{"id":2917,"date":"2016-11-28T11:40:33","date_gmt":"2016-11-28T14:40:33","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=2917"},"modified":"2016-11-28T11:40:33","modified_gmt":"2016-11-28T14:40:33","slug":"morte-severina-e-mitos-sobre-a-reforma-da-previdencia","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=2917","title":{"rendered":"Morte severina e mitos sobre a reforma da Previd\u00eancia"},"content":{"rendered":"
\u201cMorremos de morte igual, mesma morte severina: que \u00e9 a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia\u201d. A morte severina do poema de Jo\u00e3o Cabral de Melo Neto se reflete na expectativa de vida ao nascer. Este indicador \u00e9 afetado por mazelas nacionais como a mortalidade infantil e a morte de jovens por causas externas (homic\u00eddios, tr\u00e2nsito). Grosso modo, a expectativa de vida ao nascer est\u00e1 relacionada com a idade m\u00e9dia com que as pessoas falecem no pa\u00eds.<\/p>\n
Este dado vem sendo equivocadamente usado para justificar que uma reforma da Previd\u00eancia faria as pessoas \u201ctrabalharem at\u00e9 morrer\u201d. Seria injusto estabelecer uma idade m\u00ednima, por exemplo, de 65 anos, se em alguns Estados a expectativa de vida \u00e9 de 66, 68 anos.<\/p>\n
Na verdade, o indicador relevante nesta discuss\u00e3o n\u00e3o \u00e9 a expectativa de vida no nascimento, mas a expectativa de sobrevida na idade de aposentadoria. \u00c9 por conta dela que se diz que estamos vivendo muito mais, o que pressionaria a Previd\u00eancia. A expectativa de sobrevida em idades mais altas n\u00e3o \u00e9 afetada pela morte severina.<\/p>\n
Nas idades m\u00e9dias em que se d\u00e3o a aposentadoria por tempo de contribui\u00e7\u00e3o no Brasil, 55 anos para homens e 52 anos para mulheres, a expectativa de sobrevida \u00e9 respectivamente de 24 e 30 anos. Assim, a expectativa de vida \u00e9 de 79 anos para homens e 82 anos para mulheres, bem acima da expectativa de vida ao nascer (72 para eles, 79 para elas), e dos 66 anos do meme <\/em>\u201ctrabalhar at\u00e9 morrer\u201d que circula nas redes.<\/p>\n Figura 1 – \u201cTrabalhar at\u00e9 morrer\u201d<\/em><\/p>\n De fato, mesmo com ganhos expressivos na redu\u00e7\u00e3o da mortalidade infantil, a expectativa de vida dos homens ao nascer cresceu nas \u00faltimas d\u00e9cadas menos da metade do que cresceu a expectativa de sobrevida dos mais velhos. Junto com a veloz redu\u00e7\u00e3o da taxa de natalidade no pa\u00eds, \u00e9 isso que pressiona a Previd\u00eancia e seu desequil\u00edbrio atuarial (medido em trilh\u00f5es).<\/p>\n A expectativa de sobrevida em idades mais altas n\u00e3o \u00e9 perfeitamente correlacionada com a renda de um pa\u00eds. Parte da fal\u00eancia da previd\u00eancia na Gr\u00e9cia se explica pela alta expectativa de vida dos idosos: uma das maiores da Uni\u00e3o Europeia, apesar de o pa\u00eds ser o patinho feio do grupo. No mesmo sentido, a OCDE estima que nas pr\u00f3ximas d\u00e9cadas a sobrevida das brasileiras ser\u00e1 maior do que as das americanas ou dinamarquesas, que moram em pa\u00edses muito mais ricos.<\/p>\n O uso da expectativa de vida ao nascer no debate previdenci\u00e1rio, al\u00e9m de incorreto, \u00e9 inc\u00f4modo: usa-se a mortalidade infantil para justificar transfer\u00eancias para grupos de faixas et\u00e1rias mais avan\u00e7adas.\u00a0 Esta n\u00e3o \u00e9 uma quest\u00e3o trivial, j\u00e1 que a pobreza no Brasil est\u00e1 desproporcionalmente concentrada nas crian\u00e7as.<\/p>\n A discuss\u00e3o da distribui\u00e7\u00e3o de renda se relaciona tamb\u00e9m a outro mito da reforma da Previd\u00eancia: o de que uma idade m\u00ednima para a aposentadoria por tempo de contribui\u00e7\u00e3o prejudica os mais pobres, que ingressam cedo no mercado de trabalho. Diversos estudos tem mostrado que os trabalhadores mais pobres n\u00e3o usufruem da aposentadoria por tempo de contribui\u00e7\u00e3o. (tema discutido anteriormente no blog<\/a>)<\/p>\n A exig\u00eancia de 35\/30 anos de tempo de contribui\u00e7\u00e3o desta modalidade de aposentadoria n\u00e3o pode ser cumprida por uma ampla parcela da popula\u00e7\u00e3o, que tem uma inser\u00e7\u00e3o prec\u00e1ria no mercado de trabalho, alternando em sua vida per\u00edodos de desemprego, informalidade e carteira assinada. Na verdade, a maioria da popula\u00e7\u00e3o recorre a outro tipo de aposentadoria, a por idade, que requer 15 anos de carteira assinada, mas idade m\u00ednima de 65 anos para homens e 60 para mulheres.<\/p>\n Outra parcela da popula\u00e7\u00e3o, com menos de 15 anos de contribui\u00e7\u00e3o, s\u00f3 pode recorrer a um benef\u00edcio assistencial de um sal\u00e1rio m\u00ednimo, com idade m\u00ednima de 65 anos at\u00e9 para mulheres. Assim, a idade m\u00ednima para a aposentadoria por tempo de contribui\u00e7\u00e3o n\u00e3o pode prejudicar os mais pobres se para eles a idade m\u00ednima sempre existiu.<\/p>\n N\u00e3o s\u00f3 a idade m\u00ednima para esta modalidade de aposentadoria afeta mais os com maior escolaridade como as regi\u00f5es mais industrializadas do pa\u00eds. No Norte e no Nordeste, onde se trabalharia \u201cat\u00e9 morrer\u201d, a quantidade de aposentadorias por tempo de contribui\u00e7\u00e3o representa apenas 7% e 9% do total de benef\u00edcios pagos (metade do que \u00e9 no Sudeste, 19%).<\/p>\n Para v\u00e1rias regi\u00f5es e ocupa\u00e7\u00f5es do pa\u00eds, outros pagamentos s\u00e3o mais relevantes, como a aposentadoria rural. \u00c9 neste e em outros benef\u00edcios associados ao sal\u00e1rio m\u00ednimo que deveria se concentrar a preocupa\u00e7\u00e3o acerca dos efeitos da reforma da Previd\u00eancia na desigualdade de renda.<\/p>\n Outro tema que merece ser visto com ceticismo \u00e9 a tese de que a Previd\u00eancia \u00e9 superavit\u00e1ria, e de que seu d\u00e9ficit seria uma farsa<\/a>. H\u00e1 v\u00e1rias quest\u00f5es leg\u00edtimas no debate sobre o que deve ser receita ou despesa do INSS, mas dizer que nosso problema previdenci\u00e1rio \u00e9 resolvido com mudan\u00e7as na contabilidade seria mito, ou para usar o termo do momento, algo que se aproxima de uma \u201cp\u00f3s-verdade<\/a>\u201d. O problema concreto \u00e9 o crescimento da despesa, que decorre de um problema f\u00edsico, demogr\u00e1fico.<\/p>\n Disputas em torno da contabilidade do sistema s\u00e3o naturais e ocorreram em outros pa\u00edses, mas n\u00e3o podem tirar o foco da quest\u00e3o principal. Ilustrativamente, at\u00e9 os militares n\u00e3o aceitam a contabilidade do seu regime, defendendo que o d\u00e9ficit deles \u00e9 de metade do que vinha sendo entendido. Por sua vez, o TCU n\u00e3o aceita a tese de super\u00e1vit no INSS.<\/p>\n Do lado da receita, deve ser lembrado que a Desvincula\u00e7\u00e3o de Receitas da Uni\u00e3o (DRU) historicamente teve como perdedores Estados e Munic\u00edpios, n\u00e3o a Previd\u00eancia. A Uni\u00e3o precisava de dinheiro: se aumentasse impostos, deveria dividi-los com os entes. O jeitinho, de sucessivos governos, foi aumentar contribui\u00e7\u00f5es e desvincul\u00e1-las via DRU. Este hist\u00f3rico destoa da \u201cteoria da conspira\u00e7\u00e3o\u201d de que o governo desvia recursos da Previd\u00eancia para forjar um d\u00e9ficit e corte de direitos. Tamb\u00e9m precisa ficar claro que trazer recursos da DRU para expandir a Previd\u00eancia significa retir\u00e1-los de despesas que j\u00e1 ser\u00e3o significativamente comprimidas com o crescimento da despesa previdenci\u00e1ria diante do teto de gastos a vigorar com uma eventual aprova\u00e7\u00e3o da PEC n\u00ba 55, de 2016, ora em tramita\u00e7\u00e3o no Senado.<\/p>\n Do lado da despesa, deve ser esclarecido que mesmo a clientela urbana do INSS apresentou d\u00e9ficits at\u00e9 2009, com previs\u00e3o de voltar a apresent\u00e1-los de 2016 em diante1<\/sup>. Este \u00e9 um ponto importante para os que defendem que, sem os rurais, a Previd\u00eancia \u00e9 sempre superavit\u00e1ria.<\/p>\n Nos pr\u00f3ximos meses o Brasil passar\u00e1 por um amplo debate sobre sua Previd\u00eancia. Pelo seu tamanho, ela \u00e9 uma grande conquista e um grande desafio. Discutiremos se financi\u00e1-la nos moldes atuais \u00e9 insustent\u00e1vel ou se mudar suas regras \u00e9 retroceder em direitos conquistados: o ideal \u00e9 partir para este debate livre de cren\u00e7as equivocadas.<\/p>\n Vers\u00e3o resumida deste texto foi publicada no jornal O Estado de S\u00e3o Paulo, edi\u00e7\u00e3o de 08\/11\/\/2016.<\/em><\/p>\n ____________<\/p>\n 1<\/sup> O super\u00e1vit temporariamente registrado teve rela\u00e7\u00e3o com maior formaliza\u00e7\u00e3o da economia no per\u00edodo, e n\u00e3o com um equil\u00edbrio atuarial estrutural do regime de previd\u00eancia.<\/p>\n <\/p>\n Download:<\/strong><\/p>\n<\/p>\n