{"id":2910,"date":"2016-11-09T11:04:28","date_gmt":"2016-11-09T14:04:28","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=2910"},"modified":"2016-11-09T11:04:28","modified_gmt":"2016-11-09T14:04:28","slug":"acordos-de-liberalizacao-do-comercio-de-servicos-de-fato-liberalizam-o-mercado","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=2910","title":{"rendered":"Acordos de liberaliza\u00e7\u00e3o do com\u00e9rcio de servi\u00e7os de fato liberalizam o mercado?"},"content":{"rendered":"

1. A import\u00e2ncia crescente do setor de servi\u00e7os<\/strong><\/p>\n

A import\u00e2ncia do setor de servi\u00e7os na participa\u00e7\u00e3o do PIB e na cria\u00e7\u00e3o de emprego aumenta de acordo com o n\u00edvel de desenvolvimento dos pa\u00edses. Nas \u00faltimas tr\u00eas d\u00e9cadas, a participa\u00e7\u00e3o do setor de servi\u00e7os no PIB nos pa\u00edses da OCDE aumentou de 58% para 75% do PIB [FRANCOIS e HOEKMAN (2010)]. No mundo, o setor de servi\u00e7os corresponde a aproximadamente 60% da produ\u00e7\u00e3o global.<\/p>\n

No Brasil, a atividade econ\u00f4mica, os investimentos e a cria\u00e7\u00e3o de empregos acontecem primeiramente e em especial no setor de servi\u00e7os.O setor de servi\u00e7os no Brasil corresponde a 71% do PIB (dados de 2015), valor maior queo de outras economias emergentes, como China (47%) e \u00cdndia (51%). Na Coreia do Sul, em que o PIB per capita \u00e9 3,8x maior que o brasileiro, o setor de servi\u00e7os corresponde a 59% do PIB.<\/p>\n

A preponder\u00e2ncia dos servi\u00e7os na economia foi influenciada pela crescente integra\u00e7\u00e3o de bens e servi\u00e7os na produ\u00e7\u00e3o e nas vendas da ind\u00fastria manufatureira, uma tend\u00eancia global que ganhou o nome de \u201cservicification<\/em>\u201d. Al\u00e9m da exporta\u00e7\u00e3o direta de servi\u00e7os, o setor de servi\u00e7os contribui para as exporta\u00e7\u00f5es indiretamente, como insumos utilizados na produ\u00e7\u00e3o de bens. Working paper<\/em> da OCDE sobre o setor de servi\u00e7os no Brasil avalia o com\u00e9rcio em termos de valor agregado (Trade in Value Added \u2013 TiVA) e revela que os servi\u00e7os representam aproximadamente 49% do conte\u00fado das exporta\u00e7\u00f5es brasileiras de bens (commodities e manufaturas). Esse valor \u00e9 similar ao de demais pa\u00edses da Am\u00e9rica Latina, maior que o da China e da \u00cdndia (aprox. 30%), e um pouco abaixo da m\u00e9dia da OCDE (54%).<\/p>\n

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2. Acordos internacionais de com\u00e9rcio de servi\u00e7os e liberaliza\u00e7\u00e3o<\/strong><\/p>\n

A Rodada Uruguai, que culminou na cria\u00e7\u00e3o da Organiza\u00e7\u00e3o Mundial do Com\u00e9rcio (OMC), em 1995, foi tamb\u00e9m a rodada que criou o Acordo Geral sobre Com\u00e9rcio de Servi\u00e7os (da sigla em ingl\u00eas, GATS). O GATS foi inspirado pelos mesmos objetivos da sua contraparte do com\u00e9rcio de bens, o Acordo Geral sobre Tarifas e Com\u00e9rcio (GATT): a cria\u00e7\u00e3o de um sistema de regras previs\u00edvel e confi\u00e1vel para o com\u00e9rcio internacional, um tratamento justo e equitativo para todos os participantes e a promo\u00e7\u00e3o do com\u00e9rcio e do desenvolvimento econ\u00f4mico por meio da progressiva liberaliza\u00e7\u00e3o comercial.<\/p>\n

O GATS estabeleceu muitas bases sobre as quais hoje s\u00e3o negociados os acordos internacionais de com\u00e9rcio de servi\u00e7os: a classifica\u00e7\u00e3o em 4 modos de presta\u00e7\u00e3o; o reconhecimento de 12 categorias de setores e 155 subsetores; e as cl\u00e1usulas de n\u00e3o discrimina\u00e7\u00e3o: tratamento nacional1<\/sup> e acesso a mercados2<\/sup>. No entanto, mais de 25 anos ap\u00f3s a sua assinatura, muitos importantes desdobramentos ainda est\u00e3o pendentes. As negocia\u00e7\u00f5es durante a Rodada Uruguai foram apenas um primeiro passo para a agenda do GATS. A negocia\u00e7\u00e3o teve \u00eaxito para o estabelecimento da estrutura e dos princ\u00edpios do Acordo. Os efeitos liberalizantes, no entanto, foram modestos.<\/p>\n

Mas, dada a import\u00e2ncia atual do setor de servi\u00e7os nas economias, por que o GATS ainda est\u00e1 incompleto? Por que a OMC obteve sucesso no GATT e ainda encontra dificuldades em avan\u00e7ar nas rodadas de negocia\u00e7\u00e3o de servi\u00e7os, 25 anos ap\u00f3s a primeira negocia\u00e7\u00e3o do GATS? Enquanto o setor de servi\u00e7os corresponde atualmente a mais de 60% da produ\u00e7\u00e3o e emprego global, esse setor corresponde a n\u00e3o mais que 20% do com\u00e9rcio internacional total.<\/p>\n

A explica\u00e7\u00e3o reside em uma caracter\u00edstica intr\u00ednseca dos servi\u00e7os: enquanto o com\u00e9rcio de bens se trata do com\u00e9rcio do resultado do processo de produ\u00e7\u00e3o, o com\u00e9rcio de servi\u00e7os \u00e9 sobre o com\u00e9rcio dos fatores de produ\u00e7\u00e3o. Na f\u00f3rmula cl\u00e1ssica de produ\u00e7\u00e3o, Y = F (K, L), o setor de servi\u00e7os est\u00e1 refletido na m\u00e3o de obra e no capital. Nesse sentido, enquanto na negocia\u00e7\u00e3o de acordos de com\u00e9rcio de bens a moeda de troca s\u00e3o tarifas de importa\u00e7\u00e3o, em negocia\u00e7\u00f5es de acordos de com\u00e9rcio de servi\u00e7os, a moeda de troca \u00e9 a regula\u00e7\u00e3o dom\u00e9stica. Qualquer mudan\u00e7a de marco regulat\u00f3rio precisa ser intensamente analisada pelos \u00f3rg\u00e3os reguladores, pelos legisladores e pelos prestadores de servi\u00e7os impactados. \u00c9 nesse sentido que a maior parte dos pa\u00edses que fizeram importantes liberaliza\u00e7\u00f5es no seu setor de servi\u00e7os o fizeram unilateralmente3<\/sup>.<\/p>\n

Para ilustrar o argumento acima com dados, Hoekman (1996) fez um esfor\u00e7o emp\u00edrico e calculou \u00edndices que representariam a liberaliza\u00e7\u00e3o de fato de pa\u00edses da Uni\u00e3o Europeia no GATS. A sua conclus\u00e3o foi de que a cobertura de setores nos compromissos inscritos de Tratamento Nacional e Acesso a Mercados foi limitada e que, o maior benef\u00edcio da listagem teria sido o \u201ctravamento\u201d (lock-in<\/em>) do marco regulat\u00f3rio daqueles pa\u00edses no momento de assinatura do acordo (1995). Em outras palavras, a Rodada Uruguai n\u00e3o entregou nenhuma liberaliza\u00e7\u00e3o de fato do setor de servi\u00e7os4<\/sup>.<\/p>\n

O gr\u00e1fico abaixo apresenta o percentual de subsetores em que houve compromissos inscritos nas listas de oferta do GATS pelos pa\u00edses que originalmente assinaram o acordo. Pode-se perceber que na maior parte dos setores houve inscri\u00e7\u00e3o de compromissos em menos da metade do total de subsetores existentes.<\/p>\n

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Diante da pouca (ou nenhuma) liberaliza\u00e7\u00e3o obtida no GATS e da paralisa\u00e7\u00e3o da Rodada Doha, os pa\u00edses, em especial os desenvolvidos, t\u00eam aumentado o n\u00edvel de import\u00e2ncia de acordos regionais em suas pol\u00edticas comerciais. De acordo com a OMC5<\/sup>, em 2011 j\u00e1 haviam sido notificados 87 acordos regionais com compromissos em servi\u00e7os. Ademais, h\u00e1 os que ainda n\u00e3o est\u00e3o em vigor, dentre os quais merecem destaque o TPP e a Alian\u00e7a do Pac\u00edfico.<\/p>\n

Muitos desses acordos regionais trazem inova\u00e7\u00f5es nos cap\u00edtulos do setor de servi\u00e7os, com vistas a trazer solu\u00e7\u00f5es para quest\u00f5es ainda pendentes na OMC. Uma dessas inova\u00e7\u00f5es \u00e9 o novo formato de inscri\u00e7\u00e3o de compromissos: a ado\u00e7\u00e3o deofertas com listasnegativas, ao inv\u00e9s de positivas.<\/p>\n

Na inscri\u00e7\u00e3o em listas positivas, m\u00e9todo adotado no GATS, os pa\u00edses assumem compromissos de tratamento nacional e acesso a mercados apenas nos setores e modos que decidirem inscrever. Os setores em que o pa\u00eds n\u00e3o inscrever compromissos ficam automaticamente livres para regulamenta\u00e7\u00e3o do governo sem reservas. Em uma negocia\u00e7\u00e3o de listas negativas, m\u00e9todo adotado por grande parte dos acordos regionais negociados recentemente, os pa\u00edses exaurem em suas listas as medidas desconformes e reservas com os compromissos assumidos de tratamento nacional e acesso a mercados. Ou seja: quaisquer medidas existentes no marco regulat\u00f3rio dom\u00e9stico que apresentem discrimina\u00e7\u00e3o ao prestador de servi\u00e7o estrangeiro, representando um desrespeito aos compromissos assumidos, devem ser inscritos na lista de oferta desse pa\u00eds.<\/p>\n

Diante dessa diferen\u00e7a de inscri\u00e7\u00e3o de compromissos, h\u00e1 quem argumente que a ado\u00e7\u00e3o de listas negativas em um acordo de servi\u00e7os significaria, portanto, maior liberaliza\u00e7\u00e3o, de maneira que esse seria o m\u00e9todo prefer\u00edvel de negocia\u00e7\u00e3o. A verdade, no entanto, \u00e9 que nenhum dos dois m\u00e9todos apresenta liberaliza\u00e7\u00e3o de fato do setor de servi\u00e7os. Os pa\u00edses, tanto em listas negativas quanto em listas positivas, apenas consolidam o seu marco regulat\u00f3rio atual.<\/p>\n

A grande diferen\u00e7a entre o m\u00e9todo de inscri\u00e7\u00e3o das duas listas reside na seguran\u00e7a jur\u00eddica e na transpar\u00eancia que decorrem de uma lista negativa. A lista negativa \u00e9 mais transparente, pois cada pa\u00eds deve exaurir suas medidas desconformes com os compromissos assumidos, enquanto na lista positiva cada pa\u00eds faz os compromissos que considerar pertinentes. Dessa maneira, um prestador de servi\u00e7os estrangeiro ao ler a oferta de um pa\u00eds que inscreveu seus compromissos em uma lista positiva pode ainda ter d\u00favidas com rela\u00e7\u00e3o \u00e0 regulamenta\u00e7\u00e3o de um determinado setor. Ao ler uma lista negativa, no entanto, esse mesmo prestador de servi\u00e7os estrangeiro tem conhecimento de todas as medidas desconformes daquele pa\u00eds com rela\u00e7\u00e3o aos compromissos assumido em um determinado acordo.<\/p>\n

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3. Considera\u00e7\u00f5es finais <\/strong><\/p>\n

Bem, se acordos de com\u00e9rcio de servi\u00e7os n\u00e3o liberalizam o com\u00e9rcio de servi\u00e7os, por que negoci\u00e1-los? H\u00e1 dois benef\u00edcios imediatos que decorrem da assinatura de um acordo de servi\u00e7os. O primeiro \u00e9 o travamento6<\/sup> (lock-in<\/em>) do marco regulat\u00f3rio daquele pa\u00eds. Isto quer dizer que, a partir do momento da assinatura do acordo, aquele pa\u00eds n\u00e3o poder\u00e1 adotar medidas mais discriminat\u00f3rias com prestadores de servi\u00e7os estrangeiros do que aquelas j\u00e1 existentes e inscritas em suas listas. O segundo \u00e9 o j\u00e1 mencionado ganho de transpar\u00eancia e seguran\u00e7a jur\u00eddica que decorre da ado\u00e7\u00e3o de listas negativas.A consolida\u00e7\u00e3o do marco regulat\u00f3rio dos pa\u00edses em uma lista padronizada em muito facilita a vida de prestadores de servi\u00e7os e investidores.<\/p>\n

Um terceiro benef\u00edcio que decorre da negocia\u00e7\u00e3o de um acordo de servi\u00e7os adv\u00e9m da ado\u00e7\u00e3o de um \u201cmarco geral\u201d, que estabelece padr\u00f5es internacionais de conduta para os participantes, al\u00e9m de servir como um \u201cguarda-chuva\u201d para potenciais acordos posteriores de coopera\u00e7\u00e3o, facilita\u00e7\u00e3o, reconhecimento m\u00fatuo, etc.<\/p>\n

E, por fim, \u00e9 uma oportunidade para o pr\u00f3prio governo, em contato com seus \u00f3rg\u00e3os reguladores e setor privado, rever todo o seu marco regulat\u00f3rio dom\u00e9stico. Afinal, por que n\u00e3o?<\/p>\n

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Refer\u00eancias <\/strong><\/p>\n

Francois, Joseph, and Bernard Hoekman. “Services trade and policy.”Journal of Economic Literature<\/em>\u00a048.3 (2010): 642-692.<\/p>\n

Hoekman, Bernard. “Assessing the general agreement on trade in services.”The Uruguay Round and the developing countries<\/em>\u00a0996.1 (1996): 89-90.<\/p>\n

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1<\/sup> Tratamento nacional: um compromisso em tratamento nacional implica que um membro n\u00e3o pode adotar medidas discriminat\u00f3rias que beneficiem prestadores de servi\u00e7os dom\u00e9sticos frente aos estrangeiros.<\/p>\n

2<\/sup> Acesso a mercados: o compromisso de acesso a mercados est\u00e1 relacionado a um compromisso de n\u00e3o criar certos tipos de medidas que dificultem ou impe\u00e7am o acesso de um prestador de servi\u00e7o estrangeiro ao mercado dom\u00e9stico. Os tipos de medidas que os pa\u00edses se comprometem a n\u00e3o adotar est\u00e3o listadas no inciso 2 do Artigo XVI do GATS.<\/p>\n

3<\/sup> H\u00e1 exce\u00e7\u00f5es, como por exemplo a Costa Rica. Maiores detalhes desse caso podem ficar para um pr\u00f3ximo post.<\/p>\n

4<\/sup> Aqui \u00e9 importante deixar clara a exce\u00e7\u00e3o de pa\u00edses que aderiram tardiamente a OMC (latecomers<\/em>). Esses pa\u00edses tiveram que assumir compromissos determinados pelos pa\u00edses integrantes, de maneira que de fato fizeram compromissos de liberaliza\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

5<\/sup>https:\/\/www.wto.org\/english\/tratop_e\/serv_e\/dataset_e\/dataset_e.htm<\/a><\/p>\n

6<\/sup> Essa cl\u00e1usula \u00e9 chamada de standstill<\/em>. H\u00e1 outra inova\u00e7\u00e3o introduzida por alguns acordos regionais chamada de cl\u00e1usula ratchet<\/em> (ou cl\u00e1usula cremalheira). Com essa inova\u00e7\u00e3o, toda nova medida mais liberalizante adotada pelo pa\u00eds \u00e9 automaticamente travada e o pa\u00eds n\u00e3o pode adotar medidas mais discriminat\u00f3rias que ela. H\u00e1 ainda muita cr\u00edtica a essa cl\u00e1usula, em especial por parte dos pa\u00edses em desenvolvimento, que afirmam n\u00e3o ter um marco regulat\u00f3rio maduro o suficiente para esse mecanismo.<\/p>\n

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