{"id":2786,"date":"2016-06-06T10:05:46","date_gmt":"2016-06-06T13:05:46","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=2786"},"modified":"2016-06-06T10:05:46","modified_gmt":"2016-06-06T13:05:46","slug":"farinha-pouca-meu-pirao-primeiro-por-que-algumas-carreiras-sao-mais-privilegiadas-que-outras-no-setor-publico","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=2786","title":{"rendered":"Farinha pouca, meu pir\u00e3o primeiro: por que algumas carreiras s\u00e3o mais privilegiadas que outras no setor p\u00fablico?"},"content":{"rendered":"
A aprova\u00e7\u00e3o do aumento para diversas carreiras do funcionalismo na C\u00e2mara dos Deputados revela como o presidencialismo de coaliz\u00e3o brasileiro torna-se ref\u00e9m dos grupos de interesses. \u201cEsse aumento j\u00e1 est\u00e1 precificado no Or\u00e7amento, ent\u00e3o, optamos por dar logo e tirar esse assunto da frente. Quanto mais demora, mais chance o governo estar\u00e1 dando para os servidores se mobilizarem por novo reajuste\u201d \u2014 disse um interlocutor palaciano.<\/p>\n
Na semana passada, a C\u00e2mara dos Deputados aprovou 14 projetos de lei reajustando as remunera\u00e7\u00f5es de diversas carreiras do funcionalismo federal dos tr\u00eas Poderes e mais o Minist\u00e9rio P\u00fablico (\u201co quarto poder\u201d) \u2013 a \u00edntegra deles pode ser consultada aqui<\/a>.<\/p>\n Al\u00e9m do impacto bilion\u00e1rio num contexto em que o pa\u00eds enfrenta grave crise fiscal \u2013 seriam R$ 64 bilh\u00f5es at\u00e9 2019 \u2013, essa medida exp\u00f5e a forma pela qual o sistema pol\u00edtico brasileiro torna-se ref\u00e9m de grupos de interesses \u2013 como algumas carreiras de servidores p\u00fablicos.<\/p>\n A literatura especializada sobre o presidencialismo de coaliz\u00e3o brasileiro considera que nosso pa\u00eds encontrou uma maneira razoavelmente est\u00e1vel de funcionar politicamente: atribuindo grandes poderes ao Executivo (medidas provis\u00f3rias, controle sobre o or\u00e7amento, milhares de cargos em comiss\u00e3o, centenas de estatais) e aos l\u00edderes partid\u00e1rios no Congresso, a maioria dos Presidentes conseguiu aprovar seus projetos de maneira previs\u00edvel e com alta disciplina partid\u00e1ria (a refer\u00eancia b\u00e1sica de leitura aqui s\u00e3o os textos de Fernando Limongi e Argelina Cheibub).<\/p>\n Quando esse sistema n\u00e3o funcionou, os Presidentes (Collor e Dilma) sucumbiram ao jogo pol\u00edtico e ca\u00edram via impeachment. Embora esse modelo seja muito convincente para analisar a governabilidade no Brasil, meu argumento \u00e9 que o presidencialismo de coaliz\u00e3o brasileiro facilita a a\u00e7\u00e3o dos grupos de interesses, e o futuro aumento dos rendimentos dessas carreiras ilustra bem como isso funciona.<\/p>\n Nos idos de 1965, o cientista pol\u00edtico e economista Mancur Olson publicou um cl\u00e1ssico que revolucionou a an\u00e1lise dos grupos sociais na condi\u00e7\u00e3o de atores pol\u00edticos. Simplificando radicalmente as v\u00e1rias conclus\u00f5es do seu livro \u201cA L\u00f3gica da A\u00e7\u00e3o Coletiva\u201d, grupos com interesses econ\u00f4micos bem definidos, com grande capacidade de organiza\u00e7\u00e3o e relativamente poucos membros t\u00eam mais chances de garantir vantagens do Estado \u00e0 custa daqueles que n\u00e3o conseguem se organizar para evit\u00e1-las (e a raz\u00e3o para isso vem do famoso problema do carona: \u201cse eu n\u00e3o vou ganhar quase nada diretamente com isso, vou me envolver pra qu\u00ea?\u201d).<\/p>\n No caso do reajuste do funcionalismo, temos claramente essa situa\u00e7\u00e3o: sindicatos de algumas carreiras com maior poder de mobiliza\u00e7\u00e3o e membros de Poderes com grande poder de press\u00e3o (em tempos de Lava Jato, n\u00e3o \u00e9 recomend\u00e1vel desagradar ju\u00edzes e procuradores) est\u00e3o em vias de conseguir reajustes que v\u00e3o deteriorar ainda mais a situa\u00e7\u00e3o fiscal do pa\u00eds. E essas benesses ser\u00e3o custeadas por toda a sociedade, por meio de cortes em outros programas governamentais, aumento de impostos, infla\u00e7\u00e3o, aumento de juros (quando o lado fiscal n\u00e3o ajuda, a dose do rem\u00e9dio monet\u00e1rio tem que ser mais forte e mais amarga) ou \u201ctudo isto ao mesmo tempo agora\u201d.<\/p>\n Olson n\u00e3o chegou a viver em tempos de populariza\u00e7\u00e3o da internet e das redes sociais (ele faleceu em 1998), mas sua prescri\u00e7\u00e3o continua atual: o m\u00e1ximo de rea\u00e7\u00e3o que essa injusti\u00e7a ter\u00e1 da coletividade dos brasileiros ser\u00e1 algumas reportagens na imprensa e alguns posts indignados no facebook e no twitter, e o reajuste ser\u00e1 sacramentado pelo Senado nos pr\u00f3ximos dias e sancionado pelo novo Presidente da Rep\u00fablica.<\/p>\n A a\u00e7\u00e3o de grupos de interesses no Brasil \u2013 de servidores p\u00fablicos a grandes empresas, de ruralistas a igrejas evang\u00e9licas \u2013 \u00e9 facilitada pela forma como nosso presidencialismo de coaliz\u00e3o funciona. Num sistema pol\u00edtico em que o Presidente depende de uma base muito ampla e heterog\u00eanea de partidos com fraqu\u00edssima identidade ideol\u00f3gica e parlamentares escolhidos em elei\u00e7\u00f5es em que se depende sobremaneira de doa\u00e7\u00f5es de campanha e\/ou exposi\u00e7\u00e3o na m\u00eddia ou a grupos espec\u00edficos (sindicatos, igrejas, movimentos sociais, etc.), as medidas de interesse do governo s\u00e3o geralmente aprovadas, como preveem os modelos da Ci\u00eancia Pol\u00edtica brasileira, mas a um custo muito alto. E neste pre\u00e7o s\u00e3o inclu\u00eddos os privil\u00e9gios a quem consegue ter acesso aos canais certos \u2013 ao pr\u00f3prio Presidente da Rep\u00fablica ou a seus Ministros, aos l\u00edderes partid\u00e1rios, aos presidentes de comiss\u00f5es, aos relatores dos projetos, etc.<\/p>\n A frase que abre este texto ilustra bem como esses assuntos s\u00e3o tratados. O aumento dos servidores \u00e9 visto pelas autoridades simplesmente como um empecilho a ser retirado da pauta para o Presidente da Rep\u00fablica aprovar as principais medidas de seu programa de governo: mesmo que esse reajuste custe bilh\u00f5es aos contribuintes, mesmo que ele afete a vida de milh\u00f5es que sofrer\u00e3o com cortes em programas ou projetos sociais, mesmo que ele sinalize para o mercado que o governo n\u00e3o se preocupa com a sustentabilidade fiscal.<\/p>\n As carreiras a serem beneficiadas pelos aumentos valem-se de seu acesso privilegiado ao Poder para pressionar por benef\u00edcios mesmo sem, muitas vezes, fazer por merec\u00ea-los (a partir desta parte eu estou correndo o s\u00e9rio risco de me indispor com v\u00e1rios amigos e a jogar contra o meu pr\u00f3prio interesse particular, uma vez que fa\u00e7o parte de uma das carreiras a serem beneficiadas pelo aumento).<\/p>\n Os Ministros do Supremo Tribunal Federal argumentam que o aumento de seus subs\u00eddios para R$ 39.293,32 a partir de 01\/01\/2017 n\u00e3o cobre a infla\u00e7\u00e3o dos \u00faltimos anos. Eles t\u00eam raz\u00e3o: desde 01\/01\/2005 a infla\u00e7\u00e3o foi de 93%, enquanto seus rendimentos subir\u00e3o \u201capenas\u201d 82,75%. Mas \u00e9 preciso tratar a quest\u00e3o com um pouco mais de cuidado.<\/p>\n \u00c9 claro que os onze Ministros do STF, por serem a c\u00fapula do sistema judici\u00e1rio brasileiro, t\u00eam uma elevad\u00edssima responsabilidade, e devem receber muito bem. Por isso, n\u00e3o questiono que recebam quase R$ 40 mil mensais. O problema \u00e9 que o estabelecimento dessa remunera\u00e7\u00e3o como teto para o funcionalismo instigou diversas carreiras a pressionar para serem inclu\u00eddas nesse sistema e, assim, conseguir reajustes autom\u00e1ticos a reboque.<\/p>\n Atualmente, o reajuste dos subs\u00eddios dos ministros do STF se espraia para todos os membros do Poder Judici\u00e1rio, do Minist\u00e9rio P\u00fablico e da Defensoria P\u00fablica \u2013 al\u00e9m de outros agentes p\u00fablicos eleitos. Mas todo sindicado de carreiras tem como uma de suas plataformas pol\u00edticas principais incluir suas atividades no rol daquelas \u201cfun\u00e7\u00f5es essenciais\u201d da Constitui\u00e7\u00e3o e, assim, cristalizar seus ganhos como uma percentagem (90,25% \u00e9 o n\u00famero m\u00e1gico!) dos pagamentos feitos aos Ministros do STF.<\/p>\n Nesse cen\u00e1rio, mesmo que essas carreiras do funcionalismo com maior poder de organiza\u00e7\u00e3o e press\u00e3o sobre os postos-chave de nosso presidencialismo de coaliz\u00e3o ainda n\u00e3o tenham alcan\u00e7ado sucesso nessa campanha, os ganhos da c\u00fapula do Judici\u00e1rio tornaram-se o par\u00e2metro para as negocia\u00e7\u00f5es salariais \u2013 e eles v\u00eam obtendo reajustes significativos nas duas \u00faltimas d\u00e9cadas. Os gr\u00e1ficos abaixo apresentam dados extra\u00eddos do Boletim<\/a> Estat\u00edstico de Pessoal do Minist\u00e9rio do Planejamento com os sal\u00e1rios iniciais e m\u00e1ximos de algumas dessas carreiras \u201ct\u00edpicas de Estado\u201d e sua evolu\u00e7\u00e3o em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 infla\u00e7\u00e3o.<\/p>\n Como se v\u00ea pelos gr\u00e1ficos, a quest\u00e3o de fundo colocada pelo reajuste dos servidores n\u00e3o \u00e9 de varia\u00e7\u00e3o (ou seja, recomposi\u00e7\u00e3o de infla\u00e7\u00e3o), mas sim de n\u00edvel. Com o sistema posto no Brasil, os sal\u00e1rios m\u00e9dios de uma parcela n\u00e3o desprez\u00edvel dos funcion\u00e1rios p\u00fablicos federais, com grande poder de organiza\u00e7\u00e3o e press\u00e3o, alcan\u00e7aram patamares fora da realidade \u2013 ainda mais uma realidade marcada por grave crise fiscal, desemprego e recess\u00e3o que assolam a popula\u00e7\u00e3o brasileira.<\/p>\n Esse quadro torna-se ainda mais grave quando se verifica que servidores com sal\u00e1rios m\u00e9dios em torno de R$ 20 mil, ou ju\u00edzes, procuradores e defensores p\u00fablicos ganhando R$ 30 mil mensais (fora os 60 dias de f\u00e9rias anuais, aux\u00edlio moradia e outros privil\u00e9gios) s\u00e3o amparados por estabilidade no emprego \u2013 n\u00e3o \u00e9 formal, mas acaba sendo de fato \u2013 e n\u00e3o est\u00e3o sujeitos a sistemas efetivos de avalia\u00e7\u00e3o de resultados.<\/p>\n Corrigir essa distor\u00e7\u00e3o \u00e9 tarefa herc\u00falea: seriam necess\u00e1rios pelo menos rever o sistema de remunera\u00e7\u00e3o e avalia\u00e7\u00e3o de pessoal, criar institui\u00e7\u00f5es para avaliar os resultados do gasto p\u00fablico e reformar o sistema or\u00e7ament\u00e1rio (afinal, simplesmente aumentar a meta do d\u00e9ficit n\u00e3o deve ser a solu\u00e7\u00e3o).<\/p>\n O problema \u00e9 que governos fracos s\u00e3o especialmente vulner\u00e1veis a comportamentos oportunistas de grupos de interesses bem organizados. Como a responsabilidade fiscal ainda n\u00e3o se tornou um valor inquestion\u00e1vel na sociedade brasileira, o mais prov\u00e1vel que ela continue ref\u00e9m dos grupos de interesses \u2013 e os servidores p\u00fablicos s\u00e3o apenas um deles.<\/p>\n <\/p>\n O presente texto foi publicado originalmente no Blog \u201cLeis e N\u00fameros\u201d, no link https:\/\/leisenumeros.com.br\/<\/a><\/em><\/p>\n <\/p>\n Download:<\/strong><\/p>\n<\/p>\n
<\/p>\n
<\/p>\n