Jo\u00e3o \u00e9 inteligente e nasceu em uma fam\u00edlia de classe alta. Estudou em boas escolas e entrou para uma universidade p\u00fablica gratuita de engenharia. Formado, viu que os melhores sal\u00e1rios iniciais de engenheiros estavam em R$ 5 mil. Fez concurso para um cargo de n\u00edvel m\u00e9dio em um tribunal: sal\u00e1rio de R$ 9 mil mais gratifica\u00e7\u00f5es, aposentadoria integral, estabilidade, expediente de seis horas. O contribuinte custeou a forma\u00e7\u00e3o de um engenheiro, e recebeu um arquivador de processos sobrerremunerado. Amanh\u00e3 Jo\u00e3o estar\u00e1 em frente ao Congresso, com seus colegas, todos em greve por aumento salarial. N\u00e3o ter\u00e1 o dia de trabalho descontado, nem se sente remotamente amea\u00e7ado de demiss\u00e3o.<\/p>\n
Pedro n\u00e3o tem muito talento intelectual. Mas sua fam\u00edlia p\u00f4de pagar uma boa escola, o que lhe garantiu uma vaga em um curso n\u00e3o muito concorrido em universidade p\u00fablica. Carente de habilidades acad\u00eamicas, Pedro n\u00e3o se adaptou e mudou de curso duas vezes, deixando para tr\u00e1s centenas de horas-aula desperdi\u00e7adas e duas vagas que poderiam ter sido ocupadas por outros estudantes que jamais ter\u00e3o acesso \u00e0quela universidade. Foi f\u00e1cil desistir dos cursos, pois Pedro nada pagou por eles.<\/p>\n
Ap\u00f3s oito anos na universidade, Pedro finalmente se formou em biologia. Sonha em ter um emprego igual ao de Jo\u00e3o. Entrou em um cursinho preparat\u00f3rio para concursos p\u00fablicos. L\u00e1 conheceu centenas de jovens formados em universidades p\u00fablicas \u00a0que, em vez de irem para o mercado de trabalho aplicar seus conhecimentos, est\u00e3o em sala de aula, decorando apostilas para conseguir um emprego p\u00fablico.<\/p>\n
Jorge, o dono do cursinho, \u00e9 um brilhante advogado, que poderia contribuir para a sociedade redigindo contratos empresariais. Mas descobriu que ganha mais dinheiro preparando candidatos ao servi\u00e7o p\u00fablico.<\/p>\n
Um dos professores do cursinho de Jorge \u00e9 Manuel, que tamb\u00e9m abandonou sua forma\u00e7\u00e3o universit\u00e1ria e mudou de ramo. Ao perceber que jamais exercer\u00e1 a profiss\u00e3o original, ele pediu desfilia\u00e7\u00e3o do respectivo conselho profissional. Mas n\u00e3o consegue, porque M\u00e1rcia, funcion\u00e1ria daquele conselho, tem como miss\u00e3o criar todo tipo de dificuldade \u00e0s desfilia\u00e7\u00f5es e manter em dia a arrecada\u00e7\u00e3o compuls\u00f3ria. Manuel desistiu e vai pagar a contribui\u00e7\u00e3o pelo resto de sua vida profissional, ainda que n\u00e3o se beneficie em nada, e pouca satisfa\u00e7\u00e3o seja dada pelo conselho profissional acerca do uso desse dinheiro.<\/p>\n
As limita\u00e7\u00f5es acad\u00eamicas de Pedro o impedem de ser aprovado em concurso p\u00fablico. Ele vai ser um med\u00edocre professor, em uma escola de ensino fundamental de segunda linha (p\u00fablica ou privada), \u00a0oferecendo ensino de baixa qualidade \u00e0s novas gera\u00e7\u00f5es das fam\u00edlias que n\u00e3o podem pagar por uma escola melhor. Pedro s\u00f3 conseguiu essa vaga porque h\u00e1 uma reserva de mercado: por lei, as escolas de ensino fundamental s\u00f3 podem contratar professores com diploma de n\u00edvel superior. Fosse permitido contratar universit\u00e1rios, diversos graduandos em biologia mais talentosos e motivados que o diplomado Pedro estariam em sala de aula, oferecendo boas aulas \u00e0s crian\u00e7as.<\/p>\n
Ant\u00f4nio \u00e9 t\u00e3o brilhante quanto Jo\u00e3o. Daria um excelente engenheiro, mas nasceu em fam\u00edlia pobre e estudou em escola p\u00fablica. Teve professores limitados, no padr\u00e3o de \u00a0Pedro, e a desorganiza\u00e7\u00e3o administrativa da escola piorava as coisas: muitas vezes n\u00e3o havia professores em sala. Falta com atestado m\u00e9dico n\u00e3o d\u00e1 demiss\u00e3o.<\/p>\n
Ant\u00f4nio at\u00e9 conseguiu passar no vestibular de engenharia em universidade p\u00fablica, pelo sistema de cotas, mas sua forma\u00e7\u00e3o deficiente em matem\u00e1tica foi uma barreira intranspon\u00edvel. Abandou ou curso, deixando mais horas-aula perdidas e mais uma vaga ociosa na conta dos contribuintes.<\/p>\n
Ant\u00f4nio, por\u00e9m, \u00e9 empreendedor. N\u00e3o se abalou com o insucesso universit\u00e1rio, aprendeu a consertar eletr\u00f4nicos atrav\u00e9s de v\u00eddeos no Youtube<\/em>. Montou um pequeno neg\u00f3cio de manuten\u00e7\u00e3o de smartphones<\/em> e computadores. Seu talento poderia torn\u00e1-lo um grande empres\u00e1rio. Mas para crescer, ele precisa transferir sua empresa do regime de tributa\u00e7\u00e3o SIMPLES para a tributa\u00e7\u00e3o normal, pagando impostos muito mais altos, porque o governo precisa de muito dinheiro para pagar altos sal\u00e1rios, para custear a universidade gratuita que desperdi\u00e7a vagas e para sustentar escolas p\u00fablicas que n\u00e3o d\u00e3o aula, entre outras despesas. Mesmo assim, o governo permanece em d\u00e9ficit, e toma empr\u00e9stimo para se financiar, aumentando a taxa de juros. Com impostos altos e cr\u00e9dito caro, Ant\u00f4nio prefere manter seu neg\u00f3cio pequeno. A grande empresa e seus empregos morreram antes de nascer.<\/p>\n Chico \u00e9 um l\u00edder\u00a0 talentoso. Dirige uma central sindical que congrega os sindicatos dos companheiros do judici\u00e1rio e dos professores, entre outras categorias. Chico est\u00e1 em frente ao Congresso, apoiando a greve de Pedro por melhores sal\u00e1rios. Faz um discurso contra os neoliberais, que s\u00f3 pensam em cortar gastos p\u00fablicos e arrochar os trabalhadores. Chico n\u00e3o tem muito do que reclamar (embora, como l\u00edder sindical, a sua especialidade seja, justamente, reclamar): al\u00e9m da remunera\u00e7\u00e3o paga pelo sindicato (e custeada pelo imposto sindical, cobrado obrigatoriamente dos contribuintes), ele est\u00e1 aposentado pelo INSS desde os 52 anos de idade. At\u00e9 o final da sua vida receber\u00e1 muito mais do que contribuiu para a previd\u00eancia.<\/p>\n Nenhum dos personagens citados tem comportamento ilegal. Eles jogam o jogo de acordo com as regras que est\u00e3o postas. O erro est\u00e1 nas regras. Mud\u00e1-las requer superar as dificuldades das decis\u00f5es coletivas. N\u00e3o mud\u00e1-las implica continuar com talentos profissionais e dinheiro p\u00fablico mal alocados, empregos improdutivos, potenciais inexplorados, gasto p\u00fablico excessivo, oportunidades perdidas, incentivos errados. Uma f\u00e1bula de improdutividade.<\/p>\n <\/p>\n Este artigo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, edi\u00e7\u00e3o de 10\/9\/2015.<\/em><\/p>\n <\/p>\n Download:<\/strong><\/p>\n