{"id":3000,"date":"2017-06-26T12:58:03","date_gmt":"2017-06-26T15:58:03","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=3000"},"modified":"2017-06-26T12:58:03","modified_gmt":"2017-06-26T15:58:03","slug":"o-que-a-mulher-que-mais-sofre-com-a-tripla-jornada-ganha-da-previdencia","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=3000","title":{"rendered":"O que a mulher que mais sofre com a tripla jornada ganha da Previd\u00eancia?"},"content":{"rendered":"
Deodorina chegou atrasada ao trabalho. A patroa, Dona Carmen, n\u00e3o deu aten\u00e7\u00e3o: estava vidrada na TV, atenta ao jornal. Reclamou da retirada de direitos na Previd\u00eancia, mas percebeu que a reforma n\u00e3o a afetava tanto. Carmen ter\u00e1 de adiar em 6 meses os seus planos de se aposentar ano que vem, aos 52 anos.<\/p>\n
Servidora p\u00fablica, Carmen receber\u00e1 para todo o sempre o maior sal\u00e1rio da sua vida, ainda que n\u00e3o tenha feito contribui\u00e7\u00f5es no montante correspondente, e ter\u00e1 aumentos reais sempre que os funcion\u00e1rios da ativa tiverem1<\/sup>. Ficou com pena de seu filho, tamb\u00e9m funcion\u00e1rio p\u00fablico, porque ele n\u00e3o vai receber nada disso e ainda se aposentar\u00e1 mais tarde que a m\u00e3e: vai trabalhar at\u00e9 morrer, diz ela. Carmen acha um retrocesso, e se queixa da reforma: \u201cimagina como fica o pobre\u201d.<\/p>\n Carmen defende ser um absurdo a aposentadoria para homens e mulheres na mesma idade, porque sabe que os compromissos da casa e com o filho sempre sobraram mais para ela do que para o marido. \u00a0Felizmente, Carmen teve condi\u00e7\u00f5es financeiras para continuar trabalhando, 30 anos seguidos, sem precisar largar o emprego para cuidar da crian\u00e7a. Usou parte do seu sal\u00e1rio para pagar uma creche, e depois sempre p\u00f4de contar com a ajuda de mulheres como Deodorina, sua empregada.<\/p>\n Deodorina tamb\u00e9m completar\u00e1 52 anos, mas n\u00e3o vai se aposentar ano que vem. Tampouco nos seguintes. Embora trabalhe desde a adolesc\u00eancia, n\u00e3o vai conseguir juntar os 15 anos de contribui\u00e7\u00e3o que o INSS exige para uma aposentadoria. Durante as \u00faltimas d\u00e9cadas, conseguiu por poucos anos ter a carteira assinada. Por um per\u00edodo ficou desempregada, por outro precisou ficar em casa cuidando dos seus cinco filhos.<\/p>\n Deodorina quase sempre buscou emprego. Sem diploma, praticamente s\u00f3 conseguia fazer di\u00e1rias, como na casa de Dona Carmen. Foi dif\u00edcil, mas ela conseguiu criar as cinco crian\u00e7as. Deodorina n\u00e3o sabe o que significa tripla jornada, mas n\u00e3o vai receber nenhuma compensa\u00e7\u00e3o da Previd\u00eancia pelas suas d\u00e9cadas como profissional, m\u00e3e e dona de casa. Resta a ela pedir um benef\u00edcio assistencial, na mesma idade de seu marido, aos 65 anos.<\/p>\n Carmen recebeu uma liga\u00e7\u00e3o do sindicato da sua carreira para uma manifesta\u00e7\u00e3o. Ficou animada e ir\u00e1 protestar com seu filho contra a perda de direitos, contra retrocessos sociais e pela dignidade da pessoa humana.\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0\u00a0 Na passeata falar\u00e3o de isonomia, paridade e integralidade.<\/p>\n Deodorina n\u00e3o pertence a nenhuma carreira, e, portanto, a nenhum sindicato. No protesto que Carmen vai participar, ningu\u00e9m ir\u00e1 reclamar que o benef\u00edcio com que Deodorina contava ficou mais dif\u00edcil de se obter. Ela tem a mesma idade de Dona Carmen e trabalhou at\u00e9 por mais tempo do que ela, mas por ser \u201cinformal\u201d n\u00e3o ter\u00e1 a mesma regra de transi\u00e7\u00e3o e n\u00e3o estar\u00e1 isenta de mudan\u00e7as2<\/sup>.<\/p>\n Deodorina teme ter que chegar atrasada de novo no servi\u00e7o amanh\u00e3. Ela levava duas horas pra chegar ao trabalho, mas a obra do BRT que iria melhorar o seu deslocamento est\u00e1 parada, e at\u00e9 piorou o tr\u00e2nsito. O governo estadual, que mal consegue pagar os sal\u00e1rios em dia, diz n\u00e3o ter dinheiro para terminar a obra. Carmen diz n\u00e3o haver d\u00e9ficit na Previd\u00eancia.<\/p>\n Para piorar, Deodorina ainda ter\u00e1 de arranjar tempo para levar o neto na UPA. Desde que o menino se mudou para a sua casa, ap\u00f3s o pai ser demitido no ano passado, a crian\u00e7a passou a ter diarreias e febres frequentes. Deodorina acha que tem a ver com o esgoto, mas precisa perguntar ao doutor. Ela n\u00e3o ir\u00e1 encontrar pediatra amanh\u00e3, nem um m\u00e9dico pra falar sobre as dores que vem sentindo. Carmen diz que o governo desvincula o dinheiro da Previd\u00eancia para pagar outras coisas.<\/p>\n Foi o filho de Deodorina, desempregado, que pediu a ela pra levar o garoto no m\u00e9dico, porque tem uma entrevista de emprego amanh\u00e3. A empresa vai gostar dele, mas perceber\u00e1 que os juros no banco est\u00e3o proibitivos e desistir\u00e1 de pegar um empr\u00e9stimo para sua expans\u00e3o. O banco considera mais conveniente aplicar seu dinheiro em t\u00edtulos do Tesouro do que no neg\u00f3cio desta empresa. Carmen diz que em vez de fazer reforma o governo deveria \u00e9 gastar mais, para aquecer o consumo.<\/p>\n Com o filho e o neto em casa, Deodorina est\u00e1 com dificuldade de fazer a feira do m\u00eas. Ela n\u00e3o sabe, mas parte do seu sal\u00e1rio gasto no supermercado servir\u00e1 para pagar \u201ccontribui\u00e7\u00f5es sociais\u201d. Este dinheiro n\u00e3o pode ir para a obra do seu BRT, mas poderia ir para o saneamento da sua rua ou para contratar m\u00e9dicos para a UPA. Carmen n\u00e3o sabe, mas quando protestar contra a reforma dizendo n\u00e3o haver d\u00e9ficit na Previd\u00eancia porque \u201ca seguridade precisa ser analisada como um todo\u201d estar\u00e1 dizendo que sua empregada deve gastar mais no supermercado para pagar a sua aposentadoria.<\/p>\n Deodorina e Carmen s\u00e3o apenas personagens ilustrativos dos conflitos embutidos na discuss\u00e3o sobre a reforma da Previd\u00eancia. A reforma tem potencial para reduzir as desigualdades de acesso aos benef\u00edcios entre os mais ricos e os mais pobres. Os mais pobres atualmente financiam um sistema previdenci\u00e1rio a que tem acesso limitado, enquanto sofrem com o \u00f4nus do baixo investimento p\u00fablico (como em mobilidade ou saneamento), da carga tribut\u00e1ria crescente (que incide sobre as compras do m\u00eas) e dos juros altos (que desemprega os jovens).\u00a0 Sem reforma, este \u00f4nus tende a aumentar.<\/p>\n Estes personagens ilustram ainda a miopia em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 discuss\u00e3o sobre as mulheres na reforma da Previd\u00eancia.\u00a0 S\u00e3o as mulheres mais pobres quem t\u00eam maior taxa de fecundidade, e \u00e9 evidente que maior n\u00famero de filhos torna a parte dom\u00e9stica da jornada ainda mais dif\u00edcil.\u00a0 \u00c9 evidente tamb\u00e9m que a mulher mais pobre, menos escolarizada, tem tamb\u00e9m menos acesso a emprego formal, bem como que a mulher com mais filhos ficar\u00e1 mais ausente do mercado de trabalho.<\/p>\n Esta mulher mais pobre tem menos recursos financeiros e \u00e9 mais dependente dos servi\u00e7os p\u00fablicos, enfrentando dificuldade de colocar seus filhos em creches ou em educa\u00e7\u00e3o integral. Ela tamb\u00e9m tende a morar mais longe do trabalho e a perder mais tempo com deslocamentos na sua tripla jornada. Se esta mulher n\u00e3o completa 15 anos de contribui\u00e7\u00f5es \u00e0 Previd\u00eancia, ela n\u00e3o se beneficia do diferencial de 5 anos na idade. Se n\u00e3o completar 30 anos, n\u00e3o se beneficia do diferencial no tempo de contribui\u00e7\u00e3o.<\/p>\n Neste sentido, o foco da preocupa\u00e7\u00e3o com a mulher neste debate n\u00e3o deveria ser o fim das diferen\u00e7as nas regras entre homens e mulheres, tema mais caro \u00e0s mulheres mais bem posicionadas na distribui\u00e7\u00e3o de renda. Na aposentadoria por tempo de contribui\u00e7\u00e3o, apesar do diferencial de 5 anos para mulheres, 67% dos benef\u00edcios concedidos s\u00e3o para homens.<\/p>\n O que \u00e9 de fato relevante para as que mais sofrem com a tripla jornada, merecendo maior discuss\u00e3o, \u00e9 o aumento do tempo m\u00ednimo de contribui\u00e7\u00e3o, de 15 para 25 anos, e, especialmente, da idade m\u00ednima para o Benef\u00edcio de Presta\u00e7\u00e3o Continuada, de 65 para 68 anos. No Benef\u00edcio de Presta\u00e7\u00e3o Continuada, apesar de n\u00e3o haver diferencial de g\u00eanero, 58% dos benef\u00edcios concedidos s\u00e3o para mulheres.<\/p>\n De resto, a reforma \u00e9 essencial para viabilizar a solv\u00eancia do Estado e permitir uma disponibilidade maior de recursos para pol\u00edticas voltadas \u00e0 trabalhadora pobre e sua fam\u00edlia, como investimentos em saneamento b\u00e1sico, creches, educa\u00e7\u00e3o b\u00e1sica e nas transfer\u00eancias de renda voltadas a este grupo, como o Bolsa Fam\u00edlia. Ela \u00e9 essencial tamb\u00e9m para que a carga tribut\u00e1ria e os juros altos n\u00e3o estrangulem o crescimento da economia, facilitando a incorpora\u00e7\u00e3o no mercado de trabalho das fam\u00edlias hoje mais exclu\u00eddas dele, justamente as mais pobres.<\/p>\n Carmen \u00e9 uma boa pessoa, e acredita que tamb\u00e9m est\u00e1 defendendo os mais pobres. A pauta de seu sindicato, por\u00e9m, n\u00e3o levanta os aspectos sens\u00edveis da atual proposta da reforma que realmente podem prejudicar pessoas como Deodorina. Se a agenda das corpora\u00e7\u00f5es continuar predominando neste debate, ser\u00e1 preciso proteger os mais pobres de seus defensores.<\/p>\n Vers\u00e3o deste texto foi originalmente publicada no NEXO Jornal, em 28 de fevereiro de 2017.<\/em><\/p>\n ______________<\/p>\n 1<\/sup> Conforme o texto original da PEC n\u00ba 287, de 2016, mas n\u00e3o conforme o Substitutivo aprovado na Comiss\u00e3o Especial da C\u00e2mara dos Deputados. Todavia, a imprensa tem noticiado que a situa\u00e7\u00e3o de pessoas como Carmen deve continuar como est\u00e1 no texto (direito \u00e0 integralidade e \u00e0 paridade).<\/p>\n 2<\/sup> Vide nota anterior.<\/p>\n <\/p>\n Download<\/strong><\/p>\n