mais, unificar v\u00e1rios sistemas num s\u00f3? Deve-se reformar a Lei? Para que trazer tal informa\u00e7\u00e3o em Lei? Por que a melhor estimativa \u00e9 uma mediana? Isso vale sempre?<\/p>\n

E as modalidades de licita\u00e7\u00e3o? Ora, conseguimos enxugar a lista de modalidades de compras (convite, tomada de pre\u00e7o e concorr\u00eancia) que, originalmente, apenas variavam no grau de restri\u00e7\u00e3o, publicidade e prazo de divulga\u00e7\u00e3o, mas se resumiam todas (as da Lei 8666) a leil\u00f5es de envelopes fechados presenciais com habilita\u00e7\u00e3o pr\u00e9via, e praticamente se descartava o crit\u00e9rio de adjudica\u00e7\u00e3o de t\u00e9cnica e pre\u00e7o, ao limit\u00e1-lo a um segmento muito espec\u00edfico dos bens e servi\u00e7os. Agora todas as modalidades de compras anteriores podem ser resumidas numa s\u00f3: a concorr\u00eancia. A manuten\u00e7\u00e3o do nome, a meu ver, pode at\u00e9 causar confus\u00e3o, pois durante dois anos a lei atual e a nova estar\u00e3o em vig\u00eancia simultaneamente, e n\u00e3o \u00e9 dif\u00edcil imaginar que, por mais que o instrumento convocat\u00f3rio deixe expl\u00edcita qual lei estar\u00e1 sendo aplicada, sempre haver\u00e1 a chance de que alguma parte do edital ou outra lei se refira a concorr\u00eancia ambiguamente.<\/p>\n

Mas n\u00e3o \u00e9 s\u00f3 isso. O preg\u00e3o foi mantido como modalidade \u00e0 parte (ela n\u00e3o fazia parte do rol de modalidades original da Lei 8666), embora tenha se tornado t\u00e3o somente um caso especial da concorr\u00eancia. O preg\u00e3o continua destinando-se a bens e servi\u00e7os comuns, mas passa a poder ter invers\u00e3o de fases. Curiosamente, n\u00e3o est\u00e1 escrito em nenhum lugar da lei explicitamente que ele n\u00e3o possa ter crit\u00e9rio de julgamento diferente do menor pre\u00e7o ou maior desconto. A exclus\u00e3o \u00e9 indireta, na medida em que o caput do art. 29 que o objeto a ser licitado deve \u201cpossuir padr\u00f5es de desempenho e qualidade que possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especifica\u00e7\u00f5es usuais de mercado<\/em>\u201d, e o par\u00e1grafo \u00fanico do mesmo artigo diz que ele n\u00e3o se aplica a contrata\u00e7\u00f5es de servi\u00e7os t\u00e9cnicos especializados de natureza predominantemente intelectual e de obras e servi\u00e7os de engenharia (com a exce\u00e7\u00e3o dos servi\u00e7os \u201ccomuns\u201d de engenharia). A lista de situa\u00e7\u00f5es em que se pode aplicar o crit\u00e9rio de julgamento de t\u00e9cnica e pre\u00e7o (art. 36) procura sempre enfatizar o car\u00e1ter de \u201cespecial\u201d, \u201cespec\u00edfico\u201d ou que n\u00e3o possa ser definido de maneira objetiva, o que, em tese, afastaria o uso do preg\u00e3o. Vale notar que esse crit\u00e9rio deve ser escolhido \u201cquando o estudo t\u00e9cnico preliminar demonstrar que a avalia\u00e7\u00e3o e a pondera\u00e7\u00e3o t\u00e9cnica das propostas que superarem os requisitos m\u00ednimos estabelecidos no edital forem relevantes aos fins pretendidos<\/em>\u201d (art. 36, \u00a7 1\u00ba).<\/p>\n

Mas isso n\u00e3o faz a menor diferen\u00e7a, pois a concorr\u00eancia tem rigorosamente o mesmo rito do preg\u00e3o (arts. 18 e 29).\u00a0 A grande vantagem de se usar a concorr\u00eancia \u00e9, portanto, a possibilidade de adotar crit\u00e9rios de julgamento diferentes do menor pre\u00e7o ou maior desconto. Seria mais f\u00e1cil e direto, portanto, regular que os bens e servi\u00e7os comuns devessem ser licitados por menor pre\u00e7o ou maior desconto, e os especiais e \u201cdiferenci\u00e1veis\u201d por t\u00e9cnica e pre\u00e7o, em vez de se criarem modalidades \u201cseparadas\u201d.<\/p>\n

O compartilhamento de um mesmo rito procedimental entre a concorr\u00eancia e o preg\u00e3o se estende \u00e0 escolha da fase de disputa, na medida em que a Lei \u00e9 muito, muito restritiva a como as propostas s\u00e3o apresentadas: ou s\u00e3o apresentadas na forma fechada (disputa fechada) ou em lances sucessivos (disputa aberta). Como insisti ad nauseam<\/em> em tr\u00eas notas t\u00e9cnicas, essa restri\u00e7\u00e3o \u00e9 descabida. O art. 28, \u00a7 2\u00ba pro\u00edbe a cria\u00e7\u00e3o de novas modalidades \u2013 diga-se de passagem, a antiga lei 8666 tinha a mesma veda\u00e7\u00e3o e, no entanto, o preg\u00e3o e o RDC foram criados por leis subsequentes —, o que n\u00e3o seria uma restri\u00e7\u00e3o ativa se fosse poss\u00edvel inovar nas formas de disputa. Em verdade, a restri\u00e7\u00e3o est\u00e1 no art. 56, que descreve as formas de disputa aberta e fechada e, numa infeliz decis\u00e3o dos deputados confirmada pelos senadores, imp\u00f5e-se a realiza\u00e7\u00e3o de ao menos uma fase de disputa aberta:<\/p>\n

Art. 56. O modo de disputa poder\u00e1 ser, isolada ou conjuntamente:<\/em>\u00a0<\/em><\/p>\n

I \u2013 aberto, hip\u00f3tese em que os licitantes apresentar\u00e3o suas propostas por meio de lances p\u00fablicos e sucessivos, crescentes ou decrescentes;<\/em><\/p>\n

II \u2013 fechado, hip\u00f3tese em que as propostas permanecer\u00e3o em sigilo at\u00e9 a data e hora designadas para sua divulga\u00e7\u00e3o.<\/em><\/p>\n

\u00a7 1\u00ba A utiliza\u00e7\u00e3o isolada do modo de disputa fechado ser\u00e1 vedada quando adotados os crit\u00e9rios de julgamento de menor pre\u00e7o ou de maior desconto.<\/em><\/p>\n

\u00a0<\/em>Ora, como fartamente exposto nas Notas T\u00e9cnicas de que participei (Fiuza, Pompermayer e Rauen, 2019<\/a>; Fiuza e Rauen, 2019<\/a>), \u00e9 uma ilus\u00e3o achar que a disputa aberta aumenta a concorr\u00eancia. A teoria e a evid\u00eancia emp\u00edrica n\u00e3o d\u00e3o suporte a essa afirma\u00e7\u00e3o. Pelo contr\u00e1rio, organismos multilaterais, como a OCDE<\/a> e o International Competition Network<\/a> s\u00e3o bastante claros em suas recomenda\u00e7\u00f5es para combate a cart\u00e9is de licita\u00e7\u00f5es: o modo de disputa fechado \u00e9 o mais indicado. Isso porque ele n\u00e3o d\u00e1 chance para os membros de um cartel se defenderem de “invasores” (isto \u00e9, concorrentes s\u00e9rios, n\u00e3o ligados ao esquema criminoso) que entram no cartel de \u00faltima hora, desde que o certame proteja o anonimato dos licitantes (o que s\u00f3 \u00e9 poss\u00edvel se for garantida a obrigatoriedade do certame eletr\u00f4nico). Os certames com disputa fechada atualmente regulados pela Lei 8666 s\u00e3o eivados de risco de conluio porque s\u00e3o presenciais, e n\u00e3o porque a disputa \u00e9 por envelopes fechados. Os licitantes que participam de esquemas fraudulentos podem reagir \u00e0 presen\u00e7a de membros externos atrav\u00e9s da guerra de impugna\u00e7\u00f5es ou, simplesmente, trocando o envelope que ser\u00e1 entregue, ao perceberem a presen\u00e7a de concorrentes de fora do esquema. Isso n\u00e3o \u00e9 poss\u00edvel no certame eletr\u00f4nico com invers\u00e3o de fase de habilita\u00e7\u00e3o, como disposto no PL 4253 em comento.<\/p>\n

Mesmo o preg\u00e3o presencial, que foi criado antes do eletr\u00f4nico, tem uma fase de disputa aberta que parece gerar algum tipo de concorr\u00eancia, mas vale lembrar que, racionalmente, sabendo que h\u00e1 essa fase aberta, os licitantes s\u00e3o menos agressivos em suas propostas iniciais. S\u00f3 n\u00e3o s\u00e3o menos ainda porque o preg\u00e3o presencial tem um limite no n\u00famero de participantes que progridem para a fase de disputa aberta. Mas, mesmo introduzindo essa regra de progress\u00e3o no preg\u00e3o eletr\u00f4nico por decreto, ela n\u00e3o \u00e9 invulner\u00e1vel a esquemas fraudulentos. Por exemplo, um cartel de licitantes pode dar propostas iniciais de cobertura bem pr\u00f3ximas \u00e0 do ganhador designado pelo cartel para dificultar a progress\u00e3o de algum licitante externo ao cartel. \u00c9 bom notar, tamb\u00e9m, que a Secretaria de Gest\u00e3o do Minist\u00e9rio da Economia, que tanto apoiou a fase aberta, produziu o texto do Decreto 10.024\/2019. Ao reconhecer que o modelo anterior tinha falhas \u2013 no caso, foi reconhecido que a regra de fechamento do preg\u00e3o era ineficiente \u2013 uma das solu\u00e7\u00f5es encontradas e propostas foi… fazer mais uma disputa fechada! (copiando, ali\u00e1s, a ideia do caput e inciso I do art. 59).<\/p>\n

Feitas essas considera\u00e7\u00f5es sobre formas de disputa, notemos agora que, no fundo, passamos a ter apenas quatro modalidades bem distintas: concorr\u00eancia (que inclui o preg\u00e3o), o concurso, o leil\u00e3o e o novo di\u00e1logo competitivo.<\/p>\n

O concurso e o leil\u00e3o n\u00e3o diferem significativamente de como eles eram antes. Embora se presuma que o crit\u00e9rio de julgamento de melhor t\u00e9cnica ou conte\u00fado art\u00edstico se aplique t\u00e3o somente aos concursos, em nenhum momento isso \u00e9 explicitado. \u201cMaior lance\u201d, no jarg\u00e3o dessa lei, se refere a lances dados apenas em leil\u00f5es (de venda), embora na ci\u00eancia econ\u00f4mica os termos \u201clance\u201d e \u201cleil\u00e3o\u201d possam ser aplicados com refer\u00eancia tanto a compras (leil\u00e3o reverso) como a vendas.<\/p>\n

O di\u00e1logo competitivo \u00e9 a grande novidade desta Lei, e se inspira na modalidade hom\u00f4nima da Uni\u00e3o Europeia. Ela come\u00e7a pela publica\u00e7\u00e3o de um edital contendo a necessidade do \u00f3rg\u00e3o contratante que deve ser atendida. Os interessados se inscrevem e s\u00e3o pr\u00e9-selecionados segundo crit\u00e9rios dispostos no edital. Podem ser feitas v\u00e1rias rodadas de consultas estritamente bilaterais e sigilosas entre o \u00f3rg\u00e3o contratante e os interessados pr\u00e9-selecionados para que aquele identifique uma solu\u00e7\u00e3o que atenda \u00e0 necessidade apresentada. Esta solu\u00e7\u00e3o escolhida passa a ser, em seguida, o objeto de novo edital, com \u201ccrit\u00e9rios objetivos a serem utilizados para sele\u00e7\u00e3o da proposta mais vantajosa\u201d. Essa modalidade s\u00f3 deve ser aplicada em algumas situa\u00e7\u00f5es especificas, envolvendo algum tipo de inova\u00e7\u00e3o, incerteza sobre a melhor solu\u00e7\u00e3o a ser aplicada para atender \u00e0s necessidades, ou mesmo a adapta\u00e7\u00e3o das solu\u00e7\u00f5es dispon\u00edveis no mercado.[4]<\/sup><\/a><\/p>\n

Mas mesmo aqui volta a cr\u00edtica sobre a veda\u00e7\u00e3o de novas modalidades. No pr\u00f3prio artigo 32, abre-se a possibilidade de usar o di\u00e1logo competitivo a situa\u00e7\u00f5es em que a Administra\u00e7\u00e3o \u201cIII \u2013 considere que os modos de disputa aberto e fechado n\u00e3o permitem aprecia\u00e7\u00e3o adequada das varia\u00e7\u00f5es entre propostas<\/em>\u201d.<\/p>\n

Ora, o di\u00e1logo competitivo \u00e9 uma modalidade de licita\u00e7\u00e3o voltada para contrata\u00e7\u00f5es nas quais a Administra\u00e7\u00e3o n\u00e3o tem condi\u00e7\u00f5es de definir por si s\u00f3 a solu\u00e7\u00e3o para as suas necessidades, e n\u00e3o para suprir defici\u00eancias nos modos de disputa. Eu sugeri ao longo da tramita\u00e7\u00e3o dessa Lei muitos outros modos de disputa, tais como leil\u00e3o de rel\u00f3gio, proxy<\/em>, rel\u00f3gio-proxy, combinat\u00f3rio e, no entanto, nenhum deles foi acolhido pelas relatorias. Eles s\u00e3o modos de disputa bastante utilizados em leil\u00f5es de concess\u00f5es mundo afora, e as contribui\u00e7\u00f5es dos Profs. Robert Wilson e Paul Milgrom para a elabora\u00e7\u00e3o dessas modalidades foram recentemente agraciadas com o Pr\u00eamio Nobel de Economia 2020. N\u00e3o obstante essa repetida insist\u00eancia, o pouco conhecimento da Teoria dos Leil\u00f5es no meio jur\u00eddico aparentemente impediu a difus\u00e3o dessas inova\u00e7\u00f5es.<\/p>\n

Os leil\u00f5es de rel\u00f3gio n\u00e3o deveriam ser enquadrados, a princ\u00edpio e a rigor, nem como disputa aberta nem fechada. Os leil\u00f5es proxy ainda poderiam, com uma dose de boa vontade, ser entendidos como uma extens\u00e3o da disputa aberta, pois os licitantes recorrem a uma parametriza\u00e7\u00e3o que vincula os lances dados por rob\u00f4s da pr\u00f3pria plataforma de leil\u00e3o. Os leil\u00f5es combinat\u00f3rios podem ser aplicados tanto em disputa fechada como aberta ou em disputa proxy, portanto entendo que podem ser introduzidos por regulamento posteriormente. Mas eles tamb\u00e9m poderiam ser aplicados a leil\u00f5es de rel\u00f3gio, que, em tese, n\u00e3o est\u00e3o previstos na Lei. A combina\u00e7\u00e3o entre rel\u00f3gio e proxy tamb\u00e9m seria inviabilizada. Existem ainda leil\u00f5es pay-as-you-go<\/em>, em que o valor unit\u00e1rio varia de acordo com a quantidade adquirida.<\/p>\n

Em resumo: se a limita\u00e7\u00e3o dos modos de disputa \u00e9 um problema, ent\u00e3o seria melhor a Presid\u00eancia baixar uma Medida Provis\u00f3ria com um novo inciso no art. 56 que abrisse a possibilidade de se criarem novos modos de disputa. Se n\u00e3o \u00e9 para chegar a tanto, \u00e9 melhor remover o inciso III do art. 32. O ponto, novamente, \u00e9 que melhorias pontuais no funcionamento do preg\u00e3o e da concorr\u00eancia restam dificultadas porque a Lei \u00e9 detalhada demais.<\/p>\n

Outro problema s\u00e9rio que aparece nos crit\u00e9rios de julgamentos s\u00e3o as distor\u00e7\u00f5es causadas pelo que \u00e9 conhecido na literatura econ\u00f4mica como bid preferences: <\/em>pensadas como aplica\u00e7\u00f5es de fun\u00e7\u00f5es regulat\u00f3rias das licita\u00e7\u00f5es, essas visam obter outros objetivos al\u00e9m de obter o maior valor (ou, na linguagem econ\u00f4mica, maior \u201cutilidade\u201d) pelo pre\u00e7o pago \u2013 correspondente aos crit\u00e9rios de melhor t\u00e9cnica e de t\u00e9cnica e pre\u00e7o — ou o menor pre\u00e7o, sujeito a um n\u00edvel m\u00ednimo de qualidade \u2013 correspondente aos crit\u00e9rios de menor pre\u00e7o e de maior desconto. Essas prefer\u00eancias funcionam de duas maneiras principais:<\/p>\n