{"id":3022,"date":"2017-08-16T12:51:42","date_gmt":"2017-08-16T15:51:42","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=3022"},"modified":"2017-08-16T12:51:42","modified_gmt":"2017-08-16T15:51:42","slug":"por-que-os-advogados-estao-entre-os-mais-afetados-pela-reforma-da-previdencia","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=3022","title":{"rendered":"Por que os advogados est\u00e3o entre os mais afetados pela reforma da Previd\u00eancia?"},"content":{"rendered":"

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgou uma contundente carta contr\u00e1ria \u00e0 reforma da Previd\u00eancia, que seria \u201cfundamentada em premissas equivocadas<\/em>\u201d e conteria \u201cin\u00fameros abusos contra diretos sociais<\/em>\u201d. A esta carta, seguiram diversas outras manifesta\u00e7\u00f5es da Ordem. \u00c9 pertinente fazer uma provoca\u00e7\u00e3o. Embora muitas categorias se sintam prejudicadas pelas novas regras de aposentadoria, como policiais e professores, h\u00e1 uma categoria do qual pouco se fala e que \u00e9 vigorosamente afetada pela reforma: os advogados.<\/p>\n

A ambiciosa proposta do governo de reforma da Previd\u00eancia tem o potencial para reduzir sobremaneira a judicializa\u00e7\u00e3o no INSS, o maior litigante do Brasil. No in\u00edcio desta d\u00e9cada, havia tantos processos do INSS na Justi\u00e7a quanto paraguaios no Paraguai: cerca de 6 milh\u00f5es. Conhecendo as particularidades do sistema judicial brasileiro, n\u00e3o \u00e9 poss\u00edvel descartar que, em n\u00famero de causas, o INSS seja at\u00e9 mesmo um dos maiores litigantes do mundo, se n\u00e3o o maior.<\/p>\n

Essa grande quantidade de a\u00e7\u00f5es movimenta milhares de advogados. Das dezenas de bilh\u00f5es de reais que anualmente o INSS despende por decis\u00f5es judiciais, pelo menos alguns milh\u00f5es revertem em honor\u00e1rios para o conjunto desses advogados. V\u00e1rias dessas causas est\u00e3o amea\u00e7adas com a reforma da Previd\u00eancia. \u00c9 evidente que a entidade de classe que representa esses advogados deve se pronunciar veemente contra mudan\u00e7as que os prejudiquem.<\/p>\n

Uma busca r\u00e1pida na Internet d\u00e1 a dimens\u00e3o do mercado: uma empresa vende mais de 1.200 modelos de peti\u00e7\u00f5es para advogados previdenci\u00e1rios. Em um jornal, um especialista propagandeia a \u00e1rea como cada vez mais promissora por conta do envelhecimento populacional. Em um site especializado, proclama-se, com algum exagero, que a advocacia previdenci\u00e1ria \u00e9 a \u00e1rea mais lucrativa de 2016 e que \u201co leque de atividades \u00e9 t\u00e3o grande quanto lucrativo\u201d. Entendamos ent\u00e3o como a reforma da Previd\u00eancia pode mudar esta realidade.<\/p>\n

Aposentadoria rural<\/em><\/strong><\/p>\n

De cada 100 aposentadorias rurais, 30 s\u00e3o concedidas judicialmente. De maneira geral, esse benef\u00edcio n\u00e3o exige contribui\u00e7\u00e3o. O advogado atua principalmente para comprovar que um segurado trabalhou por pelo menos 15 anos no campo. A reforma altera este desenho para que esta comprova\u00e7\u00e3o seja feita periodicamente mediante o pagamento de uma contribui\u00e7\u00e3o, e n\u00e3o no momento de pedir o benef\u00edcio com a ajuda de um advogado. A demanda por advogados tamb\u00e9m tende a se reduzir uma vez que as exig\u00eancias de idade e tempo de contribui\u00e7\u00e3o convergiriam para as da aposentadoria urbana, deixando o benef\u00edcio menos atraente para trabalhadores urbanos.<\/p>\n

Aposentadoria especial<\/em><\/strong><\/p>\n

De cada 100 aposentadorias especiais, 70 s\u00e3o concedidas judicialmente. Esta \u00e9 uma modalidade similar \u00e0 aposentadoria por tempo de contribui\u00e7\u00e3o, sem idade m\u00ednima, que exige apenas 25, 20 ou 15 anos de contribui\u00e7\u00e3o, para quem esteve exposto a agentes nocivos no trabalho. Al\u00e9m da possibilidade de se aposentar antecipadamente, o benef\u00edcio \u00e9 vantajoso por ser integral, sem a aplica\u00e7\u00e3o do fator previdenci\u00e1rio.<\/p>\n

O advogado atua principalmente para comprovar o tempo de exposi\u00e7\u00e3o a esses agentes. A reforma afetar\u00e1 duplamente a judicializa\u00e7\u00e3o deste benef\u00edcio: restringe as formas de comprova\u00e7\u00e3o e reduz significativamente a demanda por ele ao torn\u00e1-lo menos vantajoso. Em rela\u00e7\u00e3o ao primeiro ponto, a reforma veda a comprova\u00e7\u00e3o apenas pelo pertencimento a uma categoria profissional. Em rela\u00e7\u00e3o ao segundo ponto, cria uma idade m\u00ednima de 55 anos, altera o tempo m\u00ednimo de contribui\u00e7\u00e3o para 20 anos e o valor do benef\u00edcio, que ser\u00e1 proporcional ao tempo de contribui\u00e7\u00e3o. Novamente, \u00e9 evidente que assim menos pessoas recorrer\u00e3o a advogados, e as que recorrerem ter\u00e3o menor chance de sucesso.<\/p>\n

Aposentadoria por invalidez<\/em><\/strong><\/p>\n

De cada 100 aposentadorias rurais por invalidez, 70 \u00a0tamb\u00e9m s\u00e3o concedidas judicialmente. Em geral, o advogado questiona per\u00edcias do INSS que negam o benef\u00edcio ou busca expandir a lista de doen\u00e7as que d\u00e3o direito ao benef\u00edcio independentemente de contribui\u00e7\u00e3o, bem como tenta contornar a lentid\u00e3o da fila das per\u00edcias. Medida Provis\u00f3ria anterior \u00e0 reforma j\u00e1 obrigava os ju\u00edzes a estimarem o prazo para cessa\u00e7\u00e3o do aux\u00edlio-doen\u00e7a, eliminando uma das vantagens do pleito judicial deste benef\u00edcio (o recebimento por tempo indefinido).<\/p>\n

A aposentadoria por invalidez tamb\u00e9m n\u00e3o prev\u00ea a aplica\u00e7\u00e3o do fator previdenci\u00e1rio (benef\u00edcio integral), e inclusive permite um adicional de 25% para o benefici\u00e1rio que necessitar de cuidador, ainda que o valor ultrapasse o teto de benef\u00edcios \u2013 o que s\u00f3 existe nesta modalidade de aposentadoria. A reforma tamb\u00e9m altera o valor deste benef\u00edcio, que passaria a ser proporcional ao tempo de contribui\u00e7\u00e3o. A demanda por advogados tende a diminuir se esta modalidade de aposentadoria pagar um valor menor do que o segurado receberia se trabalhasse mais alguns anos, se aposentando pela modalidade comum.<\/p>\n

A princ\u00edpio, a afirma\u00e7\u00e3o anterior pode parecer por demais fria: afinal, as pessoas procuram este benef\u00edcio porque est\u00e3o incapacitadas para o trabalho, e n\u00e3o porque o montante a ser recebido \u00e9 maior. Entretanto, as situa\u00e7\u00f5es destes segurados s\u00e3o muito heterog\u00eaneas, e os incentivos da legisla\u00e7\u00e3o desempenham sim um papel importante na demanda pela aposentadoria por invalidez. Ilustrativamente, ap\u00f3s a 2\u00aa reforma da Previd\u00eancia, quando a aposentadoria por invalidez do servidor p\u00fablico deixou de ser integral e passou a ser proporcional ao tempo de contribui\u00e7\u00e3o, a sua participa\u00e7\u00e3o no total de aposentadorias concedidas caiu de 30% em 2004 para apenas 4% em 2016. Em que pese as diferen\u00e7as na realidade do servidor e do trabalhador do INSS, \u00e9 prov\u00e1vel que a demanda administrativa e judicial pelo benef\u00edcio se reduza com a reforma.<\/p>\n

Benef\u00edcio de Presta\u00e7\u00e3o Continuada<\/em><\/strong><\/p>\n

De cada 100 Benef\u00edcios de Presta\u00e7\u00e3o Continuada (BPC) concedidos, 25 s\u00e3o concedidos judicialmente. Formalmente assistencial, mas materialmente previdenci\u00e1rio, este \u00e9 um benef\u00edcio pago \u00e0 pessoa com defici\u00eancia e ao idoso em situa\u00e7\u00e3o de comprovada pobreza. Cabe ao advogado batalhar pelo benef\u00edcio para a fam\u00edlia que n\u00e3o cumpra os requisitos legais de pobreza, pleiteando, por exemplo, que outros benef\u00edcios assistenciais e previdenci\u00e1rios sejam exclu\u00eddos do c\u00e1lculo da renda familiar ou que se desconsidere a parcela desta renda gasta com medicamentos. Desconhecem-se a\u00e7\u00f5es judiciais semelhantes para o Bolsa Fam\u00edlia, apesar da linha de corte mais r\u00edgida, provavelmente porque o benef\u00edcio \u00e9 muit\u00edssimo menor.<\/p>\n

A reforma coloca no texto constitucional a previs\u00e3o de que a renda familiar seja considerada na totalidade, e que lei disponha sobre outros requisitos do BPC.\u00a0 Boa parte das a\u00e7\u00f5es que hoje s\u00e3o bem sucedidas podem n\u00e3o mais o ser. Adicionalmente, a reforma inicialmente previa que o BPC teria um valor menor do que o das aposentadorias, o que pode tamb\u00e9m desestimular a procura deste benef\u00edcio, inclusive pela via judicial.<\/p>\n

Desaposentadoria<\/em><\/strong><\/p>\n

Por fim, a reforma \u00e9 a p\u00e1 de cal na desaposentadoria, talvez a grande causa dos escrit\u00f3rios de advogados previdenci\u00e1rios. A desaposentadoria, que n\u00e3o foi reconhecida pelo Supremo em 2016, \u00e9 a tese de que aposentados que continuam trabalhando e contribuindo para a Previd\u00eancia merecem o rec\u00e1lculo dos benef\u00edcios como se jamais tivessem se aposentado. Ao afetar principalmente os segurados que podem se aposentar por tempo de contribui\u00e7\u00e3o, de maior renda, tratava-se de a\u00e7\u00f5es de valor maior.\u00a0 Ocorre que a desaposentadoria era corol\u00e1rio da pr\u00f3pria aus\u00eancia de idade m\u00ednima, que gerava uma grande quantidade de aposentados-contribuintes. Com a idade m\u00ednima, este pleito n\u00e3o faz mais sentido.<\/p>\n

Se por um lado uma ampla reforma como a proposta pelo governo pode gerar in\u00fameros questionamentos jur\u00eddicos, fica claro que a atividade das bancas previdenci\u00e1rias n\u00e3o ser\u00e1 mais como hoje se a reforma passar. Este \u00e9 o poss\u00edvel conflito de interesse que a OAB possui, como representante desses advogados, e que n\u00e3o \u00e9 explicitado quando se posiciona de maneira t\u00e3o contundente contra a reforma da Previd\u00eancia.<\/p>\n

Em um interessante caso de lobby<\/em> destes profissionais, uma emenda substitutiva \u00e0 reforma foi apresentada com o timbre de entidades de advogados previdenci\u00e1rios que contam com o apoio da OAB. A proposta chega ao extremo de proibir o Congresso Nacional de fazer reformas por 20 anos, mesmo por Emenda Constitucional, entre outros dispositivos que causam perplexidade por terem sido avalizados por operadores do Direito.<\/p>\n

\u00c9 importante ressaltar que isso n\u00e3o significa que n\u00e3o exista por parte da Ordem uma genu\u00edna apreens\u00e3o quanto \u00e0s mudan\u00e7as propostas, at\u00e9 porque o discurso da OAB \u00e9 compartilhado por v\u00e1rias outras entidades da sociedade civil. Entretanto, \u00e9 justamente para a sociedade que precisa ficar claro que, neste estrat\u00e9gico debate nacional, os objetivos da OAB podem n\u00e3o ser os mesmos do conjunto da sociedade. Na reforma da Previd\u00eancia, a atua\u00e7\u00e3o da Ordem \u00e9 marcadamente diferente da sua reconhecida atua\u00e7\u00e3o em outros momentos da vida nacional, como as Diretas J\u00e1 ou o impeachment <\/em>do Presidente Collor. Como respons\u00e1vel pela defesa da classe dos advogados, prejudicados pela reforma, o prov\u00e1vel conflito de interesse est\u00e1 colocado.<\/p>\n

Ademais, \u00e9 oportuno salientar que uma reforma da Previd\u00eancia pode ser defendida justamente com os argumentos contr\u00e1rios a ela colocados por membros da advocacia nacional nas \u00faltimas semanas. O princ\u00edpio da prote\u00e7\u00e3o \u00e0 confian\u00e7a<\/em> deveria nos inspirar a garantir um sistema previdenci\u00e1rio sustent\u00e1vel, que n\u00e3o venha no futuro a cortar aposentadorias como no Rio, em Portugal ou na Gr\u00e9cia, rasgando promessas feitas a idosos em um momento em que eles mais nada podem fazer. J\u00e1 o princ\u00edpio da proibi\u00e7\u00e3o de retrocesso social<\/em> deveria nos motivar a olhar com mais carinho para as pol\u00edticas p\u00fablicas que ser\u00e3o comprimidas com o crescimento de uma despesa que ocupa 57% do or\u00e7amento federal e passar\u00e1 a ocupar 80% em cerca de 10 anos. E o retrocesso social na sa\u00fade, no saneamento b\u00e1sico, na educa\u00e7\u00e3o?<\/p>\n

Como garantir o direito ao emprego com os empreendimentos sufocados pelos juros estratosf\u00e9ricos decorrentes do crescimento acelerado da despesa p\u00fablica? Como garantir o direito \u00e0 vida em uma sociedade em que o Estado n\u00e3o tem dinheiro para pagar policiais ou m\u00e9dicos na quantidade necess\u00e1ria? \u00c9 preciso ficar claro que v\u00e1rios dos direitos individuais e sociais previstos pela nossa Constitui\u00e7\u00e3o n\u00e3o poder\u00e3o ser efetivados em um Estado sem recursos e em uma economia no ch\u00e3o, e n\u00e3o podem ser judicializados como os direitos previdenci\u00e1rios podem ser. N\u00e3o existe a\u00e7\u00e3o judicial fact\u00edvel para garantir um emprego, a constru\u00e7\u00e3o de uma estrada ou o patrulhamento de uma rua.<\/p>\n

Os advogados previdenci\u00e1rios prestam um servi\u00e7o essencial no pa\u00eds, garantindo amparo a fam\u00edlias necessitadas quando esbarram na lentid\u00e3o da burocracia ou no desconhecimento do legislador. Muitas vezes n\u00e3o s\u00e3o somente uma op\u00e7\u00e3o, mas a \u00faltima<\/em> op\u00e7\u00e3o.\u00a0 Todavia, o Estatuto da Advocacia \u00e9 claro em seu art. 44 que a OAB tem a finalidade n\u00e3o s\u00f3 de defender a Constitui\u00e7\u00e3o, os direitos humanos e a justi\u00e7a social<\/em> (inciso I), como tamb\u00e9m de promover a representa\u00e7\u00e3o e a defesa dos advogados em toda a Rep\u00fablica Federativa do Brasil<\/em> (inciso II). No debate da reforma da Previd\u00eancia, o melhor para o pa\u00eds \u00e9 que a entidade que ele tanto admira e confia admita o conflito entre os dois incisos.<\/p>\n

Este texto foi originalmente publicado no <\/em>JOTA<\/em><\/a> em 6 de abril de 2017, sob o t\u00edtulo \u201cReforma da Previd\u00eancia e conflito de interesse da OAB\u201d.<\/em><\/p>\n

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