Al\u00e9m de preferir o confronto e governar de forma, no m\u00ednimo, ca\u00f3tica, sem entender como funcionam as institui\u00e7\u00f5es, o presidente Jair Bolsonaro tem demonstrado um alto grau de intoler\u00e2ncia. Costuma tratar agressivamente quem n\u00e3o comunga com suas vis\u00f5es de mundo e comumente se refere a l\u00edderes de esquerda, governadores e jornalistas como inimigos. Para piorar, sob seu comando funciona um gabinete do \u00f3dio, estrutura especialista em disseminar fake news contra supostos opositores em redes sociais.<\/p>\n
\u00c9 um terreno perigoso. A intoler\u00e2ncia motivou a\u00a0fatwa<\/em>\u00a0do aiatol\u00e1 Khomeini, recomendando matar Salmon Rushdie por seu livro\u00a0Versos Sat\u00e2nicos<\/em>. Tamb\u00e9m suscitou os ataques terroristas contra escritores e jornalistas na Dinamarca e, na Fran\u00e7a, determinou o brutal assass\u00ednio de cartunistas e funcion\u00e1rios do jornal sat\u00edrico\u00a0Charlie Hebdo<\/em>.<\/p>\n Essas s\u00e3o a\u00e7\u00f5es antag\u00f4nicas ao que acontece consistentemente nos \u00faltimos quatro s\u00e9culos, quando a toler\u00e2ncia cresceu em todo o mundo. Ficaram para tr\u00e1s posi\u00e7\u00f5es religiosas intransigentes, que originaram persegui\u00e7\u00f5es e guerras sangrentas na Europa. No massacre da Noite de S\u00e3o Bartolomeu (1572), por exemplo, cerca de 30\u2009000 protestantes foram mortos sob a repress\u00e3o comandada por reis cat\u00f3licos franceses. At\u00e9 mesmo numa \u00e9poca mais long\u00ednqua, da Gr\u00e9cia antiga \u00e0 Rep\u00fablica de Veneza, h\u00e1 registros de toler\u00e2ncia.<\/p>\n Segundo o cientista pol\u00edtico franc\u00eas Denis Lacorne, tolerar significava, ent\u00e3o, condicionar diferentes religi\u00f5es a se \u201caturarem\u201d em favor da paz. Em sentido moderno, assinala ele, \u201ctoler\u00e2ncia \u00e9 entendida como a aceita\u00e7\u00e3o de cren\u00e7as e pontos de vista, permitindo que distintos grupos respeitem uns aos outros e ajam coletivamente em prol do bem comum\u201d. Sua origem est\u00e1 nos s\u00e9culos XVII e XVIII com o Iluminismo, associada a valores como liberdade de express\u00e3o e de religi\u00e3o, separa\u00e7\u00e3o Igreja-\u00adEstado e igualdade perante a lei.<\/p>\n No livro\u00a0The Limits of Tolerance<\/em>\u00a0(2019), Lacorne mostrou a evolu\u00e7\u00e3o rumo a essa atitude, inicialmente sob a penetrante influ\u00eancia de fil\u00f3sofos iluministas como John Locke e Voltaire, e depois por ativistas pol\u00edticos americanos como Thomas Paine e Thomas Jefferson. No s\u00e9culo XX, a toler\u00e2ncia abrigou grupos antes marginalizados em raz\u00e3o de ra\u00e7a, etnia, identidade cultural e g\u00eanero. Em seguida, a mudan\u00e7a envolveu tamb\u00e9m o casamento homoafetivo.<\/p>\n Para Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, na obra\u00a0Como as Democracias Morrem<\/em>, a toler\u00e2ncia \u00e9 uma das regras informais da pol\u00edtica americana. A m\u00fatua toler\u00e2ncia \u2014 que se consolidou ap\u00f3s a Guerra Civil (1861-1865) \u2014 incorpora a ideia de que, \u201cse nossos rivais agem de acordo com as regras constitucionais, aceitamos que tenham direitos iguais de existir, competir pelo poder e governar\u201d. Nessa concep\u00e7\u00e3o, os opositores s\u00e3o definidos como advers\u00e1rios, n\u00e3o como inimigos. Como bem resume o escritor ingl\u00eas Sir Arthur Helps (1813-1875), \u201ca toler\u00e2ncia \u00e9 o \u00fanico teste real da civiliza\u00e7\u00e3o\u201d.<\/p>\n Se adotassem essa simples vis\u00e3o, Bolsonaro e seus fan\u00e1ticos seguidores contribuiriam para a conviv\u00eancia civilizada. Crises pol\u00edticas n\u00e3o ocorreriam com tanta frequ\u00eancia e se poderia reverter a hiberna\u00e7\u00e3o da toler\u00e2ncia.<\/p>\n