{"id":3157,"date":"2018-02-05T11:17:10","date_gmt":"2018-02-05T14:17:10","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=3157"},"modified":"2018-02-05T11:17:10","modified_gmt":"2018-02-05T14:17:10","slug":"contos-da-reforma-trabalhista","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=3157","title":{"rendered":"Contos da Reforma Trabalhista"},"content":{"rendered":"

Miranda queria comemorar a causa que ganhou: ele aproveitou a sexta-feira e chamou os colegas do escrit\u00f3rio para um bar badalado. A noite n\u00e3o foi t\u00e3o divertida: reclamou com o dono do estabelecimento, Emanuel, que o atendimento do grupo foi ruim e n\u00e3o conseguiam fazer seus pedidos porque faltavam gar\u00e7ons.<\/p>\n

Jo\u00e3o acaba de sair do ensino m\u00e9dio em uma escola p\u00fablica, sem boas perspectivas. Quer ingressar em uma faculdade, mas n\u00e3o tem dinheiro para pagar uma particular ou o cursinho para passar no Enem. Sem experi\u00eancia, n\u00e3o consegue um emprego. Na verdade, gostaria de pelo menos um bico, que o ajudasse a pagar as despesas e que tamb\u00e9m permitisse que tivesse tempo para os estudos.<\/p>\n

Emanuel gostaria de contratar mais gar\u00e7ons para o fim de semana, para atender clientes como o advogado Miranda. Por\u00e9m, a lei o impede: se contratar, tem que ser pra semana toda, dinheiro que ele n\u00e3o tem. Pensou ent\u00e3o em contratar gar\u00e7ons informalmente apenas para as sextas e s\u00e1bados. Desistiu porque da \u00faltima vez que tentou recebeu uma condena\u00e7\u00e3o da Justi\u00e7a que pesou em suas despesas.<\/p>\n

Consumidores tais quais Miranda continuar\u00e3o mal atendidos, Emanuel continuar\u00e1 sem funcion\u00e1rios para parte da semana e Jo\u00e3o continuar\u00e1 sem trabalho. Como Jo\u00e3o, um a cada quatro jovens procurando n\u00e3o t\u00eam empregos. A taxa de desemprego entre eles \u00e9 mais do que o dobro da m\u00e9dia nacional.<\/p>\n

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Renato est\u00e1 feliz: concluiu um ano no emprego com carteira assinada em uma pequena empresa e tem recebido elogios de clientes e patr\u00f5es. O trabalho finalmente deu a seguran\u00e7a que faltava para sustentar sua filha pequena sem contar s\u00f3 com o Bolsa Fam\u00edlia, e as perspectivas no emprego s\u00e3o boas.<\/p>\n

Sua chefe Dora reconhece seu esfor\u00e7o e as metas que bate na firma, e pensou em promove-lo para a fun\u00e7\u00e3o de Mauricio – um empregado mais antigo que est\u00e1 desmotivado no posto. Entretanto, como Mauricio tem 10 anos na fun\u00e7\u00e3o n\u00e3o pode mais perde-la. N\u00e3o existe lei com esta obriga\u00e7\u00e3o, mas a determina\u00e7\u00e3o de um tribunal superior. A pequena empresa n\u00e3o consegue pagar duas pessoas para o trabalho de uma, e, portanto, Renato n\u00e3o receber\u00e1 a gratifica\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Dora pensou ent\u00e3o em dar um adicional a Renato pela boa avalia\u00e7\u00e3o que recebe dos clientes. Por\u00e9m, da \u00faltima vez que tentou fazer isso recebeu uma condena\u00e7\u00e3o da Justi\u00e7a. Como Renato ocupa formalmente o mesmo cargo que outros funcion\u00e1rios, Dora poder\u00e1 ser processada pelos colegas de Renato, ou funcion\u00e1rios da outra filial, ou funcion\u00e1rios que a empresa eventualmente contratar no futuro.<\/p>\n

Renato n\u00e3o receber\u00e1 o aumento. Com o tempo, ficar\u00e1 desmotivado como Mauricio. Dora n\u00e3o vai ouvir mais elogios das fam\u00edlias que usam o estabelecimento.<\/p>\n

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Cristina finalmente terminou o curso de t\u00e9cnica em enfermagem. Foi em boa hora: se casou h\u00e1 pouco tempo e agora quer ter filhos. Cristina tentar\u00e1 uma vaga em um hospital.\u00a0 Ela disputar\u00e1 a vaga com um colega do mesmo curso, com o mesmo n\u00edvel de experi\u00eancia e qualifica\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Luiz, respons\u00e1vel pelo RH do hospital, nota a alian\u00e7a no dedo e a juventude de Cristina. Luiz sabe que se Cristina engravidar o hospital dever\u00e1 pagar o afastamento dela durante a gesta\u00e7\u00e3o e simultaneamente arcar com outra pessoa em seu lugar. A exig\u00eancia existe h\u00e1 pouco tempo para gestantes em locais com qualquer n\u00edvel de insalubridade. Luiz tamb\u00e9m sabe que Cristina tem restri\u00e7\u00f5es legais a fazer horas-extras.<\/p>\n

Esses impeditivos n\u00e3o existem para o colega do curso de Cristina, que \u00e9 homem. Ele levar\u00e1 a vaga.<\/p>\n

No Brasil, o desemprego entre mulheres \u00e9 quase 30% maior que dos homens. O grupo mais afetado pelo desemprego \u00e9 o de mulheres jovens, como Cristina.<\/p>\n

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Jos\u00e9 est\u00e1 animado. Depois de anos trabalhando no setor de constru\u00e7\u00e3o, virou um reconhecido especialista em terraplenagem em Fortaleza. Limpeza de terreno, loca\u00e7\u00e3o topogr\u00e1fica, escava\u00e7\u00e3o, corte, aterro, compacta\u00e7\u00e3o, funda\u00e7\u00e3o. Nada escapa a per\u00edcia de Jos\u00e9, que consegue fazer o servi\u00e7o de modo mais eficiente, poupando custos para a construtora e reduzindo o tempo de entrega das obras para os consumidores.<\/p>\n

Por isso, Jos\u00e9 se demitiu para criar um pequeno neg\u00f3cio especializado na tarefa. Quer que sua firma de terraplenagem preste servi\u00e7os para v\u00e1rias construtoras cearenses. Confiante, Jos\u00e9 investiu em equipamentos e contratou o primo e o cunhado para ajud\u00e1-lo.<\/p>\n

Jos\u00e9 confia no seu taco: acha que contratar seu servi\u00e7o ser\u00e1 mais vantajoso para as empresas do que manter pessoal pouco especializado ou um quadro fixo que s\u00f3 trabalha algumas vezes durante o ano.<\/p>\n

Nenhuma construtora contratar\u00e1 o servi\u00e7o de Jos\u00e9. Ele vai falir e seu neg\u00f3cio jamais existir\u00e1. Jos\u00e9, o primo e o cunhado entrar\u00e3o para a fila de desempregados no Nordeste, onde a taxa de desemprego \u00e9 quase o dobro da do Sul e mais de 20% acima da m\u00e9dia nacional.<\/p>\n

As construtoras temem ser processadas. Dr. C\u00e9sar \u00e9 um dos ju\u00edzes que proibiu construtoras de terceirizar este servi\u00e7o. Ele entende que, embora eventual, o servi\u00e7o faz parte da \u201catividade-fim\u201d dessas empresas, n\u00e3o de sua \u201catividade-meio\u201d. Embora n\u00e3o exista lei com esta proibi\u00e7\u00e3o ou distin\u00e7\u00e3o, existe uma determina\u00e7\u00e3o de um tribunal superior, que Dr. C\u00e9sar acatou.<\/p>\n

O gabinete de C\u00e9sar tem muitos processos. Para ajud\u00e1-lo, ele conta com o aux\u00edlio de assessoras como K\u00e1tia. Compete a K\u00e1tia fazer a pesquisa de jurisprud\u00eancia, aplica-la ao caso concreto e redigir os votos que C\u00e9sar assinar\u00e1.<\/p>\n

Seu trabalho, com o de outros assessores, \u00e9 supervisionado por C\u00e9sar, que assim pode dedicar seu tempo e energia a outras atividades que considera mais importantes para o trabalho eficiente do gabinete.<\/p>\n

A decis\u00e3o escrita por K\u00e1tia e assinada por Dr. C\u00e9sar diz que as construtoras n\u00e3o podem contratar com terceiros atividades que lhe s\u00e3o inerentes, que h\u00e1 subordina\u00e7\u00e3o estrutural entre as partes e ordena ent\u00e3o que desembolsem uma determinada quantia para equiparar os terceirizados.<\/p>\n

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Miranda est\u00e1 irritado. Com o escrit\u00f3rio de vento em popa, ele est\u00e1 sem internet no celular logo no meio da semana. Ligou para o call-center<\/em> da empresa de telefonia, que atende Miranda com lentid\u00e3o e n\u00e3o consegue resolver o seu problema.<\/p>\n

O call-center<\/em> \u00e9 de responsabilidade de Helena. Engenheira, ela era na verdade uma promissora profissional da \u00e1rea de mercado digital e inova\u00e7\u00e3o. Por\u00e9m, a empresa optou por transferi-la da \u00e1rea onde pesquisava novos aplicativos e big data <\/em>para que montasse uma estrutura para atender os clientes por telefone. Uma decis\u00e3o judicial obrigou a empresa a ter seu pr\u00f3prio call-center<\/em>.<\/p>\n

Com a ajuda de K\u00e1tia, Dr. C\u00e9sar foi o respons\u00e1vel pela decis\u00e3o. Nenhuma lei obriga empresas telef\u00f4nicas a terem seu pr\u00f3prio call-center<\/em>, mas C\u00e9sar entende que a atividade-fim de uma telef\u00f4ni<\/em>ca inclui falar ao telefone<\/em>, ao contr\u00e1rio de outras firmas, que podem terceirizar a tarefa.<\/p>\n

Sem poder contratar empresas especializadas para fazer o servi\u00e7o, coube a Helena gerenciar o novo setor sem profissionais com know-how<\/em> para auxili\u00e1-la. Os novos aplicativos disponibilizados aos consumidores pela equipe especializada do antigo setor de Helena v\u00e3o ter que esperar, e o atendimento da companhia por telefone demorar\u00e1 para ter a mesma efici\u00eancia.<\/p>\n

Miranda n\u00e3o vai ser atendido hoje \u2013 como outros milhares de consumidores que perder\u00e3o tempo de trabalho e conv\u00edvio familiar com a inoper\u00e2ncia do novo call-center<\/em>.<\/p>\n

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A reforma trabalhista entra em vigor em novembro. Se ela j\u00e1 valesse, Jo\u00e3o poderia ser contratado formalmente por Emanuel, o dono bar; Renato poderia pegar a fun\u00e7\u00e3o de Mauricio ou receber o adicional por produtividade; Cristina talvez fosse contratada pelo hospital em vez de seu colega homem; Jos\u00e9 poderia abrir sua empresa de terraplenagem; Helena poderia se dedicar a produzir para a sociedade aquilo que ela faz melhor; e Miranda seria um consumidor mais satisfeito.<\/p>\n

Nem todos ganham com a reforma. Mauricio ter\u00e1 que competir com trabalhadores mais jovens. Miranda teria menos para comemorar no bar porque a\u00e7\u00f5es trabalhistas n\u00e3o poder\u00e3o ser disparadas a esmo, a Justi\u00e7a do Trabalho ter\u00e1 menor poder para legislar, e a nova lei impede algumas cria\u00e7\u00f5es judiciais \u2013 como a \u201cequipara\u00e7\u00e3o em rela\u00e7\u00e3o ao paradigma remoto\u201d que impede o aumento de Renato. (Advogados e o Judici\u00e1rio trabalhista continuar\u00e3o a ter um papel essencial no combate a ilegalidades, como a de Emanuel – ali\u00e1s, a multa para empregar trabalhadores informais subiu 7 vezes.)<\/p>\n

Os personagens representam uma parcela da popula\u00e7\u00e3o que \u00e9 difusa e desorganizada, invis\u00edvel neste debate. Essa massa contrasta com a organiza\u00e7\u00e3o e articula\u00e7\u00e3o de grupos como os que representam os trabalhadores j\u00e1 inseridos no mercado de trabalho formal (sindicatos) e os que representam o status quo<\/em> da estrutura judicial.<\/p>\n

Rara exce\u00e7\u00e3o neste debate foi a campanha dos trabalhadores da Guararapes<\/a> contra o Minist\u00e9rio P\u00fablico do Trabalho – evidentemente apoiada pela empresa e por um movimento pol\u00edtico – mas que serviu para mostrar o rosto de uma massa prejudicada pela regula\u00e7\u00e3o atual do trabalho no Brasil e que \u00e9 tipicamente invis\u00edvel.<\/p>\n

Um mercado de trabalho que funcione bem \u00e9 vital para redu\u00e7\u00e3o da pobreza e das desigualdades. A reforma trabalhista n\u00e3o \u00e9 bala de prata para solucionar todos os seus problemas, mas permite a inclus\u00e3o de exclu\u00eddos com novas formas de contrata\u00e7\u00e3o; d\u00e1 seguran\u00e7a jur\u00eddica para a cria\u00e7\u00e3o de empregos formais; e estimula o crescimento da produtividade (renda). Mesmo no bom momento do mercado de trabalho na primeira metade da d\u00e9cada, a produtividade permaneceu estagnada e a informalidade muito alta, enquanto a baixa taxa m\u00e9dia de desemprego escondia os indicadores piores para jovens, mulheres, negros e estratos mais pobres da popula\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

\u00c9 fato conhecido que a pobreza no Brasil se concentra desproporcionalmente nas crian\u00e7as e jovens, que moram em fam\u00edlias com inser\u00e7\u00e3o prec\u00e1ria no mercado de trabalho e sem pessoas mais velhas (que comumente recebem benef\u00edcios da Seguridade Social). Entre os 20% mais pobres da popula\u00e7\u00e3o, o desemprego \u00e9 7 vezes maior do que entre os mais ricos, e a informalidade cerca de 4 vezes maior. S\u00e3o estas as fam\u00edlias que mais tem a ganhar. Estimativas iniciais sugerem entre 1,5 e 2,3 milh\u00f5es de novas vagas apenas por conta da reforma.<\/p>\n

\u00c9 evidente que a reforma tamb\u00e9m beneficia os empregadores, afinal o empresariado apoiou a proposta. N\u00e3o \u00e9 por benevol\u00eancia deles que os empregos formais ou a renda aumentar\u00e3o. Toda contrata\u00e7\u00e3o faz parte da busca por lucro pelo empres\u00e1rio. Cabe \u00e0 legisla\u00e7\u00e3o estabelecer regras do jogo para que, em sua procura pelo lucro, os patr\u00f5es tamb\u00e9m maximizem os n\u00edveis de emprego e sal\u00e1rios \u2013 e n\u00e3o que os prejudiquem. Afinal, a escolha da sociedade brasileira em sua Constitui\u00e7\u00e3o foi por uma economia de mercado, e a regula\u00e7\u00e3o do trabalho deve ser ciente disso.<\/p>\n

Al\u00e9m dos casos dos personagens do artigo, a reforma ataca muitas outras situa\u00e7\u00f5es em que a CLT ou o Judici\u00e1rio estabelecem condi\u00e7\u00f5es que \u00e0 primeira vista parecem favor\u00e1veis ao trabalhador, mas acabam n\u00e3o o sendo porque ignoram a premissa de um empregador que se comporta racionalmente e objetiva o lucro. O comportamento do empregador n\u00e3o deve ser idealizado.<\/p>\n

Por exemplo, decis\u00f5es bem-intencionadas de ju\u00edzes para que o tempo no transporte oferecido voluntariamente pelo empregador aos empregados seja contado como horas-extras provocam a rea\u00e7\u00e3o defensiva do empres\u00e1rio que, para preservar o lucro, desiste de fornecer o transporte. A situa\u00e7\u00e3o do trabalhador piora: perder\u00e1 mais tempo e dinheiro na rede de transporte p\u00fablica, normalmente pior.<\/p>\n

Autoriza\u00e7\u00e3o m\u00e9dica<\/p>\n

Para o Pr\u00eamio Nobel indiano Amartya Sen, autor de Desenvolvimento como Liberdade<\/em>, a pobreza \u00e9 a priva\u00e7\u00e3o de oportunidade. A reforma precisa ser melhor compreendida para vencer os esfor\u00e7os contrarreformistas de algumas entidades sindicais, da advocacia trabalhista e de parte do Judici\u00e1rio\/MP. No mesmo sentido do caso Guararapes, as pequenas f\u00e1bulas aqui contadas precisam chamar aten\u00e7\u00e3o para um imperativo: a necessidade de defender os mais pobres de seus defensores.<\/p>\n

Publicado originalmente no jornal Valor Econ\u00f4mico em 20 de outubro de 2017.<\/em><\/p>\n

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