{"id":2659,"date":"2015-11-03T10:13:53","date_gmt":"2015-11-03T13:13:53","guid":{"rendered":"http:\/\/www.brasil-economia-governo.org.br\/?p=2659"},"modified":"2015-11-03T10:13:53","modified_gmt":"2015-11-03T13:13:53","slug":"o-negacionismo-do-deficit-da-previdencia","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.brasil-economia-governo.com.br\/?p=2659","title":{"rendered":"O negacionismo do d\u00e9ficit da previd\u00eancia"},"content":{"rendered":"
Segundo o dicion\u00e1rio, \u201cnegacionismo\u201d \u00e9 a a\u00e7\u00e3o de negar uma realidade que pode ser verificada empiricamente, mas que constitui uma verdade inc\u00f4moda.\u00a0 N\u00e3o \u00e9 novidade que a Previd\u00eancia \u00e9 um dos principais itens por tr\u00e1s do grave desequil\u00edbrio fiscal e que continuar\u00e1 a agrav\u00e1-lo \u00e0 medida que o envelhecimento da popula\u00e7\u00e3o se acentuar. Desnudado pela queda de receitas, o d\u00e9ficit deve subir 70% neste ano e mais 40% em 2016, chegando a incr\u00edveis R$ 120 bilh\u00f5es, ou 2,7% do PIB. Essa propor\u00e7\u00e3o seria 3 vezes maior do que os 0,9% do n\u00e3o t\u00e3o distante ano de 2013. Apesar da situa\u00e7\u00e3o dram\u00e1tica e da necessidade de enfrent\u00e1-la, reformas esbarram em um argumento t\u00e3o popular quanto inacredit\u00e1vel: o de que n\u00e3o existe d\u00e9ficit. Entender o argumento da chamada \u201cfal\u00e1cia do d\u00e9ficit\u201d e aprender a rebat\u00ea-lo se faz essencial neste momento.<\/p>\n
Propagada por advogados previdenci\u00e1rios, sindicalistas e pol\u00edticos, essa antiga tese foi \u00a0a principal conclus\u00e3o da 1\u00aa audi\u00eancia realizada em 2 de setembro \u00a0no Congresso para instruir a MP 676, que cria a f\u00f3rmula 85\/95 m\u00f3vel. As diversas e inventivas raz\u00f5es dos \u201cnegacionistas\u201d t\u00eam um fio condutor comum: a contabilidade do INSS deveria incluir outras receitas e excluir certas despesas. \u00c9 no argumento do \u201cmito do d\u00e9ficit\u201d que a contabilidade criativa encontra a Previd\u00eancia.<\/p>\n
Do lado do gasto, defende-se que as aposentadorias rurais (R$ 54 bilh\u00f5es at\u00e9 julho) sejam exclu\u00eddas da conta do INSS, e pagas de outra forma pelo governo. A justificativa da exclus\u00e3o \u00e9 que esse aposentado n\u00e3o contribui diretamente para o sistema, mas recebe dele. Tirar o rural do INSS reduz a despesa sem piorar a receita: n\u00e3o haveria mais d\u00e9ficit. \u00a0Trata-se de ideia an\u00e1loga a de sugerir, para um plano de sa\u00fade em dificuldade, que n\u00e3o se leve em conta os pacientes com c\u00e2ncer. O INSS constitui um seguro social, e o sinistro\u2015 como o c\u00e2ncer do plano de sa\u00fade ou uma batida em um seguro de carro \u2015 tem que ser plenamente contabilizado.<\/p>\n
A m\u00e1gica \u2013 e falta de l\u00f3gica \u2013 de sumir com um segurado que d\u00ea mais despesa e menos receita do que a m\u00e9dia poderia ser aplicada a outros grupos, evidenciando a fragilidade do argumento. A mulher contribui por menos tempo do que o homem, mas vive mais. O ga\u00facho tem expectativa de vida maior que a m\u00e9dia, e l\u00e1 h\u00e1 mais aposentados e menos contribuintes. O INSS talvez n\u00e3o tivesse d\u00e9ficit se mulheres ou os estados do Sul fossem tirados da conta, mas isso obviamente n\u00e3o faz sentido. Como outros pontos dos negacionistas, tirar os rurais do INSS \u00e9 como trocar moedas dos bolsos de uma mesma cal\u00e7a (neste caso, o Tesouro).<\/p>\n
J\u00e1 pelo lado da receita, levanta-se que tributos da Seguridade, Cofins e CSLL, deveriam ser completamente vinculados e considerados como receitas do INSS. N\u00e3o se explica que outras despesas devem parar de ser financiadas por esses impostos. Tirar\u00edamos dinheiro da sa\u00fade (que tamb\u00e9m \u00e9 parte da Seguridade)? Do investimento? O olho gordo nesses tributos parece tamb\u00e9m ignorar que foi justamente a desvincula\u00e7\u00e3o que permitiu o crescimento dessas contribui\u00e7\u00f5es. Sem a DRU, Cofins e CSLL n\u00e3o teriam o valor que t\u00eam hoje.<\/p>\n
Cabe lembrar que esses impostos j\u00e1 <\/em>s\u00e3o usados hoje para cobrir o rombo do INSS. Um pouco mais de reflex\u00e3o revela que com a aceita\u00e7\u00e3o deste tipo de argumento jamais haver\u00e1 d\u00e9ficit, bastando contabilizar como receita do INSS o dinheiro dos impostos usados para cobrir seu rombo. Em 2016, talvez seja a nova CPMF.<\/p>\n Outro argumento que alimenta a \u201cfal\u00e1cia da fal\u00e1cia\u201d do d\u00e9ficit previdenci\u00e1rio \u00e9 a exist\u00eancia da d\u00edvida ativa do INSS: com esse dinheiro que deixa de ser arrecadado, o d\u00e9ficit n\u00e3o existiria, dizem alguns. Por\u00e9m, mesmo que conseguisse recuperar o que nenhum banco consegue (toda a d\u00edvida de seus credores), o INSS pagaria todos os benef\u00edcios de 2015 s\u00f3 at\u00e9 setembro.\u00a0 Estes cerca de R$ 300 bilh\u00f5es s\u00e3o insuficientes porque h\u00e1 na alega\u00e7\u00e3o uma confus\u00e3o elementar que n\u00e3o distingue um estoque (a d\u00edvida ativa) de um fluxo (o pagamento de benef\u00edcios).<\/p>\n Infelizmente, ainda que fizessem sentido, nenhum dos elementos que servem para negar o d\u00e9ficit poderia fazer frente ao seu aumento perante o processo de envelhecimento da popula\u00e7\u00e3o. Cofins e CSLL s\u00e3o impostos, r\u00edgidos, incapazes de acompanhar a transi\u00e7\u00e3o demogr\u00e1fica, veloz. N\u00e3o se trata de uma quest\u00e3o cont\u00e1bil, mas de um contingente cada vez maior de inativos a ser financiado por um contingente cada vez menor de trabalhadores em atividade. O problema precisa ser encarado, e sem contabilidade criativa, como foi no resto do mundo \u2015 nos Estados Unidos, o pa\u00eds mais rico do planeta, j\u00e1 se fala em idade m\u00ednima de 70 anos nas elei\u00e7\u00f5es prim\u00e1rias presidenciais dos republicanos.<\/p>\n Para o matem\u00e1tico e financista Nassim Taleb, o maior risco que as pessoas correm hoje \u00e9 viver demais \u201cinesperadamente\u201d, sem se prepararem financeiramente para isso. Se o Brasil fosse uma pessoa, a afirma\u00e7\u00e3o se aplicaria perfeitamente.\u00a0 Precisamos reconhecer que, apesar do descontentamento dos atuais aposentados, nossa Previd\u00eancia \u00e9 das mais generosas do mundo. Segundo o Global AgeWatch Index<\/em> de 2015, esp\u00e9cie de IDH da popula\u00e7\u00e3o idosa, somos o 13\u00ba no mundo em seguran\u00e7a da renda, muito embora sejamos apenas o 56\u00ba no ranking<\/em> total e estejamos apenas depois da 70\u00aa posi\u00e7\u00e3o na compara\u00e7\u00e3o do PIB per capita<\/em> da popula\u00e7\u00e3o como um todo.<\/p>\n O d\u00e9ficit existe, e s\u00f3 vai piorar \u00e0 medida que a propor\u00e7\u00e3o de idosos na popula\u00e7\u00e3o triplicar nas pr\u00f3ximas d\u00e9cadas.\u00a0 Hoje, segundo o IBGE, j\u00e1 h\u00e1 mais fam\u00edlias brasileiras com cachorros do que com crian\u00e7as, que sustentariam a Previd\u00eancia no futuro. S\u00f3 que cachorros n\u00e3o recolhem contribui\u00e7\u00e3o previdenci\u00e1ria.\u00a0 De fato, a nega\u00e7\u00e3o do d\u00e9ficit tem uma \u00fanica l\u00f3gica: em um pa\u00eds que ainda tem relativamente muitos jovens e poucos idosos, seria mais do que natural que realmente n\u00e3o houvesse d\u00e9ficit. Essa n\u00e3o \u00e9 mais a nossa realidade.<\/p>\n O negacionismo do d\u00e9ficit est\u00e1 na ponta da l\u00edngua dos que, em disson\u00e2ncia cognitiva, precisam justificar a concess\u00e3o de mais benef\u00edcios, seja na Justi\u00e7a ou na pol\u00edtica. Mas \u201ca verdade \u00e9 o que \u00e9, e segue sendo verdade ainda que se pense o rev\u00e9s<\/em>\u201d, dizia o poeta Antonio Machado. Enquanto no debate pol\u00edtico ainda se nega a exist\u00eancia do problema, o Tribunal de Contas da Uni\u00e3o estima d\u00e9ficit atuarial de incr\u00edveis R$ 3 trilh\u00f5es em 2050. \u00c9 d\u00e9ficit pra cachorro.<\/p>\n Este artigo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, edi\u00e7\u00e3o de 27\/9\/2015.<\/em><\/p>\n <\/p>\n Download:<\/strong><\/p>\n