{"id":3394,"date":"2021-01-19T12:08:50","date_gmt":"2021-01-19T15:08:50","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=3394"},"modified":"2021-02-02T15:54:21","modified_gmt":"2021-02-02T18:54:21","slug":"a-regra-de-transicao-de-30-anos-das-linhas-de-onibus-interestaduais","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=3394","title":{"rendered":"A regra de transi\u00e7\u00e3o de 30 anos das linhas de \u00f4nibus interestaduais"},"content":{"rendered":"

Por Liliane Galv\u00e3o e Rodrigo Novaes<\/em><\/p>\n

\u201cSe quisermos que tudo continue como <\/em><\/strong>est\u00e1,<\/em><\/strong><\/p>\n

\u00e9 <\/em><\/strong>preciso que tudo mude\u201d.<\/em><\/strong><\/p>\n

Giuseppi Tomasi de Lampedusa<\/strong><\/p>\n

O Transporte Rodovi\u00e1rio Interestadual e Internacional de Passageiros (TRIIP), a partir da promulga\u00e7\u00e3o da Lei n\u00ba 12.996, de 18 de junho de 2014, passou a ser outorgado por autoriza\u00e7\u00e3o<\/strong>. A Lei alterou dispositivos da Lei n\u00ba 10.233, de 5 de junho de 2001, que trata das compet\u00eancias da Ag\u00eancia Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), reguladora do setor.<\/p>\n

A autoriza\u00e7\u00e3o como forma de outorga do TRIIP \u00e9 estabelecida pelo\u00a0 art. 43, inciso II, dessa Lei, e tem as seguintes caracter\u00edsticas:<\/p>\n

    \n
  1. a) independe de licita\u00e7\u00e3o;<\/li>\n
  2. b) \u00e9 exercida em liberdade de pre\u00e7os dos servi\u00e7os, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competi\u00e7\u00e3o;<\/li>\n
  3. c) n\u00e3o prev\u00ea prazo de vig\u00eancia ou termo final, extinguindo-se pela sua plena efic\u00e1cia, por ren\u00fancia, anula\u00e7\u00e3o ou cassa\u00e7\u00e3o.<\/li>\n<\/ol>\n

    O modelo de autoriza\u00e7\u00f5es para o TRIIP tem sido alvo de ataques tanto no Poder Judici\u00e1rio \u2013 por meio de duas a\u00e7\u00f5es diretas de inconstitucionalidade que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) \u2013, como no Poder Legislativo \u2013 por meio do Projeto de Lei (PL) n\u00b0 3.819, de 2020.<\/p>\n

    O objetivo dessas investidas parece ser a perman\u00eancia da situa\u00e7\u00e3o atual de um mercado fechado e sem concorr\u00eancia \u2013 ou seja, manter os atuais incumbentes com liberdade de praticar os pre\u00e7os que entenderem adequados aos seus interesses sem serem amea\u00e7ados por novos entrantes.<\/p>\n

    O Poder Executivo, por meio do Decreto n\u00ba 10.157, de 4 de dezembro de 2019, buscou, justamente, equacionar essas quest\u00f5es, regulamentando o comando atual da Lei n\u00ba 10.233, de 2001. Espera-se com isso beneficiar a popula\u00e7\u00e3o, proporcionando um sistema de pre\u00e7os livres, em um ambiente competitivo e sem exclusividade de linhas, o que deve levar \u00e0 queda de pre\u00e7os e ao aumento de oferta.<\/p>\n

    Na contram\u00e3o desta iniciativa, no \u00faltimo dia 22 de dezembro, o Senado Federal remeteu \u00e0 C\u00e2mara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) n\u00ba 3.819, de 2020, que altera a Lei n\u00ba 10.233, de 5 de junho de 2001, para \u2013 novamente \u2013 alterar os crit\u00e9rios para a outorga de autoriza\u00e7\u00e3o da opera\u00e7\u00e3o do TRIIP.<\/p>\n

    Apesar de o projeto ter sido aprovado na forma de um substitutivo, que manteve a possibilidade da opera\u00e7\u00e3o do TRIP no regime de autoriza\u00e7\u00e3o, o texto proposto para o art. 47-B da Lei n\u00ba 10.233, de 2001, estabelece um conceito de \u201cinviabilidade t\u00e9cnica, operacional e econ\u00f4mica\u201d para limitar o n\u00famero de autoriza\u00e7\u00f5es e obrigar a realiza\u00e7\u00e3o de um processo seletivo p\u00fablico para escolha das empresas autorizat\u00e1rias. Os crit\u00e9rios para a caracteriza\u00e7\u00e3o desta \u201cinviabilidade\u201d ser\u00e3o definidos pelo Poder Executivo; as regras do processo seletivo, pela ANTT.<\/p>\n

    Na pr\u00e1tica, a depender das regras a serem criadas pelo Poder Executivo, poder\u00e1 ser exigida a realiza\u00e7\u00e3o de processo de sele\u00e7\u00e3o, cujas regras da competi\u00e7\u00e3o, como mostra a hist\u00f3ria recente do TRIIP, tendem a ser bastante restritivas. Al\u00e9m disso, regulamentos deixados a cargo do Poder Executivo podem ser alterados ao sabor das conveni\u00eancias do momento, como se v\u00ea em todos os setores regulados.<\/p>\n

    Nesse contexto, o objetivo deste artigo \u00e9 contribuir para a avalia\u00e7\u00e3o do modelo legal vigente para o mercado do TRIIP. Iniciaremos com a apresenta\u00e7\u00e3o de um relato cronol\u00f3gico da regulamenta\u00e7\u00e3o do TRIIP. Em seguida, argumentaremos sobre a adequa\u00e7\u00e3o do marco regulat\u00f3rio vigente para a opera\u00e7\u00e3o do TRIIP.<\/p>\n

    Relato cronol\u00f3gico da regulamenta\u00e7\u00e3o do TRIIP<\/strong><\/p>\n

    Ao longo da hist\u00f3ria, o transporte rodovi\u00e1rio de passageiros no Brasil sempre foi prestado por meio de autoriza\u00e7\u00f5es <\/strong>outorgadas pela Uni\u00e3o a particulares, em car\u00e1ter prec\u00e1rio<\/strong> e sem licita\u00e7\u00e3o<\/strong>.<\/p>\n

    Com o advento da Constitui\u00e7\u00e3o de 1988, que previa licita\u00e7\u00e3o para outorga de concess\u00e3o ou permiss\u00e3o de servi\u00e7os p\u00fablicos (art. 175, par\u00e1grafo \u00fanico e incisos), foi editado o Decreto n\u00ba 99.072, de 8 de mar\u00e7o de 1990, para alterar o regulamento dos servi\u00e7os p\u00fablicos rodovi\u00e1rios de transporte coletivo de passageiros, e exigir licita\u00e7\u00e3o, na modalidade de concorr\u00eancia, para a explora\u00e7\u00e3o dos \u201cservi\u00e7os p\u00fablicos rodovi\u00e1rios de transporte coletivo de passageiros, interestaduais e internacionais, quando n\u00e3o prestados diretamente\u201d.<\/p>\n

    Como as linhas existentes n\u00e3o haviam sido licitadas, foi estabelecido por decreto que elas somente poderiam ser exploradas at\u00e9 outubro de 2008 \u2013 tempo mais do que suficiente para amortizar os investimentos em \u00f4nibus, cuja deprecia\u00e7\u00e3o se d\u00e1, em m\u00e9dia, entre sete e dez anos. Mesmo contando com prazo t\u00e3o extenso, as licita\u00e7\u00f5es que regularizariam as linhas do TRIIP jamais foram realizadas. Assim, as autoriza\u00e7\u00f5es vigentes foram sucessivamente prorrogadas com a justificativa de que os servi\u00e7os de transporte n\u00e3o poderiam sofrer descontinuidade.<\/p>\n

    Quando, finalmente, foi publicada a licita\u00e7\u00e3o das linhas, em 29 de agosto de 2013, o edital foi questionado por um sindicato de empresas de transportes do estado de S\u00e3o Paulo. A licita\u00e7\u00e3o foi suspensa por decis\u00e3o judicial, e, posteriormente, cancelada em raz\u00e3o da entrada em vigor da Lei n\u00ba 12.996, de 18 de junho de 2014, que estabeleceu a autoriza\u00e7\u00e3o como modalidade de outorga do TRIIP, fosse ele regular ou especial.<\/p>\n

    Embora a nova lei preveja, em seu art. 5\u00ba, que as autoriza\u00e7\u00f5es especiais deveriam ter sido extintas no per\u00edodo de um ano contado de sua publica\u00e7\u00e3o, tamb\u00e9m consta nela que tal prazo poderia ser prorrogado a crit\u00e9rio do ent\u00e3o ministro de Estado dos Transportes, mediante proposta da ANTT. Somente um ano ap\u00f3s a altera\u00e7\u00e3o do marco legal do setor \u00e9 que a Ag\u00eancia editou a Resolu\u00e7\u00e3o n\u00ba 4.770, de 25 de junho de 2015, para disciplinar o novo regime de outorgas.<\/p>\n

    Essa norma criou um regime de transi\u00e7\u00e3o para que a ANTT promovesse \u201cestudos de avalia\u00e7\u00e3o dos mercados, com o objetivo de detalhar e estabelecer os par\u00e2metros de avalia\u00e7\u00e3o dos casos enquadrados como inviabilidade operacional\u201d. Nesse per\u00edodo, o n\u00famero de autorizat\u00e1rias por mercado (liga\u00e7\u00e3o entre pares de cidades) ficou limitado (i) \u00e0 quantidade de autorizat\u00e1rias existentes por mercado e (ii) a duas transportadoras em cada mercado novo.<\/p>\n

    Ao impor o n\u00famero de vagas por mercado e conferir prefer\u00eancia aos transportadores nele estabelecidos, a ANTT criou, sem previs\u00e3o legal, barreiras \u00e0 entrada de novas transportadoras, em favorecimento \u00e0s incumbentes.<\/p>\n

    Assim, pela via regulat\u00f3ria, a ANTT manteve o mercado em completo desacordo com as caracter\u00edsticas do modelo de autoriza\u00e7\u00e3o que, conforme o art. 43, inciso II, da Lei n\u00ba 10.233, de 2001, \u201c\u00e9 exercida em liberdade de pre\u00e7os dos servi\u00e7os, tarifas e fretes, e em ambiente de livre e aberta competi\u00e7\u00e3o\u201d.<\/p>\n

    Somente em 18 de junho de 2019, em decorr\u00eancia do que previa o art. 4\u00ba da Lei n\u00ba 12.996, de 2014, que estabeleceu prazo de cinco anos para o controle de pre\u00e7os m\u00e1ximos e m\u00ednimos no TRIIP, o mercado passou a atuar em regime de liberdade de pre\u00e7os. As transportadoras, por\u00e9m, continuam, em sua grande maioria, prestando os servi\u00e7os em car\u00e1ter prec\u00e1rio, usufruindo do regime de autoriza\u00e7\u00e3o especial que lhes fora anteriormente concedido.<\/p>\n

    Na pr\u00e1tica, a situa\u00e7\u00e3o atual, ent\u00e3o, \u00e9 a de um mercado fechado, sem concorr\u00eancia, em que os incumbentes, paradoxalmente, t\u00eam liberdade de pre\u00e7os. N\u00e3o h\u00e1 elementos que indiquem que essa situa\u00e7\u00e3o atenda ao interesse p\u00fablico de forma satisfat\u00f3ria, j\u00e1 que o estabelecimento tanto de monop\u00f3lios quanto de oligop\u00f3lios em que haja um l\u00edder claro de mercado produz a chamada \u201cperda de peso morto\u201d. Em suma, o monopolista (ou o l\u00edder do oligop\u00f3lio) estabelece um pre\u00e7o acima do que seria poss\u00edvel com competi\u00e7\u00e3o eficiente, abrindo m\u00e3o da parte da demanda que poderia pagar esse pre\u00e7o menor, para extrair mais lucro dos consumidores dispostos a desembolsar o pre\u00e7o cobrado.<\/p>\n

    Com a edi\u00e7\u00e3o do Decreto n\u00ba 10.157, de 4 de dezembro de 2019, que \u201cinstitui a Pol\u00edtica Federal de Est\u00edmulo ao Transporte Rodovi\u00e1rio Coletivo Interestadual e Internacional de Passageiros\u201d, esperava-se que, finalmente, fosse poss\u00edvel fazer valer o regime de liberdade tarif\u00e1ria, em ambiente competitivo e sem exclusividade das linhas, nos termos previstos pela Lei n\u00ba 12.996, de 2014. Isso, por\u00e9m, ainda n\u00e3o ocorreu, visto que tanto o Decreto quanto a Lei que o fundamenta s\u00e3o alvos de enormes embates jur\u00eddicos, que t\u00eam como objetivo claro a perman\u00eancia do regime de transi\u00e7\u00e3o que dura at\u00e9 os dias atuais.<\/p>\n

    E assim, o mercado de TRIIP, passados mais de trinta anos da promulga\u00e7\u00e3o da Constitui\u00e7\u00e3o, ainda vive em uma situa\u00e7\u00e3o que poderia ser descrita como o \u201cjeitinho brasileiro\u201d, sob o eterno pretexto da necessidade de continuidade dos servi\u00e7os.<\/p>\n

    A adequa\u00e7\u00e3o da opera\u00e7\u00e3o do TRIIP no regime de autoriza\u00e7\u00f5es<\/strong><\/p>\n

    As autoriza\u00e7\u00f5es trazem benef\u00edcios ao interesse p\u00fablico na grande maioria dos casos, pois se destinam a reduzir, de forma bastante significativa, os custos para entrada no mercado. Ao acabar com crit\u00e9rios de escolha discricion\u00e1rios, j\u00e1 que, sendo ato vinculado, a autoriza\u00e7\u00e3o deve ser dada a todos os que preenchem os crit\u00e9rios estabelecidos em Lei, amplia-se a competi\u00e7\u00e3o no mercado, que atualmente \u00e9 inexistente ou ineficaz.<\/p>\n

    N\u00e3o vemos boa raz\u00e3o para essa prote\u00e7\u00e3o do mercado do TRIIP. O argumento principal \u00e9 que o regime de competi\u00e7\u00e3o pode deixar localidades desatendidas. Por\u00e9m, em primeiro lugar, n\u00e3o h\u00e1 raz\u00e3o econ\u00f4mica para que as empresas incumbentes fa\u00e7am grandes desinvestimentos em linhas superavit\u00e1rias. Mesmo que isso ocorra pontualmente \u2013 por exemplo, para atendimento a uma rota potencialmente mais lucrativa em um mercado pr\u00f3ximo \u2013 deve-se considerar que, sendo livre a entrada de qualquer empresa, de qualquer porte, em pouco tempo outro operador reestabelecer\u00e1 o servi\u00e7o. N\u00e3o havendo exig\u00eancias excessivas de frequ\u00eancia m\u00ednima e de idade da frota, o investimento necess\u00e1rio \u00e9 bastante pequeno. Considerando uma regi\u00e3o com cidades com dist\u00e2ncia de 400 km entre elas, um \u00fanico \u00f4nibus consegue distribuir passageiros de um ponto central a, no m\u00ednimo, sete outras localidades, com frequ\u00eancia semanal, restando ainda tempo suficiente para sua manuten\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

    O transporte de longa dist\u00e2ncia, como \u00e9 o caso do transporte interestadual, n\u00e3o tem a caracter\u00edstica pendular que marca o transporte semiurbano, em que a disponibilidade de determinados hor\u00e1rios \u00e9 extremamente importante, j\u00e1 que o passageiro n\u00e3o compra a viagem com anteced\u00eancia. Nos servi\u00e7os de longa dist\u00e2ncia, os passageiros simplesmente se programar\u00e3o para viajar nos dias e hor\u00e1rios dispon\u00edveis, e o mercado pode se ajustar sem grandes dificuldades.<\/p>\n

    Portanto, n\u00e3o consideramos que haja preju\u00edzo \u00e0 qualidade do transporte com as autoriza\u00e7\u00f5es.<\/p>\n

    Tamb\u00e9m n\u00e3o dever\u00e1 haver preju\u00edzo ao acesso ao transporte pela descontinuidade de rotas de menor demanda. A grande maioria das rotas deve ser superavit\u00e1ria, j\u00e1 que as empresas que as operam est\u00e3o no mercado h\u00e1 d\u00e9cadas. As rotas que sejam deficit\u00e1rias, inclusive as que estejam nessa condi\u00e7\u00e3o ap\u00f3s a pandemia da covid-19, podem sofrer ajustes de pre\u00e7os de modo a refletir seu real custo. De fato, com a redu\u00e7\u00e3o das barreiras, o n\u00famero de rotas ofertadas deve ser maior do que seria com a regula\u00e7\u00e3o anterior nas mesmas condi\u00e7\u00f5es de mercado, seja porque rotas antes invi\u00e1veis passam a fazer sentido econ\u00f4mico, seja porque operadores que antes trabalhavam na clandestinidade podem se regularizar, formando empresas ou cooperativas autorizadas.<\/p>\n

    A linha de argumenta\u00e7\u00e3o de redu\u00e7\u00e3o de acessibilidade parte do pressuposto de que h\u00e1 linhas cronicamente deficit\u00e1rias no sistema, e que essas linhas s\u00e3o de interesse social. Se esse for o caso, no entanto, devemos no perguntar: ser\u00e1 que, de fato, \u00e9 essencial o acesso frequente de passageiros de pequenas localidades a centros maiores em uma unidade da federa\u00e7\u00e3o diferente daquela em que residem? Caso a resposta seja positiva, prosseguimos: quem deve pagar por esse acesso? Dificilmente h\u00e1 algum sentido econ\u00f4mico ou mesmo social em fazer com que o passageiro de \u00f4nibus da cidade vizinha pague essa conta, que \u00e9 o que aconteceria em um modelo de opera\u00e7\u00e3o em linhas superavit\u00e1rias e deficit\u00e1rias. Nesse caso, deveria haver a defini\u00e7\u00e3o de uma rede de interesse social e de uma fonte de recursos p\u00fablica para subsidiar essa opera\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

    Outra alega\u00e7\u00e3o bastante presente na argumenta\u00e7\u00e3o contr\u00e1ria ao regime de autoriza\u00e7\u00f5es \u00e9 o \u201cproblema\u201d do excesso de oferta em rotas superavit\u00e1rias.<\/p>\n

    Parte da suposta injusti\u00e7a causada por essa situa\u00e7\u00e3o se explicaria pela utiliza\u00e7\u00e3o das receitas obtidas na opera\u00e7\u00e3o dessas linhas para subsidiar linhas deficit\u00e1rias, argumento que n\u00e3o deve prosperar, pelo motivo que acabamos de expor.<\/p>\n

    Outra parte \u00e9, simplesmente, a busca de compensa\u00e7\u00e3o por uma posi\u00e7\u00e3o de antiguidade no mercado, comportamento observado em diversos setores diante de potenciais mudan\u00e7as de regras. Contudo, a hist\u00f3ria demonstra que os reguladores devem evitar encampar esse tipo de ideia, j\u00e1 que, cedo ou tarde, tecnologias disruptivas destroem o excedente de arrecada\u00e7\u00e3o proveniente de uma posi\u00e7\u00e3o inicialmente vantajosa \u2013 como aconteceu com a entrada das linhas a\u00e9reas de baixo custo, ou com a concorr\u00eancia dos aplicativos de transporte com os t\u00e1xis.<\/p>\n

    Al\u00e9m do mais, onde \u00e9 permitida a explora\u00e7\u00e3o de posi\u00e7\u00f5es de mercado privilegiadas, seja por antiguidade ou por monop\u00f3lio natural, o correto \u00e9 que ao menos parte dos recursos arrecadados seja destinada ao poder p\u00fablico, para reinvestimento em outros setores, mediante o pagamento de outorga. Ainda que o modelo outorgado do TRIIP contivesse linhas deficit\u00e1rias, se a soma dos lucros econ\u00f4micos esperados \u00e9 positiva, o pagamento ao Estado pela continuidade da opera\u00e7\u00e3o das linhas seria devido, como mostram as concess\u00f5es de aeroportos em blocos. No entanto, no caso do TRIIP, nada \u00e9 repassado ao poder p\u00fablico em raz\u00e3o do usufruto do direito de explorar linhas de \u00f4nibus antigas, apenas se paga uma taxa de fiscaliza\u00e7\u00e3o \u00e0 ANTT, de valor irris\u00f3rio.<\/p>\n

    Ainda nesse quesito, h\u00e1 uma ressalva importante a fazer: o que se chama muitas vezes de \u201cconcorr\u00eancia predat\u00f3ria\u201d \u00e9 a entrada de uma empresa mais eficiente no mercado, em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 incumbente. Essa empresa consegue vender a pre\u00e7os menores porque produz a pre\u00e7os menores, n\u00e3o porque tenha uma estrat\u00e9gia de cria\u00e7\u00e3o de monop\u00f3lio. Certamente, \u00e9 uma situa\u00e7\u00e3o muito dif\u00edcil para a incumbente, que precisa cortar custos ou ganhar escala de produ\u00e7\u00e3o para sobreviver. Esse movimento, por\u00e9m, \u00e9 considerado parte das regras do jogo no sistema capitalista, j\u00e1 que se entende que a redu\u00e7\u00e3o de inefici\u00eancias \u00e9, em geral, positiva para a sociedade. \u00c9 verdade que a empresa mais eficiente pode aumentar seus pre\u00e7os ap\u00f3s a fal\u00eancia da incumbente original. Por\u00e9m, em um mercado contest\u00e1vel, h\u00e1 uma margem bastante pequena para esse tipo de comportamento, j\u00e1 que ele atrairia novos entrantes. De toda forma, socialmente, o aumento de excedente do produtor ainda \u00e9 mais positivo do que a perda por inefici\u00eancia, j\u00e1 que pode estimular a inova\u00e7\u00e3o e a entrada em outros mercados, fomentando a competi\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

    Quanto aos questionamentos de lisura nos processos de autoriza\u00e7\u00e3o, embora seja poss\u00edvel que agentes corruptos retardem alguns processos e favore\u00e7am outros, esse \u00e9 um problema de pol\u00edcia, que n\u00e3o pode ser resolvido por uma lei ou decreto. Ora, naturalmente, em uma rota que n\u00e3o estivesse sendo operada, n\u00e3o haveria nenhum mal em conceder autoriza\u00e7\u00e3o a quem quer que fosse para que se pudesse testar a viabilidade de uma entrada. O que est\u00e1 em jogo realmente \u00e9 se o \u201csistema que funciona hoje\u201d \u2013 com uma ou duas empresas, muitas vezes pertencentes ao mesmo grupo atuando em cada mercado \u2013 deve ser protegido da entrada de novos autorizados, sob o pretexto de que pode haver algum tipo de falha de governo nessa transi\u00e7\u00e3o. Acreditamos que os potenciais benef\u00edcios da op\u00e7\u00e3o por uma menor regula\u00e7\u00e3o sejam muito superiores a esses preju\u00edzos, que, de todo modo, sempre podem ser objeto de corre\u00e7\u00e3o de rumo por parte da Ag\u00eancia Reguladora.<\/p>\n

    Tamb\u00e9m \u00e9 improcedente argumentar que as autoriza\u00e7\u00f5es prejudicar\u00e3o o usu\u00e1rio, j\u00e1 que n\u00e3o h\u00e1 qualquer diferen\u00e7a nas regras de gratuidade, de seguran\u00e7a, e de regularidade e constitui\u00e7\u00e3o de pessoa jur\u00eddica entre uma empresa autorizada e outra \u2013 e as atuais operadoras devem, de toda forma, se enquadrar no novo regime, j\u00e1 que a situa\u00e7\u00e3o delas \u00e9, como vimos, bastante problem\u00e1tica.<\/p>\n

    A autoriza\u00e7\u00e3o n\u00e3o passa pelo processo de \u201cconcorr\u00eancia pelo mercado\u201d (licita\u00e7\u00e3o) justamente porque ela est\u00e1 livremente dispon\u00edvel para qualquer empresa que atenda aos crit\u00e9rios preestabelecidos e publicados de participa\u00e7\u00e3o no mercado, e que tenha interesse comercial na opera\u00e7\u00e3o. Ou seja, a concorr\u00eancia se d\u00e1 diretamente no mercado, onde as empresas t\u00eam capacidade de demonstrar diretamente suas boas pr\u00e1ticas e sua efici\u00eancia. Ao contr\u00e1rio, a concorr\u00eancia pelo mercado privilegia empresas de maior porte, bem estabelecidas e, muitas vezes, com conex\u00f5es pol\u00edticas na Ag\u00eancia Reguladora.<\/p>\n

    Quanto a poss\u00edveis alega\u00e7\u00f5es de que o modelo de autoriza\u00e7\u00e3o facilitaria conluios ou a concorr\u00eancia predat\u00f3ria, esses s\u00e3o crimes contra a ordem econ\u00f4mica, tipificados pela Lei n\u00ba 8.137, de 27 de dezembro de 1990 (art 4\u00ba, I e II).<\/p>\n

    N\u00e3o se deve, em nossa opini\u00e3o, questionar o novo modelo pelo potencial de produzir atos criminosos, j\u00e1 que existe o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorr\u00eancia para lidar justamente com esses casos. E, ainda que f\u00f4ssemos por esse caminho, \u00e9 muito mais f\u00e1cil fazer acordos para divis\u00e3o de licita\u00e7\u00e3o entre poucas empresas do que uma a\u00e7\u00e3o coordenada com todas as empresas do mercado para evitar entradas em um ambiente livre.<\/p>\n

    Neste momento em que a ANTT busca colocar em pr\u00e1tica novas regras, acreditamos que o melhor caminho seria observar o comportamento do mercado e promover as corre\u00e7\u00f5es necess\u00e1rias \u2013 seja em n\u00edvel infralegal ou legal \u2013 com base nas falhas que surgirem. Alterar mais uma vez o marco regulat\u00f3rio quando se est\u00e1 prestes a resolver o problema do mercado terminar\u00e1 por estender a situa\u00e7\u00e3o transit\u00f3ria, o que contribuir\u00e1 para perpetuar o privil\u00e9gio das empresas incumbentes, que exploram os servi\u00e7os sem nem mesmo oferecer qualquer contrapartida \u00e0 Uni\u00e3o.<\/p>\n

    Conclus\u00e3o<\/strong><\/p>\n

    O setor de transporte rodovi\u00e1rio internacional e interestadual de passageiros vem operando por mais de vinte e cinco anos sem licita\u00e7\u00e3o, por meio de autoriza\u00e7\u00f5es prec\u00e1rias.<\/p>\n

    A configura\u00e7\u00e3o atual do mercado \u00e9 p\u00e9ssima para o interesse p\u00fablico e extremamente ben\u00e9fica para os operadores incumbentes, que se encontram, neste momento, no melhor de dois mundos: possuem ao mesmo tempo a liberdade de pre\u00e7os de um sistema competitivo e a prote\u00e7\u00e3o de mercado de um sistema concedido.<\/p>\n

    O que nos parece o mais adequado \u00e0 realidade tanto do mercado quanto da capacidade regulat\u00f3ria da ANTT \u00e9 a efetiva\u00e7\u00e3o, na pr\u00e1tica, do modelo de autoriza\u00e7\u00f5es proposto desde 2014, pois nada indica que o resultado de um eventual esfor\u00e7o de realiza\u00e7\u00e3o de alguma forma de processo seletivo para entrada no mercado ser\u00e1 diferente do ocorrido na \u00faltima tentativa de licita\u00e7\u00e3o das linhas, em que foi travada uma guerra na Justi\u00e7a para procrastinar o andamento da licita\u00e7\u00e3o. Mantido o comportamento hist\u00f3rico dos agentes do setor, a situa\u00e7\u00e3o atual de privil\u00e9gio dos operadores incumbentes prosseguir\u00e1 por mais alguns anos, qui\u00e7\u00e1 d\u00e9cadas.<\/p>\n

    Embora tenha havido tentativas de regularizar a situa\u00e7\u00e3o das empresas que se encontram no mercado, ao que tudo indica, muitas dessas pr\u00f3prias empresas se disp\u00f5em a lutar para que a situa\u00e7\u00e3o atual permane\u00e7a, adotando o caminho ilustrado na obra O Leopardo<\/em>, de Giuseppi Tomasi de Lampedusa: \u201cse quisermos que tudo continue como est\u00e1, \u00e9 preciso que tudo mude\u201d.<\/p>\n

    Liliane Galv\u00e3o<\/em><\/strong> e Rodrigo Novaes <\/strong><\/em>s\u00e3o consultores do Senado Federal.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

    Este artigo tem o objetivo de contribuir para a avalia\u00e7\u00e3o do modelo legal vigente para o mercado do TRIIP. Come\u00e7a com a apresenta\u00e7\u00e3o de um relato cronol\u00f3gico da regulamenta\u00e7\u00e3o do Transporte Rodovi\u00e1rio Interestadual e Internacional de Passageiros (TRIIP). Em seguida, examina a adequa\u00e7\u00e3o do marco regulat\u00f3rio vigente para a opera\u00e7\u00e3o do TRIIP.<\/p>\n","protected":false},"author":150,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"_monsterinsights_skip_tracking":false,"_monsterinsights_sitenote_active":false,"_monsterinsights_sitenote_note":"","_monsterinsights_sitenote_category":0,"footnotes":""},"categories":[253,1,254],"tags":[137,801,802,800,700],"class_list":["post-3394","post","type-post","status-publish","format-standard","hentry","category-direito-economia","category-outros","category-a-regulacao","tag-concorrencia","tag-onibus-interestaduais","tag-regime-de-autorizacoes","tag-regulamentacao","tag-transporte"],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=\/wp\/v2\/posts\/3394","targetHints":{"allow":["GET"]}}],"collection":[{"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=\/wp\/v2\/users\/150"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=%2Fwp%2Fv2%2Fcomments&post=3394"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=\/wp\/v2\/posts\/3394\/revisions"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=%2Fwp%2Fv2%2Fmedia&parent=3394"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=%2Fwp%2Fv2%2Fcategories&post=3394"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/index.php?rest_route=%2Fwp%2Fv2%2Ftags&post=3394"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}